Literatura Marginal: um panorama brasileiro
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Nos tempos da ostentação e estética para os escritores contemporâneos
Por Jéssica Balbino
De longe, a literatura marginal/periférica/divergente ou seja lá o termo que queiram dar, com seus saraus, encontros, lançamentos e criação de selos independentes é a melhor coisa que aconteceu no Brasil na última década. Por quê? Eu conto para vocês, embora seja difícil resumir tanto tempo, tanto avanço e tanta notícia positiva.
Esta é a verdadeira literatura marginal. Sem desmerecer a geração mimeógrafo. Mas, esta veio originariamente das periferias, das favelas e teve a capacidade de organizar-se enquanto movimento, não apenas literário, mas político. Tão verdadeira que ampliou esta nomenclatura e é chamada de periférica, divergente, alternativa e, porque não, contemporânea.
Em quase uma e meia de movimento, nota-se a solidez da literatura, que vem sendo escrita de próprio punho e busca, não apenas espaços, voz e vez, mas, neste segundo momento, a estética, o resgate da oralidade, o aprimoramento da arte. Busca-se o distanciamento do impacto inicial do exotismo causado pelo ‘fenômeno’ da favela escrevendo para a consolidação dos periféricos que escrevem, publicam, vendem, distribuem e se organizam com livros, coletivos e selos de qualidade, prontos para ocupar as prateleiras do mercado editorial.
Tal preocupação é sentida com a criação de projetos como o Ninguém Lê, encabeçado por Ni Brisant, Victor Rodrigues e Lâmia Brito e que uma vez por mês discute a obra de um autor marginal/periférico na presença deste, acompanhado dos leitores, mostrando que há, sim, muitas publicações, mas que há também gente disposta a lê-las, debate-las e ainda preocupadas com a estética desta mesma literatura, que já passou da hora de clamar apenas por direito ao grito e agora, deve saber o que e quem gritar.
Em 2014 podemos contar pelo menos um sarau por Estado brasileiro, sem falar os menores, fora das capitais, organizados por pequenos coletivos e iniciativas, mas que denotam a efervescência da cena literária pelo país e mostram a urgência da poesia.
As antologias destes saraus e movimentos também demonstram que mais do que simples reuniões e agitações, há o comprometimento em escrever e de, de alguma forma, eternizar a própria história. Por outro lado, movimento como os Poetas Ambulantes, que percorrem os transportes públicos de São Paulo recitando poesias para os passageiros durante as longas e cansativas viagens da maior metrópole brasileira oxigenam a literatura marginal.
Entretanto, para além destes dados, podemos contar 2014 como o ano em o brasileiro Emerson Alcalde, poeta de Cangaíba, criador do Slam da Guilhermina foi vice-campeão – e para nós teve gosto de vitória – da Copa do Mundo de Poesias da França e este segundo lugar foi apenas por um décimo de ponto contra o canadense Ikenna . Foi neste ano que estivemos bem perto de trazer para o lado dos times de várzea, como ele mesmo faz questão de lembrar em sua poesia (http://youtu.be/eklyTWYgw0E), o caneco de quem nos roubou e colonizou durante toda a história, exceto pela nossa palavra.
Foi também em 2014 que os poetas brasileiros figuraram na antologia Saraus, organizada e publicada na Argentina. Foi ainda neste ano que os saraus de São Paulo protagonizaram a programação da Feira Interacional de Livros de Buenos Aires.
É também marcado o tempo das inovações, em que os escritores marginais abusam não apenas das formas nos papéis, mas fora dele também, como os #PinosPoéticos de Renan Inquérito, o livro-objeto Vendo Pó…esia, de Rodrigo Ciríaco – este inclusive que em 2014 esteve em Moçambique representando a literatura periférica brasileira e em anos anteriores na França e na Alemanha – as invenções de Jeferson Bandeira, como o 69 rapidinhas, o Agonias Ilustradas, em formato de baralho e ainda os livros que nascem das intervenções, como o “100 contos trocados por 10 contos trocados”, de Daniel Viana e da expansão dessa literatura em outros países.
Para além da poesia, as biografias também são destaques na literatura marginal. O selo Literarua publicou em 2013 a história do artista Sabotage, à lembrança dos 10 anos de sua morte, escrita e pesquisada por Toni C. e em 2014 foi a vez de Gilberto Yoshinaga lançar a biografia de Nelson Triunfo, “Do sertão ao Hip-Hop”, que inclui um precioso trabalho de pesquisa, levantamento e acompanhamento daquele que é considerado o precursor da cultura hip-hop no Brasil. A obra também foi lançada pelo Literarua, que é um empreendimento que vende livros, revistas e obras ligadas à literatura marginal pela internet e percorre feiras e eventos literários de todo o país com os mesmos produtos, afim de disseminá-los para diferentes públicos.
As questões de gênero também ganharam destaque nos últimos tempos, com publicações de antologias como a Pretextos de Mulheres Negras, organizada por Elizandra Souza e Carmen Faustino, dentro do coletivo Mjiba (Jovem Mulher Revolucionária), bem como as coletâneas Perifeminas, organizadas pela Frente Nacional de Mulheres do Hip-Hop (FNMH²), que superam as 50 autoras em cada uma e que avançam para outros países, trazendo relatos referentes ao hip-hop e ao feminismo em suas páginas.
Ponto também para as mesas de debates femininas, para os coletivos com cada vez mais mulheres fazendo poesias e publicando e para o Zap Slam, organizado por Roberta Estrela D´Alva e que neste ano teve noites temáticas, só com mulheres, em unidades do Sesc de São Paulo.
E sem deixar de lembrar que 2014 foi ano de Copa, não apenas a do mundo de poesias com um representante à altura e que disputou, durante a abertura da Copa do Mundo de futebol, a melhor performance num slam, tivemos ainda o Rachão Poético, que semelhante às regras do futebol, vence o melhor time da poesia. E o destaque vai para o trio dos passarinheiros: Ni Brisant, Victor Rodrigues e Luiza Romão.
A interatividade e o uso das redes sociais marcam, ainda mais e de forma crescente, o crescimento e as maneiras de difundir a literatura marginal. O destaque vai para as inúmeras páginas de intervenções poéticas e literárias criadas no Facebook, umas inspiradas nas outras e que conquistam milhares de fãs e seguidores, até se tornarem publicações físicas, lançadas nos saraus. Outro exemplo é o SarÁudio, grupo criado no whatsapp para a troca de poesias apenas em áudio entre 50 poetas de diferentes partes do Brasil.
Alinhada com a tecnologia, a literatura marginal só tende a crescer. A expansão é nítida. A preocupação com a estética também. O número de estudantes e pesquisadores que são crias dos saraus – e mesmo do hip-hop – e que hoje estão na academia estudando o próprio movimento contrabalanceia o dos intelectuais e a meta, brevemente, poderá ser cumprida: transformar a educação, a poesia, os saraus e a literatura periférica em ostentação.
Enquanto isso não acontece, o bom humor e a performance de Daniel Minchoni, que é também um agitador cultural, criador do selo doburro, do sarau doburro – que neste mês realiza um enorme festival literário e de artes em São Paulo – e do menor slam do mundo, refletem exatamente o tipo de bens que queremos esbanjar.
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