Opinião | Colonização no Rap. É preciso entender o que fizemos nos verões passados. Por Gas-PA
ESPALHA --->
“Precisamos de um líder de crédito popular
Como Malcolm X em outros tempos foi na América.
Que seja negro até os ossos, um dos nossos
E reconstrua o nosso orgulho que foi feito em destroços”.
Racionais – “Voz Ativa” (1992)
Bem mais que “um líder de crédito popular” – um indivíduo, portanto – felizmente eu tive todo um movimento cultural pra reconstruir o meu “orgulho que foi feito em destroços”. Eram vários “líderes” que, através de suas artes, como os versos citados acima, conquistavam, com toda legitimidade, o “crédito popular”. Três décadas se passaram e o Rap nacional se tornou uma verdadeira caricatura de si mesmo. Uma inquietante deformação daquilo que conhecemos como “original Rap nacional”. Não nos reconhecemos na arte e muito menos nos seus novos protagonistas: brancos de classe média, além dos pretos e brancos de periferia que tentam se enquadrar num perfil agradável ao gosto desses brancos de classe média. Parece que entramos num beco sem saída. Só que, na verdade, nenhum beco é sem saída pra quem sabe olhar pra trás.
Ouça a música “E eu odeio ostentação”, do grupo Levante
Apesar de ouvir e fazer Rap antes, foi em 1991, em São Paulo, que conheci a Cultura Hip Hop. A partir de então, meio que passei a frequentar a cena de lá. Um mundo sedutor se apresentava a mim. Era uma época em que a maioria dos jovens pretos de periferia do Rio se encontrava nos finais de semana – vestindo roupa de surfista da Zona Sul – pra dar porrada uns nos outros, nos chamados “Bailes Funks”. Em São Paulo – fosse nos bailes de Hip Hop, fosse na clássica São Bento, ou nos shows de Rap – eu via jovens, tão pretos e tão periféricos quanto aqueles do Rio, se amarem, se respeitarem e se orgulharem de ser pretos. Tudo envelopado em roupas e acessórios que eram só nossos, pra dançar uma dança que era só nossa, ouvindo músicas que eram só nossas.
As músicas retratavam a dura realidade vivida por essa gente, e do orgulho de si que era preciso pra enfrentar essas adversidades. Esse orgulho só era alcançado através de um processo de autoconhecimento, que também era cantado nos Raps daquela era. Havia brancos nesses espaços? Sim, lógico. Mas era preciso uma boa dose de não-racismo pra não se sentir mal num ambiente tão hostil aos racistas. Hostilidade evidente não só nas músicas, como na postura, no comportamento e também no critério das bocas a se beijarem e dos corpos a se comerem.
Devia ser agressiva a paz que reinava entre nós nesses encontros. Conseguíamos ser agressivos até no visual. E isso não se restringe aos líderes pretos estampados nas camisas. Era, já, a nossa beleza. Uma beleza com conteúdo político que só é permitida, só é acessível a quem tem muito orgulho de si e amor-próprio. E espaços repletos, tomados por pretos com todo esse orgulho de si e todo esse amor-próprio são ambientes extremamente hostis aos brancos racistas. Por isso, a parcela minoritária de brancos que frequentava a cena, só frequentava porque respeitava e sabia se portar como minoria que era em espaços de reconstrução da dignidade daquela maioria herdeira do atraso de mais de 300 anos de escravidão.
Falei de uma época em que o Rap no Brasil era ainda uma criança. Nem tinha completado seus 10 aninhos. Ainda éramos totalmente dependentes das referências estado-unidenses. Não só nas formas como nos conteúdos. Acontece que nesse mesmo momento o capital dava início ao seu ataque feroz contra o Rap, lá no seu berço. A indústria do entretenimento do país que é o centro dinâmico do capitalismo mundial se apropriou da cena e, de posse dela, deu a ela a cara que ao capital convém. Nesse momento a vitrine do mercado fonográfico é inundada por um Rap que prima pela ostentação, apologia ao uso de drogas, rivalidade/regionalismo/fratricídio e misoginia. Isso se reflete em cheio na cena daqui.
Começa, então, uma transição lenta, porém visível aos olhos mais críticos. Vai daquele Rap comprometido com a nossa autovalorização, nossa união contra o inimigo comum, para um RAP bem próximo ao descrito no parágrafo anterior. Os grupos e MCs que se destacaram por nos trazer mensagens que outrora falavam da importância do autoconhecimento, da nossa união, sobre perigo das drogas e do consumismo, e pregar a luta contra os que nos exploram e nos oprimem, começam a falar de mansões, carros caros, joias caras, fazer apologia ao uso de bebidas caras e outras drogas ilícitas. Em proporção menor, se comparado ao congênere dos EUA, a mulher começa a cumprir papel semelhante ao das joias, bebidas, carros e mansões. E o outro preto é um personagem que começa a frequentar as letras dos Raps como aquele que merece ser morto a tiros.
Corrupção e violência policial, moradias precárias, educação e saúde sucateados, comunidades submetidas ao comércio varejista de drogas (pra enriquecer o playba), racismo, salários rebaixados, criminalidade, por um lado, e por outro, a busca pelo conhecimento para a auto organização para a resistência e os enfrentamentos necessários à superação de todas essas mazelas sociais. São temas que retratam a nossa realidade. Já mansões, carros caros, bebidas caras, joias, roupas, calçados e acessórios caros não refletem a nossa realidade, a realidade de 99% dos pretos. De uma certa forma esses Raps passaram a tratar da realidade da alta classe media branca. Não é mais sobre o nosso dia a dia, mas o dia a dia deles, dos playboys. Repare o movimento que o Rap faz. Ele sai de um ponto no qual é reconhecida a urgência de fazer emergir novos líderes como aqueles que se notabilizaram por lutar contra as desigualdades, pra chegar noutro ponto no qual a necessidade que se vislumbra é a de estar entre os que desfrutam das benesses dessas desigualdades. Agora quais os efeitos disso? É onde quero chegar.
Aquele amor próprio; aquela autoestima; aquela busca pelo autoconhecimento que nos levava à referências como Malcolm X, Martin Luther King, Steve Biko, Black Panther e outras personalidades pretas; a autovalorização expressa na nossa estética, na nossa cultura e numa certa dose de cuidado com os nossos, nos servia como uma capa protetora, já que criava uma atmosfera totalmente desagradável aos que nos queriam ver desorientados, autodepreciados, com ódio de nós mesmos, acomodados na própria desgraça e buscando nos brancos os nossos referenciais estéticos, culturais e morais. Quando as músicas que nos mobilizavam pra esses ambientes começam a espelhar a vida da playboyzada, perdemos aquela blindagem que nos protegia. Cria-se, a partir de então, um ambiente agradável aos boy, com o qual eles se identificam plenamente.
De novo: joias e bebidas finas, carrões importados, roupas, tênis e acessórios das marcas mais caras, mansões, mulheres pretas só pra transar e homens pretos tomando tiro. É ou não é o paraíso da branca classe média racista? É nesse momento da história que eles começam a se chegar. Mais que isso. A sua chegada é louvada. Eu mesmo tive o desprazer de flagrar um grande ícone da cena, no palco festejando a integração entre as raças e classes que o Hip Hop estava promovendo! Não foi preciso nem oferecer espelhos, ou aguardente como há 5 séculos. No Rap nacional eles encontraram a porta aberta e o tapete vermelhos estendido.
Pois bem. Só reclamar da incômoda presença desses alienígenas no nosso rolé, não é eficaz. Mesmo que eu não tenha a fórmula da “purificação” do bagulho, algumas certezas eu tenho. Uma delas é que a reflexão proposta por este texto não é o único e nem o mais importante aspecto a ser discutido. As determinações materiais, econômicas precisam ser profunda e cuidadosamente debatidas. Sem isso, não há luz no fim do túnel. Outra, é que essa discussão tem que ser combinada com um balanço da nossa caminhada até aqui. É necessário identificar os erros. Sem culpas. No lugar delas, muita disposição e empenho pra fazer com que o Rap nacional volte a ser um terreno minado pra essa gente indesejável.
Gas-PA | PretaSaudaçõeSocialistas
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