Killer Mike e Sanders: a política de volta ao hip hop
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Por: Charles Mudede para o The Stranger.
Tradução: DJ Cortecertu
Edição: Noise D
No início o hip hop era uma democracia próspera de personalidades, problemas abordados, sons e estilos. Havia rappers que estavam na ala hippie (De La Soul), na ponta B-boy (Main Source), no hardcore (Schoolly D), na frente feminista (Queen Latifah), na área afrocentada do rap (X-Clan) , ou na excêntrica (Kwamé o Boy Genius), na manifestação islâmica (Poor Righteous Teachers), na era cósmica (Jungle Brothers), na força do movimento black power (Public Enemy), ou na lírica terrorista (Paris), na ala gangsta (N.W.A) e até mesmo em raps tidos como irrisórios (Sir Mix-a-Lot).
Entre 1980 e 1996 o hip hop representava a variedade da cultura que emergiu das ruas. E houve até a sensação de que para virar um grande rapper ou produtor você deveria introduzir algo completamente novo. Introduzir alguma área da vida dos negros que não tinha sido explorada. Um modo que era desconhecido ou negligenciado ou foi completamente inventado a partir do zero, como foi o caso com Slick Rick – parte realeza britânica, parte pornógrafo, parte moralista shakespeariano.
Em meados dos anos 90, no entanto, esta democracia entrou em declínio acentuado e acabou por ser substituída pela ditadura do modo gangster. Queen Latifah foi substituída por Lil ‘Kim. Chuck D por Jay-Z. Slick Rick por Snoop Dogg. Guru por DMX. E assim por diante. Os primeiros rappers nesta ordem tinham diferentes agendas e apresentações; os membros do segundo time estavam todos dizendo a mesma coisa.
Esta perda de diversidade também significou o fim da política no hip hop, que ficou completamente subterrânea em Los Angeles, Bay Area [região de São Francisco], Seattle, Minneapolis e Brooklyn [Nova York]. Este declínio e transformação foi observado recentemente por ninguém menos que Too Short, um rapper que hoje é conhecido principalmente por suas contribuições para [os estilos] crunk ou o dirty south, mas que começou sua carreira na década de 1980 com álbuns de rap consciente. Na verdade, ele entrou no mainstream em 1988, não com obscenidades, mas com uma obra-prima do existencialismo no hip hop: [o disco] “Life Is… Too Short” (“A vida é demasiado curta”).
Em uma entrevista ao HipHopDX, Too Short afirmou que por volta da metade da década de 1990, houve um esforço arquitetado (ele mesmo chama de uma conspiração) pela indústria fonográfica para acabar com o “equilíbrio” no hip hop (entre rap positivo e rap negativo – que eu descrevo como sua democracia) e se concentrar apenas sobre na ala negativa. “O executivo da empresa disse pra eu lançar um álbum inteiro com palavrões e sexo“, disse Too Short. “Você não poderia ouvir minhas tracks no rádio naquela época, mas agora eu estou dizendo ‘Shake That Monkey’, que é a uma canção onde literalmente falo para chacoalhar sua vagina… E ela é tocada no rádio hoje.”
É verdade, “Life Is… Too Short” pode não ter tocado no rádio no passado, mas o seu vídeo rolou regularmente no Yo! MTV Raps. Entretanto, o ponto é este: nos anos 90, não era real a pressão da indústria para rappers falarem de “sexo e violência.” No início da década de 2000, a transição foi concluída. O hip hop ficou monotemático e apolítico.
O hip hop descrito por Chuck D – no passado – como a “CNN do gueto”, não tinha quase nada a dizer sobre a crise financeira de 2008 e os problemas nos bairros negros em cidades do Rust belt [termo que designa a região nordeste dos EUA]. Quando o movimento Occupy Wall Street entrou em erupção em 2011, Jay-Z – um dos poucos rappers que desfrutava dos benefícios monetários da democratização do hip hop – num primeiro momento tentou lucrar a partir do movimento com a venda de camisetas que, essencialmente, diluiu sua mensagem com o declaração “Occupy All Streets” (“Ocupe todas as ruas”). Mais tarde, ele descartou o “Occupy Wall Street“, como um movimento incoerente e frio para o que ele pensava fazer a Norte-América grande: o espírito empreendedor. O Black Lives Matter também surpreendeu o hip hop. Os dias de “Fuck the police” foram esquecidos, e o autor de “Cop Killer”, Ice-T, agora é um policial na série Law & Order: SVU.
Houve, no entanto, uma resposta do hip hop para a morte de Michael Brown (um adolescente negro desarmado baleado por um policial branco em Ferguson, Missouri, em 2014, este evento desencadeou o movimento Black Lives Matter): Killer Mike. Este rapper de Atlanta entrou no mainstream em 2003 por meio de colaborações com Outkast. Mas ele logo desapareceu, e o mundo estava prestes a esquecê-lo completamente quando Mike reapareceu de forma espetacular com um dos veteranos do indie hip hop, El-P, como Run the Jewels. Eles lançaram um trabalho homônimo em 2013. No ano seguinte, Killer Mike estava no YouTube falando honestamente sobre a brutalidade policial (assista abaixo). Depois ele apareceu no YouTube novamente, mas desta vez como um dos principais apoiadores de um candidato à presidência que precisava de alguma negra credibilidade: Bernie Sanders.
Killer Mike declarou de forma contundente que as questões no centro da plataforma da Sanders eram da maior importância para a vida dos americanos comuns negros: a reforma das prisões, cuidados médicos universais, o fim da guerra contra as drogas, e financiamento da educação pública. Para a maior parte, os líderes do Partido Democrata se concentram em questões que dizem respeito à classe média (o que inclui Barack Obama), mas as questões de Sanders atingem diretamente os pobres. E a taxa de pobreza para os negros americanos é de 26%. Nenhum outro político tem algo de substancial para oferecer a este grupo. Killer Mike percebeu isso. E logo depois de expressar a sua posição sobre a corrida presidencial, outros rappers começaram a seguí-lo para fora do cemitério político de hip hop.
“Eu sabia que Killer Mike estava envolvido com Bernie e gostei do que eu estava ouvindo sobre ele“, disse o veterano rapper Nas. Ele declarou ao Daily Beast: “Eu gostei das pessoas que estavam apoiando Sanders. E Killer Mike estava com ele.” Nas não estava sozinho, Lil B, Bun B, Scarface, Rae Sremmurd, e T. I. também apoiam Bernie Sanders.
Alguns desses rappers são jovens, outros velhos. Alguns muito famosos, outros quase famosos, e alguns foram educados num mundo do hip hop que não tinha Queen Latifah exigindo respeito, para não ser chamado de cadela. Eles fizeram registros num momento em que a indústria vem recompensando sexo, misoginia e violência, acima de tudo. Mas é notável que todos esses rappers estão tomando uma posição muito pública e clara na corrida presidencial vigente. Na verdade, por causa da crescente tripulação seguindo Sanders e Killer Mike, Hillary Clinton criou sua “posse hip hop” para permanecer relevante: Kanye West, Pharrell Williams e Snoop Dogg. A campanha democrata marcou o retorno da visão CNN que Chuck D tinha em mente no passado.
Quem teria imaginado que o rejuvenescimento político do hip hop viria através de um político de 74 anos de idade, judeu, branco, que usa ternos feios? Por causa de sua plataforma centrada nos cidadãos, o hip hop finalmente tem algo a dizer sobre o estado das coisas, a economia, a desigualdade de renda, os racistas que seguem Donald Trump, direitos de voto e muito mais.
Obama pode ser o primeiro presidente negro, mas ele é aquele que Jay-Z ama e entende. Sanders não ganhou o apoio de Jay-Z.
*Texto publicado no site The Stranger – em 6/4/2016 – com o título “Killer Mike and Bernie Sanders Have Brought Politics Back to Hip hop and Vice Versa”.
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