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Opinião | ‘Transbordo’, por Luciénè Cortes

Opinião | ‘Transbordo’, por Luciénè Cortes

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James Baldwin

“Mas eu era criança e quando uma criança coloca os olhos no mundo, ela tem que usar o que vê. E sua formação vem do que você vê, da maneira como você descobre o que significa ser negro em Nova York, e depois no país inteiro… Isso não é um problema racial. É um problema de estar disposto a olhar para a sua vida e ser responsável por ela, e então começar a mudá-la”. James Baldwin

Escrevo quando transborda, seja dor ou amor e tudo que tem acontecido nos últimos dias, somado aos meus 3.9, transborda hoje em meus dedos e derrama nos teclados do notebook.

E a primeira indagação do transbordo é “como ser apenas humana?”. Não alguém, não número, não máquina, não potência, não força, não luz. Apenas humana.

Não tenho a resposta e envolta em todo sentir que não cabe mais em mim transfiro para o texto o questionamento, na esperança de que essa reflexão alcance corações, não para me responder, mas para refletirmos juntos.

Das outras angústias que se somam nos dias, eis algumas que pra muitos nem sequer passa pela cabeça que existam, como: Quando conversar com meu filho de 14 anos, negro, entrando na adolescência, o que foram os assassinatos recentes, causados pelo racismo? Ou simplesmente explicar o que é racismo e que ele obrigatoriamente precisa andar com um documento, usar boas roupas, estar com o cabelo “ajeitado”, não responder e nem se movimentar bruscamente caso seja abordado pela polícia. Pedir para ele redobrar os cuidados se durante a abordagem policial estiver com amigos brancos.

Trailer do documentário – ‘Eu Não Sou Seu Negro’

Pensamos estar distantes das consequências da segregação em outros países e isso é fruto do mito da democracia racial “todo brasileiro tem sangue criolo”. Sangue até pode ter, situação social não.

Quantos destes simples questionamentos você teve nos últimos dias? Se você for pretx a resposta certa é – “muitas vezes”. Se for brancx, a maioria vai refletir isso a partir da leitura desse relato e mesmo assim não conseguirá atingir esse sentir porque não há empatia que dê conta dessa brutalidade que os corpos pretos encaram todo “santo” dia – com aspas mesmo porque de abençoado não tem nada. No máximo você terá simpatia pela dor transbordada pelos meus dedos.

O que querem de nós? O que queremos de nós? O que define e desata esses nós?

Também não sei responder. Mesmo que dentro de mim algo grite para transformação do atual momento, tem uma transmutação do passado impossível de se fazer, pois ele se confunde com o presente, enquanto tentamos imaginar o futuro com o questionamento de até quando.

Nós, eu, você, ele, somos fruto de uma construção muito perversa de um inconsciente aniquilador do diferente. Que aparentemente foi construído para ordem de um sistema completamente desorganizado e vendido com roupagem de amor. Essa construção de país pós período escravagista e de slogan ‘Somos Todos Libertos/Diversos’ é tão cruel, mentirosa e falha, que não nos deixa sair desse emaranhado podre de uma elite atrasada, versus uma filantropia salvadora tal qual Princesa Isabel.

Transbordando mais questionamentos… Quantxs somos em festas de família dos amigos? Encontros em restaurantes, casas de show, teatro, cinema, trabalho? Quantxs estamos solteirxs? Quantas somos mães solo? Quantxs estamos em subempregos? Quantxs cuidam da saúde mental nessa triste e dura realidade de sermos Pretxs no Brasil?

Em alguns momentos usei todos os dedos das mãos e outros eles mal se moveram para contagem?

Cativeiro, senzala, porão do navio negreiro ainda habitam nossa mente porque não há descanso.

Eu tenho minha cama quentinha, meu lugar de conforto para de fato descansar o corpo físico e recomeçar tudo no dia seguinte. A maioria dos meus não tem as mesmas condições e se quer tempo para essas reflexões. Vivem em constante transbordo e já não percebem mais, como uma anestesia coletiva que nosso cérebro adaptou e faz o mesmo de quando nos ferimos gravemente, paramos de “sentir dor”.

“Por causa de um fenômeno chamado analgesia induzida pelo estresse (SIA). Seu corpo – que ainda reage como o de um Homo sapiens pré-histórico – não está tão preocupado em sofrer com o machucado. A prioridade é não deixar o estrago aumentar – e te ajudar a fugir do animal feroz e dentuço que te atacou, por exemplo.

A SIA, portanto, é o jeito que o seu corpo dá de impedir que você preste atenção ao ferimento para fazer coisas mais importantes. Ela faz isso graças a um coquetel de substâncias como adrenalina (que aumenta sua capacidade de concentração) e opioides endógenos (analgésicos da família da morfina, só que produzidos pelo próprio organismo), que bloqueiam o caminho da dor pelos nervos.” https://super.abril.com.br/blog/oraculo/por-que-as-vezes-nao-sentimos-dor-logo-apos-sofrer-um-ferimento-muito-grave/

“Sempre fiquei chocado, nos EUA, com a pobreza emocional tão imensa e com o terror pela vida humana, pelo toque humano, tão profundo, que praticamente nenhum americano parece capaz de conseguir qualquer conexão viável e orgânica entre sua postura pública e sua vida particular.

Esse fracasso da vida particular sempre teve o efeito mais devastador sobre a conduta pública americana e sobre as relações entre negros e brancos. Se os americanos não estivessem tão aterrorizados com a vida deles, nunca se tornariam tão dependentes do que chamam de “problema dos negros”. Esse problema, que eles inventaram para salvaguardar a pureza deles, transformou todos em criminosos e monstros, e está destruindo todos eles.” James Baldwin

O racismo destrói a todos, intimamente os brancxs e física ou emocionalmente aniquila os prestxs.

Acredito que a devolutiva pela violência nunca é um bom caminho, mas no combate ao ódio o primordial é manter-se vivo. Diferente do ódio pelo ódio, esse que cresce em quem não nos enxerga como humanos. Esse que faz com que escravizem povos, menosprezem a vida dos diferentes, guerreie por petróleo, armas nucleares, poder.

Mulheres brancas estão de TPM, mulheres negras são raivosas por natureza.

1ª e 2ª guerra foram defesas de território, negrxs se manifestando pela sobrevivência “sem justiça, sem paz” são baderneiros, terroristas que destroem patrimônio.

Nas manifestações ditas cristãs é normal falar em línguas, emitir mantras, ter contato com espíritos é dádiva divina. Já o Terreiro é a morada do capeta.

Um altar budista é bonito, é sagrado. Um congá da Umbanda é do demônio.

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Capa do livro

“Olhe o preto!… Mamãe, um preto!… Cale a boca menino, ele vai se aborrecer!  – Não ligue monsieur, ele não sabe que o senhor é tão civilizado quanto nós!” relato de Frantz Fanon

Dois pesos, várias medidas, muita tristeza… racismo!

“Queria ser homem, nada mais que um homem. Alguns me associavam aos meus ancestrais escravizados, linchados: decidi assumir. Foi através do plano universal do intelecto que compreendi este parentesco interno – eu era neto de escravos do mesmo modo que o Presidente Lebrun o era de camponeses explorados e oprimidos pelos seus senhores.” Frantz Fanon

Esperam que sejamos brandos, pacíficos, doutrinados… adestrados para seguir uma cartilha que não foi escrita por nós e que não aceitamos como verdade absoluta. Por favor não se enganem, eles descartam os que seguem a cartilha e tentam dar luz a possibilidade de transformação diferente da estrutura segregacionista. Marielle Presente!!!

“Como assim? No momento em que eu esquecia, perdoava e desejava apenas amar, devolviam-me, como uma bofetada em pleno rosto, minha mensagem! O mundo branco, o único honesto, rejeitava minha participação. De um homem exige-se uma conduta de homem; de mim, uma conduta de homem negro – ou pelo menos conduta de preto.” Frantz Fanon

Voltei à borda do copo sabendo que em poucas horas transbordarei novamente, porque levantar da cama já é um ato de coragem que por si só traz à tona a realidade nada fácil para o Povo Preto.

RyaneLeaoCapa Opinião | 'Transbordo', por Luciénè Cortes
Capa do livro

“Tem sido foda
Tem sido duro
Eu sei, eu sei
Então vem cá
Vamos ri de bobagens
Vamos de cafuné
Copos cheios
E doçura
Pra amenizar o amanhã”

Ryane Leão


Referências:

Documentário: ‘Eu não sou seu negro’, James Baldwin
Artigo: ‘Por que às vezes não sentimos dor logo após sofrer um ferimento muito grave?’
Livros: ‘Tudo nela BRILHA e QUEIMA’, Ryane Leão – Clique aqui e baixe o livro
‘Pele Negra, máscaras brancas’, Frantz Fanon – Clique aqui e baixe o livro

Opi2-1 Opinião | 'Transbordo', por Luciénè Cortes

Menina mulher da pele preta, mãe solo de dois tesouros. Pós-graduada em Gestão de Pessoas, palestrante e apresentadora do Programa Orunmilá. Alguém que acredita nas pessoas e no poder da desconstrução e construção.