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Hip Hop, 4 décadas de história e resistência

Hip Hop, 4 décadas de história e resistência

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20070606125451 Hip Hop, 4 décadas de história e resistência
Bambaataa e King Nino Brown.

EM POUCO MAIS DE QUATRO DÉCADAS, O HIP HOP TORNOU-SE UMA CULTURA GLOBAL, ABRAÇADA POR MILHARES DE JOVENS AO REDOR DO PLANETA

Desde sua criação, em 1974, são 40 anos de cultura hip hop. De lá pra cá muita coisa se passou. AFRIKA BAMBAATAA, 50 anos, viu o que antes era um simples “movimento” virar uma cultura global e sua voz ser escutada e respeitada no mundo todo. Numa entrevista concedida ao Portal Bocada Forte e a jornalista Cinthia (Zulu Nation Brasil), em maio de 2007, o “pai do hip hop”, acompanhado da presença ilustre de King Nino Brown, falou sobre como vê o mundo hoje, suas preocupações, espiritualidade, a música rap e muito mais.

Uma verdadeira aula com o mestre dos toca-discos e responsável pela criação do termo “hip hop”, Mr. Bam.

Bocada Forte (BF): Nós ouvimos você comentar de sua preocupação com a violência no Brasil… Afinal, o que vem fazendo Bambaataa se preocupar e refletir nos dias de hoje, além da violência?

Afrika Bambaataa: O grande problema no mundo hoje é o acesso ao conhecimento, a educação. Também a questão do racismo e do poder branco, da “supremacia branca”. Muitos dos meus irmãos e irmãs do Brasil precisam esforçar-se para aumentar seu conhecimento sobre si mesmos e os outros. Por exemplo… Isso significa, que aqueles que se chamam pretos brasileiros precisam saber que seus ancestrais não vieram ao Brasil somente em navios negreiros, como escravos. Vocês são os herdeiros de um povo que estava aqui muito antes desta terra ser chamada Brasil, ou América Latina, ou América Central ou do Norte. Seus ancestrais aqui viviam, assim como os Maias, Astecas e tantos outros povos. É preciso que a juventude passe a estudar, conhecer e a debater como era o Brasil antes de ele ser chamado Brasil. É preciso buscar as reais origens, não somente de quando os europeus por aqui chegaram.

Quando você se aprofunda no estudo das raízes da história você fica sabendo quem estava aqui muito antes de Colombo pisar aqui. No filme feito por Mel Gibson, chamado “Apocalíptico”, por exemplo, você não vê uma representação dos Maias com pele clara, fantasiosa. Vê homens com chapéus quadrados, cabelos rasta, com locks, pele mais escura, exatamente como realmente se pareciam as pessoas daquela época. Essa é uma representação baseada em estudos. Outro exemplo: você sabe da história de Zumbi? Você pode encontrar muita coisa nos computadores, na Internet sobre ele, mas muito poucos livros. As pessoas recebem a informação de que a cultura do povo preto começou com a escravidão, mas isso não é verdade. Assim, nós precisamos matar o racismo e mostrar a todos que pretos, marrons, vermelhos, amarelos, brancos somos todos seres humanos.

Verdadeiramente, não existe uma terra chamada “terra dos pretos”, “terra dos marrons”, “terra dos brancos”, “terra dos vermelhos”. Isso tudo é uma cultura de supremacia branca. A real questão é onde você nasceu, o seu berço, qual sua nacionalidade, de onde você veio. Daí se percebe que a real luta é a luta contra a violência entre os povos. A luta é cidade à cidade, favela à favela, rua à rua, nas esquinas. Cada um fazendo sua parte, dando o melhor de si. Buscando o conhecimento de si mesmo e da vida podemos vencer e realmente libertar-nos.

Cinthia (Zulu Nation Brasil): Bambaataa, nós gostaríamos de saber como foi sua vida quando mais jovem e como veio a cultura hip hop nessa época?

Bambaataa: A vida era realmente uma batalha, gangues de rua e violência por todos os lados. Mas em meio a tudo tínhamos, por exemplo, grandes professores do Islam. Pessoas como Malcom X, Louis Farrakan. Tínhamos o Partido dos Panteras Negras, Angela Davis. Tínhamos grandes cantores pela paz como James Brown, Aretha Franklin, Sly & The Family Stone, Isley Brothers, John Lennon, e tantos outros. Seja em suas músicas ou discursos, todos me ensinaram algo de bom. Algo que me auxiliou a moldar minha mente de forma positiva e tirar-me do ócio e do crime, me levando a pensar em fazer algo pelo meu povo. Na sequência também veio o grande professor Martin Luther King, o “Young Lords Party“, o movimento do Partido Porto-riquenho, tudo foi me despertando pra algo maior.

Foi então que assisti a um filme na TV chamado “Zulus” (veja o vídeo abaixo), onde os Zulus da África lutavam pela sua liberdade contra os britânicos, que tentavam invadir suas terras. Isso me despertou e me fez imaginar: “quando eu for mais velho vou querer ter a minha Zulu Nation, um dia”. E hoje temos a Universal Zulu Nation e quem sabe no futuro não poderemos ter a nossa “Galáctica Zulu Nation”, indo de planeta a planeta defendendo a paz.

20070606125322 Hip Hop, 4 décadas de história e resistênciaBF: Todos sabemos que você tem uma ligação muito forte e especial com o lado espiritual. Ao mesmo tempo, hoje vivemos num mundo extremamente violento e materialista. Como despertar as mentes das pessoas, dos jovens, para a paz, as coisas boas e positivas?

Bambaataa: Antes de tudo é preciso haver organização e que se tenham bons mestres, professores, oradores. Alguém que fale a juventude assim como aos nossos ancestrais. Ensinar o respeito a esses ancestrais, nossos avós, bisavós e tataravós. A sua mãe é a minha mãe. Sua irmã é a minha irmã. Seu pai é o meu pai. E quando todos se olharem dessa forma, respeitando os mais antigos teremos um mundo melhor. Sabe, o que muda o hip hop é a sua parte negativa, que vem principalmente dos Estados Unidos. A gente vê todo mundo se chamando de “niggaz” (negros), “bitches” (prostitutas). Daqui a pouco eles estão falando que sua mãe é uma vagabunda. Que sua irmã é uma vagabunda. E de repente todos começam a achar isso comum e corriqueiro e você começa a chamar sua mãe de vagabunda e sua irmã de vagabunda, seu irmão de “negrão”… E aí você se torna um imbecil. Afinal, pessoas morrem todo o dia por causa disso. Mas você continua a usar esses termos entre as pessoas que convive. Aí então um europeu chama você de “negrão” e você não vai gostar. Vai ficar irado. Mas como você vai ficar bravo se você mesmo se chama “negrão” e gosta de chamar os outros assim?

Então, precisamos mostrar aos jovens a sua real identidade, quem são seu povo, quem são seus ancestrais e seus reais valores. E precisamos ver na TV a história de Zumbi, a história dos Panteras Negras, do Movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos, a história da África do Sul, a história do Brasil e todos seus problemas, a história da Cidade de Deus. Aí vendo isso as pessoas terão de pensar: “nós precisamos fazer algo a respeito destes problemas”. Então precisaremos de oradores. Pessoas que falem como Farrakan, como Malcom X, como John Lennon.

Cinthia: O que você pensa dos rappers atuais e desse “novo estilo de hip hop”? De artistas como 50 Cents que se auto-denominam “do hip hop” e, na minha opinião, não o são. O que você pensa sobre isso e sobre suas letras, que tratam de sexo, grana e violência?

Bambaataa: Bem, o 50 Cents continua sendo meu irmão. E ele representa um lado do hip hop. Nós não temos de nos preocupar apenas com o 50 Cents, mas com as Rádios que têm programas que “programam sua mente” diariamente, por todo o Brasil, por todo os Estados Unidos, por todo o mundo. Se você toca 50 Cent, você ainda tem Commom Sense, que é outro MC. Se você toca Missy Eliot, nós ainda temos Soul Sonic Force e Sugar Hill Gang. Se você toca Limp Bizkit e Korn, nós ainda temos Beatles e os Rolling Stones. Se você toca o novo samba, nós teremos o velho samba. Você toca o novo hip hop, nós temos o velho hip hop. Se você tem algo novo, você sempre terá algo mais antigo. Então, se você toca coisas novas, dê também espaço para as coisas velhas. E eu não falo só de coisas velhas, com 10 ou 5 anos de idade, mas música dos anos 40, 50, 60. Vamos misturar isso. Vamos fazer com que as pessoas escutem de tudo um pouco. De repente as pessoas estarão ouvindo a rádio e dirão “ei, isso é James Brown e os caras do grupo tal usaram naquele som novo”. Ou então você dirá “puxa, isso é Tim Maia. Veja o que ele fazia naquele tempo“. Dessa forma, as pessoas poderão sentir a diferença. Precisamos chegar nas estações de Rádio e TV e dizer “ei, nós queremos mais equilíbrio na programação. Queremos saber também do passado, das músicas antigas, dos artistas mais velhos e dos trabalhos de artistas independentes também”. Só assim os artistas como 50 Cents começarão a cair em esquecimento. Começarão a ser ignorados aos poucos. Você terá os gangstas, mas terá também os artistas que falam de amor, de paz. As pessoas poderão dizer “ah, mas isso é contraditório”. Mas nós sempre teremos o bom e o ruim. Nós somos bons e ruins. É o “Ying e Yang”. Todo ser humano tem seu lado bom e ruim.

20070606125515 Hip Hop, 4 décadas de história e resistênciaBF: Bam, aqui no Brasil nós temos muitas dificuldades em realizar grandes eventos. Em conseguir verba para realizá-los. Ao contrário dos Estados Unidos e de outros países onde o hip hop é maduro, como a França, as grandes empresas demonstram não ter interesse na cultura. Como lidar com isso?

Bambaataa: Muitas empresas desejam ficar cegas, surdas e mudas. Não importa a eles o que a juventude vem fazendo. Eles querem mais é fazer dinheiro e ampliar o controle sobre você. Eu olho aqui (Bambaataa olha pela janela do quarto do hotel, onde se tem uma bonita vista da cidade) e vejo muito mais prédios que em Nova York. Eu vejo como em Tóquio, no Japão. Então não há razão para que não encontremos pessoas morando nas ruas, passando fome ou morando em favelas. Mas se cada pessoa nesses grandes prédios doassem um Real cada, seria um milhão para que pudéssemos realizar algo bom. Para limpar a área, tirar as pessoas das ruas, da fome. Para fazer uma escola. E assim você reúne um real de cada pessoa em outra grande comunidade de São Paulo e constrói um grande centro de estudos para jovens. Algo que seja bom ou funcional para as pessoas.

As pessoas precisam aprender a não depender tanto do governo. As pessoas precisam se organizar verdadeiramente. Se todos decidissem não comprar mais cigarros e colocar esse dinheiro na “conta bancária do povo” muitas outras coisas boas poderiam ser construídas. A ajuda está em suas próprias mãos. Se você não fizer nada por você ou para mudar a situação e ficar esperando, nada irá mudar e todos continuaremos a ser dominados pelas grandes indústrias… Continuaremos a fazer parte do “Matrix” (risos).

Cinthia: Ao redor do mundo nós vemos demonstrações de reivindicações e lutas do povo negro na tentativa de conquistar mais espaço e direitos que nos foram suprimidos. Você acredita que ainda hoje nós negros somos unidos devido a nossa condição cultural ou porque somos negros?

Bambaataa: O povo preto precisa estudar sua história. Esses são seus ancestrais (Bambaataa mostra livro de estudos muçulmano com a história dos povos antigos). Você precisa apoderar-se do conhecimento. Eles não desejam que você saiba que seu povo já estava aqui, a muito tempo antes de Colombo chegar. Você já se perguntou porque eles chamavam o povo daqui de índios? Aqui não existiam índios. Aqui não era a Índia. Mas você tem “índios norte-americanos”, “índios sul-americanos”, etc. Nossos ancestrais são de outro povo. Um povo bem mais antigo, presente aqui desde muito tempo. Mas eles não querem que você saiba disso (Bambaataa retira da sua bolsa outro livro e aponta). Eles criam sociedade secretas e mascaram a história. Eles não querem que você saiba o que aconteceu e o que acontece. Você sabia que muito da crença cristã vem dos antigos egípcios? Porque eles não desejam que você saiba disso? Porque eles não querem que você saiba quem estava lá antes dos europeus chegarem? Eles escondem tudo!

Cinthia: Eu não sei se me fiz entender, mas gostaria de saber, na realidade, se você acha que nós continuamos unidos pelo fato de sermos negros.

Bambaataa: Pois bem… Eles desejam que nós continuemos brigando entre nós. “Eu sou preto. Eu sou marrom. Eu sou amarelo. Eu sou branco”. Essas são as regras impostas. Você está vendo essa foto? (Bambaataa aponta para uma figura artística muito antiga numa foto). Ele é muito parecido comigo e contigo. Tem nariz grande, achatado, lábios grossos. Esses são seus ancestrais, que estiveram aqui. Eles estavam lá nos Estados Unidos muito antes de alguém por lá chegar. E eu não falo somente seu ou meu ancestral porque ele é preto, mas de todos nós independente da cor! E é assim que a supremacia branca se mantém. Eles não te ensinam isso. Você já se perguntou porque será que europeus e americanos são tão ricos? Ora, eles roubaram essa riquesa dos povos antigos! Roubaram tudo de nossos ancestrais. Você era rica no passado! Eles se apoderaram de tudo.

Pergunte-se: porque vemos tantos obeliscos e figuras piramidais por todo lado em São Paulo ou em outras grandes cidades do mundo? Isso tudo vem da cultura de nossos remotos ancestrais. Do Egito antigo! Repare nos livros sagrados da Bíblia e em muitos outros existentes. Todos contam as mesmas histórias de formas diferentes. Todos baseados nos relatos egípcios.

BF: Conte-nos sobre a época que tínhamos os punks juntos com os negros curtindo o hip hop. Como foi essa experiência?

Bambaataa: Sim, eles estavam lá junto conosco. Participando das festas que fazíamos. Os punks foram o primeiro movimento europeu a abraçar a cultura hip hop. Nós devemos muito respeito aos punks e ao seu movimento. Eles não tinham medo de se aproximar dos negros, das festas. Eles ouviam James Brown e “caiam no funk”, eles ouviam David Bowie e “caiam no funk”. Nós tínhamos até punks fazendo música rap!

20070606125545 Hip Hop, 4 décadas de história e resistênciaCinthia: E o racismo norte-americano? É diferente do racismo no Brasil?

Bambaataa: O racismo é, em todo lugar, basicamente o mesmo. Você tem a posição de poder e o topo da coisa e tem a parte de baixo. A supremacia branca se coloca no topo e deseja ver a gente embaixo. Mas eles não percebem e não querem que você saiba que o negro pode vir em muitas tonalidades. Ele pode vir claro, quase branco, como Carmem Miranda ou como Gerson King Kombo ou Nelson Mandela. Mas eles querem que vocês briguem entre vocês. Até mesmo os brancos europeus são seus filhos, pois você ajudou a concebe-los.

Você acredita em Jesus, em Deus, em Xangô. Mas eu posso vê-la como uma deusa. Eu posso vê-lo como um deus. Você me atinge em espírito muito antes de eu ver sua cor. Mas eles não querem que você saiba disso. Eles não querem que você saia da “caixa de matrix”. Olha pra lá (Bambaataa aponta para a televisão). Eles te contam mentiras. Eles te controlam por lá.

BF: Para finalizar, envie uma mensagem a todos da cultura hip hop. MCs, Dançarinos de Rua, Graffiteiros, DJs.

Bambaataa: Nós podemos amar a cultura hip hop, mas se não tivermos conhecimento de como podemos modificar nossa situação, nossa comunidade e nosso espaço e aprendermos a respeitar nossos ancestrais, seremos sempre escravos. Ame a você mesmo, ame seus ancestrais, ame seu povo e tente fazer algo por você, pelos outros e pelo seu povo. Mas, principalmente, respeite a mãe terra!

Porque você pode amar o hip hop, o funk, o jungle, o house, o gangsta, as festas, o sexo, mas se você não respeitar a mãe terra ela irá te cuspir pra fora. Tornados, terremotos, tsunamis… Ondas maiores que esses prédios (Bambaataa aponta para os altos prédios) te varrerão. Porque a mãe terra é uma entidade viva e você precisa respeitá-la. Porque se você não respeitá-la apenas uma faísca do sol te queima e te transforma em pó. Esse é o aquecimento global. Porque se nós não nos preocuparmos com o aquecimento global você não precisa mais se preocupar com o hip hop, ou com o rock´n´roll, ou com o jazz, nem com gangstas ou qualquer outra coisa, porque a natureza se encarrega de te dar um belo chute na bunda (risos).

Designer Gráfico e Editor, Noise D tem formação em Comunicação Social e está no time do Bocada Forte desde 2001.