O Som É | DMN em ‘Lei da rua’, de 1992 | Bocada Forte
ESPALHA --->
A música “Lei da rua“ está no primeiro disco do DMN, o ‘Cada Vez + Preto’ (1992), um dos discos mais sérios do Rap brasileiro. Infelizmente, um disco atual em relação ao tema das letras, o principal deles, o racismo.
O DMN representava para a zona leste o que o Racionais representa para a zona sul. No Rap os dois se equivaliam e eram muito próximos. Uma pena nunca ter tido uma música que unisse os dois grupos.
Defensores do Movimento Negro, do extremo leste de SP, o DMN ficou marcado como o grupo de Rap da Cohab II (Conjunto Habitacional José Bonifácio).
A Cohab II, foi durante algum tempo, uma das regiões mais violentas de São Paulo. Na verdade qual o bairro de periferia que não estava entre os mais violentos nos anos 80 e 90? Muito dessa violência por culpa da polícia, justiceiros, pés de pato, grupos de extermínio. Essa música retrata essa realidade, mas ao mesmo tempo traz muitas mensagens conscientes. A letra é do Xis e foi uma que ele levou para o seu primeiro disco solo, o ‘Seja Como For’, com o título “2092, a lei da rua”, com outro instrumental, mudanças na letra e convidou pra participarem Ébano (Potencial 3) e Kid Nice (Sistema Negro). A ideia é a de uma música feita 100 anos depois da primeira versão.
Ouça a música “2092, a lei da rua”
Com tudo que vem acontecendo no país em relação a violência urbana, governos que dão carta branca para a polícia matar, a molecada entrando pro crime e matando por qualquer motivo (e até sem motivo), policiais matando inocentes com a desculpa de estar combatendo o tráfico; e o mais triste, crianças sendo baleadas por quem deveria protegê-las… Essa música tem uma passagem que eu venho há dias refletindo sobre ela:
“Quantos já foram, foram tantos que nem lembro mais
Pai preso, filho solto, plano eficaz
Nos separaram de tudo, nos dividiram aos poucos
ao ponto de matarmos uns aos outros
A solução de toda treta vai bem mais além
eu tô ligado pela rua foi que me eduquei”
A divisão e a falta de unidade sempre foi um prato cheio para quem quer dominar – dividir pra conquistar. Por aqui isso funciona a séculos. Em outra parte Xis canta: “não reconhece o inimigo um palmo a sua frente”. Estamos nós, todos periféricos, divididos desde sempre e agora muito mais. As novas gerações já estão nascendo com novas divisões e estão sendo ensinadas a não ter unidade. Todos temos um inimigo em comum e que hoje é declarado, assumido, e não se esconde atrás de nada. Mesmo assim, seguimos nos dividindo, sem reconhecer o inimigo um palmo a nossa frente.
Eu gosto de todas as músicas desse disco, mas esta faixa, em especial, é um dos Raps que tenho na minha cabeça desde a primeira vez que ouvi. Eu sou da zona leste, vi a Cohab II quando muitas ruas ainda eram de terra e os prédios nem estavam todos acabados. Era criança, começo dos anos 80. Muito tempo depois, acho que 1994, eu fazia uns Raps e um mano DJ, hoje evangélico, me chamou pra rimar em um evento que acontecia todo domingo, justamente na Cohab II, na Caixa D’Água – lembro até o ônibus que pegava, o 342-X / Penha-Conjunto José Bonifácio. Eu fui pra cantar uma música que falava sobre a violência policial, nesse dia o Xis apareceu, mas não ficou pra assistir, só passou por lá.
O evento era organizado pelo DJ Master X, até hoje em atividade. Trombei ele outro dia, mais de 20 anos depois e nem acreditei… Mas enfim, chega de lembranças. É só pra mostrar que me identifiquei com este som logo de cara e com ele aprendi sobre unidade. Temos mais semelhanças do que diferenças.
A molecada que tá entrando pro crime, matando por um celular, tem a mesma mentalidade dos que nos anos 90 matavam por um tênis. Quem morre é pobre, quem mata e rouba é pobre, quem prende e mata também é pobre. Por isso a afirmação “a solução de toda treta vai bem mais além” continua fazendo sentido. A construção, durante a ditadura, de Conjuntos Habitacionais nos extremos da cidade, longe de tudo, sem escolas, sem transporte, com iluminação e ruas precárias é o “nos separaram de tudo, nos dividiram aos poucos”. Claro que o Xis pode estar se referindo a outro tipo de separação e divisão. Pode ser. E faz todo sentido, mas a interpretação e adaptação para os dias de hoje se encaixa perfeitamente.
A música tem quatro partes e antes da última parte, colocaram a voz de uma repórter, que é a Sharilayne, falando sobre mais uma morte na Cohab. O som foi produzido por pretos, direcionado pra pretos e com razão, pois eles eram e continuam sendo as maiores vítimas, seja das balas ou do encarceramento. Mas mesmo assim, brancos e pobres periféricos se identificaram. Inclusive, em uma parte da letra, ele rima: “preto ou branco não importa, não existe lado / sobreviver é a lei, é o necessário / continuar a respirar após os tiros que foram e vieram”. Mesmo entendendo o que ele quis dizer, é preciso dizer que ser preto ou branco importa muito e faz toda a diferença na triste e revoltante estatística, que continua sendo extremamente negativa mais para pretos do que qualquer outro corpo.
Nos anos 90, infelizmente, sempre infelizmente, a realidade era a mesma e até pior, Xis e o DMN sabiam disso melhor do que ninguém e finaliza:
“DMN o bumbo, a caixa, o tempo, o sample, pretitude, atitude
Preto! Você precisa de sua raça viva
Cuspir ou não cuspir pra cima
A cidade sem lei tem e vai te oferecer
Base minha base leva além
Mano entenda a treta pode ser você
Enquadrado em uma esquina
O alvo paga pau de um mano um tira
Abraços em seu pai sua mãe sua mina
Valeu! Vai com Deus!”
A música foi produzida pelo Elly, assim como todas as outras desse álbum. Apenas a música “Já não me espanto” não foi produzida por ele. DJ KL Jay é quem assina. Pedi ajuda aos especialistas para saber o que foi usado na construção da música.
Black Alquimista, grande mestre dos samples, das produções e equipamentos analógicos, me ajudou a saber de onde foi tirado o refrão. E como nada é por acaso, também tenho o disco com o refrão, que foi baseado na música “Vai com Deus”, de Tony Bizarro. Noise D falou com o próprio Elly e ele desvendou todos os samples: o refrão foi interpretado por um sambista da época, chamado Osmir. A bateria é da música “Let a woman be a woman”, de Dyke And The Blazers, e o baixo é da música “One of those funky things”, do Parliament. Parabéns ao Elly, pois fazer esse trampo em 1992, talvez até antes, foi uma revolução!
Clique nos nomes das músicas e vai montando o quebra-cabeça.
Ouça a música
As fotos do DMN utilizadas aqui estão no Acervo do Bocada Forte, provavelmente porque houve uma época em que o BF era responsável pelo site de vários grupos. Tínhamos um projeto para o site do DMN que acabou não acontecendo e creio que essas fotos sejam dessa época, assim que soubermos quem foi o fotógrafo, daremos os créditos.
Ouça o disco completo
1 comentário