Racionais MCs: Quanto Vale o Show?
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Recortes e ambientes dos anos 1980 que podem ter moldado a personalidade de cada um dos Racionais MC’s
Só os integrantes dos Racionais MCs podem dizer como eram suas vidas nos anos 1980, mas a música “Quanto vale o show?” fornece alguns registros da juventude de Mano Brown que também representam o perfil e a caminhada de muitos jovens da época. Da vestimenta citada na letra, passando pelo que era hit musical e chegando ao refrão com trechos da fala do apresentador e empresário Silvio Santos – sucesso aos domingos com um programa que inspirou o nome do som dos Racionais – o rap de Brown é a periferia dos 80 revisitada.
Pesquisando sobre os bairros de São Paulo em jornais da época, notei dois extremos. De um lado, a maior parte das publicações sobre bairros de classe média-alta retratam a prosperidade econômica dos locais, a tranquilidade e a história ligada aos integrantes de uma elite colonial. Muitas reportagens têm depoimentos de políticos e artistas famosos, todos falando da beleza de bairros como Jardim Europa, Moema, entre outros.
O lado que cobre as periferias da capital mostra comunidades em construção, lugares onde falta saúde, saneamento básico, transporte, escolas, segurança. Parte das reportagens possui um tom carregado de preocupação com o crescimento desordenado da cidade. É notório o medo, o preconceito, a tentativa de denunciar, mas, sobretudo moldar e controlar a população da periferia, povo que enfrenta as dificuldades, desenvolve estratégias de sobrevivência e, contra a vontade de muitos, permanece em São Paulo.
Imagine como os membros da classe A/B reagiam ao ler nos jornais notícias sobre a violência que crescia no bairro de São Mateus, na zona leste, ou sobre a precariedade que se espalhava pelos bairros da área cortada pela Estrada de Parelheiros, na zona sul. No olhar da elite, a criminalização da pobreza era justificada, temida. Estava tudo ali nas páginas dos periódicos.
Nos jornais
Num primeiro momento, elite, administração pública e seu braço armado, querem erradicar a periferia e tudo o que ela representa. Já nos anos 1960 e 1970, para conter o crescimento das favelas, o poder público marca os barracos, coloca a polícia para cercar a comunidade, fornece passagens para os migrantes voltarem para suas regiões de origem. O crescimento da periferia nos 80 prova que nada adiantou.
Quando notam que não há jeito, decidem que é melhor conter tudo o que temem no espaço que está sendo construído nas bordas da cidade. Afinal, a periferia está muito distante da realidade das classes mais altas, sua grande população pobre atravessa a cidade para trabalhar, mas depois volta para dormir algumas horas no subúrbio.
Como hoje, o Estado dos anos 1980 chega primeiro com a repressão, com a polícia. Abaixo-assinados de moradores dos bairros pobres são ignorados, mas muitas manifestações dos favelados são tratadas com cacetetes e bala. Luz, asfalto, canalização dos córregos, ônibus. Parte da nossa conectada periferia do século XXI nem tem idéia do que é viver sem isso, mesmo sabendo que ainda existem regiões onde falta tudo.
Com pais e mães ocupados em manter a sobrevivência da família numa metrópole hostil, jovens negros, pobres, filhos de nordestinos e mineiros aprendem a viver na década de 80. Encontram diversão, amam, estudam, fazem amigos, mas também conhecem a violência da PM e o descaso do poder público, sentem como são discriminados por causa de sua cor.
O moleque que usa roupas e marcas citadas na música “Quanto vale o show” é o perfil do marginal imaginado pela elite, seu jeito, sua fala, seu corpo são alvos da PM e dos justiceiros. Sua origem, seu bairro, a ausência de “boa aparência” são fatores de rejeição nas entrevistas de emprego.
Uma parcela dos moradores das favelas começa a ver seus filhos sendo mortos, encontram corpos em lixões, esquinas, campinhos, escadarias. O ricos assistem tudo pela TV, ou ficam sabendo ao ouvir rádio em seus carros. Foi diluída a sensação de segurança que a presença da polícia e dos justiceiros passava para os favelados, apenas para os favelados. A elite está sossegada. A vida de muitos suburbanos fica em segundo plano na agenda dos governos que entram e saem.
Os heróis da elite têm estátuas e monumentos em cada canto da cidade. Santo Amaro, uma das regiões que mais crescem, tem Borba Gato, bandeirante, assassino e escravizador de índios, marcando o início de seu território, uma obra gigante inaugurada em 1963. Poucos sabem disso, tudo é precário nos extremos da cidade de São Paulo. Na norte, na sul, leste, oeste, os garotos estão crescendo. Samba e funk são a trilha da chamada função. A personalidade de cada um dos Racionais MCs começa a ser formada neste contexto. A fúria negra está nascendo.
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