Carregando agora
×

Opinião | A anti-cordialidade dos manos na luta contra o fascismo

Opinião | A anti-cordialidade dos manos na luta contra o fascismo

ESPALHA --->

Por Arthur Moura*

Que compromisso tem a cultura Hip Hop no contexto sócio-político atual? Pensemos mais uma vez esta questão urgente. O que é preciso pensar e resolver para que a cultura de resistência volte a oferecer perigo aos opressores, que aumentam em níveis alarmantes a violência contra negros, jovens, trabalhadores e periféricos? É possível, mesmo diante de um decisivo processo de mercantilização da cultura (o que acabou por modificar seus valores), retomar a consciência crítica para que a cultura Hip Hop possa dar sua contribuição a uma possível emancipação humana? De uma forma geral, devido a complexidade do processo, é algo difícil (e ainda distante) de acontecer, existindo apenas em pequenas células desarticuladas. Tudo depende, na verdade, do esforço para uma organização de tipo revolucionária prezando sobremaneira a construção de uma consciência crítica pronta para embates indo absolutamente contra as conciliações com o inimigo. E quem é o inimigo? A burguesia e suas classes auxiliares.

A anti-cordialidade é um termo usado no livro de Rafael Lopes de Sousa. Logo na introdução do livro, Margareth Rago diz o seguinte:

“A anti-cordialidade pode ser lida não apenas como rebeldia e insubmissão juvenil, como um gesto de protesto, mas também como um desejo de que a preocupação pelo ‘bem comum’ faça parte da agenda dos governantes e políticos de modo geral. A ‘República dos Manos’, nesse caso, expressaria um desejo de transformação social, de construção de relações sociais fundadas em valores éticos e libertários, como a solidariedade, a justiça, a igualdade e o respeito à diferença.”

E Sérgio Vaz, também logo na introdução do livro, diz o seguinte em seu “Manifesto da antropofagia periférica”:

“É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão. Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades.”

Essas duas breves passagens refletem a opção pela dominação dos segmentos historicamente subjugados pelo Estado e pelo capital na medida em que continuam resilientes aos aparatos da dominação burguesa como a representatividade parlamentar e a legalidade jurídica, elemento estruturante da dominação de classe. Quem ainda não compreendeu o que significa a jurisdição burguesa recomendo a leitura do livro A Formação do Estado Burguês no Brasil de Décio Saes. A visão de Rago e Vaz é o que podemos chamar de progressista, portanto conservador. O progressismo, grosso modo, é apenas uma ala do conservadorismo. Para compreender melhor o que estou falando basta assistir ao documentário “Conservadorismo em Foco: um filme sobre a ideologia burguesa”.

Os governantes e políticos nunca abriram mão de sua função social que se restringe basicamente em gerir a crise do capital sem afetar as bases da dominação burguesa que é da ordem econômica. Políticos de “esquerda” são tão nocivos aos oprimidos quanto os de direita, pois de uma forma geral também oprimem, matam e dão migalhas para os trabalhadores ainda que afirmem o contrário em seus discursos. E o “artista-cidadão” defendido por Vaz é aquele que não transgride, por exemplo, a jurisdição burguesa que é historicamente racista e funciona como elemento normatizador das relações sociais. O “artista-cidadão” é aquele adaptado às necessidades do capitalismo incapaz de romper definitivamente com as formas de dominação. A recusa pela revolução expressa por Vaz é a aceitação da mediocridade que se diz repelir.

O cidadão caracteriza-se como categoria ao mesmo tempo formal presente nos regimentos da democracia representativa, como também é aquele que cumpre deveres imprescindíveis à manutenção do Estado. Assim, o Estado lhe concede direitos, o que é absolutamente desproporcional se pensarmos na enorme gama de privilégios da burguesia. Em outras palavras, o cidadão é aquele que serve ao Estado, de uma forma ou de outra. A lei é toda essa estrutura que fundamenta os comportamentos e as mentalidades a um regime de obediência. O cidadão que se encontra numa posição de revolta contra essa disposição torna-se automaticamente um elemento a ser neutralizado pelos dispositivos da ordem. E para que se cumpram as leis é necessário o monopólio do uso da violência como instrumento inquestionável. David Whitehouse em “As Origens da Polícia” diz o seguinte sobre a lei:

“Apesar do que possamos ter aprendido em sala de aula, a lei não é o marco no qual opera a sociedade. A lei é o resultado de como a sociedade funciona, mas não nos diz como as coisas realmente funcionam. A lei tampouco é o marco em que a sociedade deveria funcionar, embora alguns tenham essa esperança. A lei é, na verdade, uma ferramenta nas mãos daqueles que têm o poder de usá-la, para alterar o curso dos acontecimentos.”

Percebemos, portanto, que a visão de Rago e Vaz não satisfaz a anti-cordialidade necessária ao rompimento. A leitura progressista da maioria de nossos artistas limita a ação transformadora ao nível da legalidade. Mas a legalidade não é respeitada nem mesmo pelo Estado. Ora, basta vermos que o atual governo Bolsonaro é o principal fora-da-lei neste processo, pois ascendeu ao poder por meio de golpe de Estado.

O rap de resistência é visto como algo ultrapassado. Por isso, quando há desacordos entre nós da cena Hip Hop o mais comum de se ouvir é o discurso do ‘respeite minha opinião que eu respeito a sua’, o que sacrifica o debate político tornando tudo questão de ‘opinião’

Não adianta ignorar, fazer piada ou simplesmente denunciar. O fascismo é força letal contra trabalhadores, negros, mulheres, gays, comunistas, anarquistas e movimentos culturais de resistência. A cultura Hip Hop, portanto, é alvo da ofensiva reacionária. Não a toa, bizarramente temos agora o “rap conservador” e quem abriu as portas do inferno foram os próprios rappers, por exemplo, aderindo ao projeto bolsonarista enviesado por organizações de extrema-direita financiado pelo empresariado como o MBL e o Vem pra Rua. Já sabemos dessa história. Mas outras mãos (muito antes do MBL) ajudaram a abrir essa caixa de Pandora. Por motivos complexos que envolvem inclusive a nossa própria sobrevivência fomos nós mesmos ao aderir ao mercado como instância privilegiada de organização, valores, estética, etc., que tornamos o compromisso apenas (quando muito) um discurso presente em letras de rap para conquistar uma juventude ainda sem identidade.

Somos responsáveis pelo avanço do fascismo na medida em que em nossos processos de socialização não demos conta de superar o autoritarismo e a conciliação com o inimigo usando discursos favoráveis a essa relação como se o mercado pudesse ser usado como plataforma de emancipação dos negros e pobres. O mercado na verdade é uma instância de dominação econômica, política e cultural. Para quem quiser compreender isso a fundo recomendo a leitura da minha dissertação de mestrado “O Ciclo dos Rebeldes: processos de mercantilização do rap no RJ”. Esse contato com o mercado elevou o moral de muitos que viraram ídolos consagrando-se na cena, mas relegou ao ostracismo formas radicais de pensar e agir contra a sociedade opressora. O rap de resistência é visto como algo ultrapassado. Por isso, quando há desacordos entre nós da cena Hip Hop o mais comum de se ouvir é o discurso do “respeite minha opinião que eu respeito a sua”, o que sacrifica o debate político tornando tudo questão de “opinião”.

Essa retórica dos rappers descomprometidos com a revolução social é importante mecanismo de dominação e alienação o que ajuda na manutenção de um certo status quo entre artistas de “sucesso”, mas que na verdade denuncia a sua completa miséria e falta de argumentos em debates importantes. Recentemente fiz um comentário criticando a postagem de um colega da cena do rap e este veio no meu privado tirar satisfações evitando o debate público dizendo que era para eu “respeitar sua opinião” numa tentativa desesperada de estancar o debate apagando as contradições. Nada mais sintomático em tempos de fascismo.

A opressão sendo estrutural só pode ser superada obedecendo também a um movimento estrutural de organização capaz de materializar a autogestão dos trabalhadores vendo-se livres dos patrões. A cultura Hip Hop por si só não pode revolucionar a sociedade, mas pode ser importante força neste processo. Por isso, a única saída neste momento é a organização revolucionária contra o projeto ultra-liberal que pouco a pouco deixa claro sua natureza fascista. E o que o Hip Hop tem a ver com isso? Os manos que fazem parte da cultura Hip Hop não podem mais ter dúvidas. Se não houver organização, serão trucidados impiedosamente, pois tudo que vai contra a orientação fascista torna-se automaticamente em arqui-inimigo do poder reacionário burguês. A postura dos manos deve ser antagônica aos valores do capitalismo que alimentam a máquina reacionária fascista. Isso quer dizer abrir mão de uma série de valores até então comuns na cultura Hip Hop. E isso também quer dizer ser radicalmente contra a orientação dos ídolos do rap que adoram o mercado e o capital ainda que se afirmem como resistência.

A arte de rua vem sendo sistematicamente criminalizada, sabotada, impedida de acontecer. A asfixia contra a arte de rua é uma resposta concreta contra o pensamento, contra a sensibilidade, contra as ações diretas, contra a vida

Muitos manos ainda desconhecem em profundidade o perigo iminente devido a uma precária formação educacional latente em nosso país, mas também devido ao entreguismo dos astros do rap que sucumbiram ao sucesso e ao mercado, tergiversando completamente o fundamento da cultura Hip Hop que é resistir contra a barbárie. O Hip Hop pode ser decisivo neste processo pois já vêm de longos processos de ocupação do espaço público como as rodas de rima, que apesar de tudo ainda carecem de uma politização capaz de desacelerar a opressão sistemática do Estado devido a uma orientação que preza a competitividade em detrimento da solidariedade entre os oprimidos.

A arte de rua vem sendo sistematicamente criminalizada, sabotada, impedida de acontecer. A asfixia contra a arte de rua é uma resposta concreta contra o pensamento, contra a sensibilidade, contra as ações diretas, contra a vida. Não se pode mais cantar nas ruas, metrôs e barcas e as rodas também sofrem com isso. Os poetas, músicos e artistas em geral, segundo a ordem atual das coisas, devem se calar e dar espaço ao obscurantismo ou a noções de arte muito rebaixada. É tão surreal termos que debater isso que somente o debate não adianta de absolutamente nada. É necessário o enfrentamento por meio de um posicionamento firme. É preciso denunciar, expor este absurdo e agir contra isso. Expor a vergonha alheia para que ela se torne ainda mais vergonhosa. É importante denunciar a polícia e mostrar do que ela é capaz de fazer em nome da lei e da ordem. É importante demonstrar matematicamente a desumanidade dos policiais. Impedir o acontecimento da arte é parte de um projeto societário fascista.

De uma forma geral a arte é o elemento que desenvolve os conhecimentos e a sensibilidade humana sendo fator decisivo para a emancipação das pessoas ainda que dentro dos limites de cada sistema sócio-político. A arte confronta, agrega e desenvolve diversos aspectos e potencialidades sendo muitas vezes a única experiência de muitos com o lúdico ou com a crítica social. A arte tem tanto uma função social como subjetiva e age de forma determinante em cada indivíduo. Por isso, a função do Hip Hop como cultura de rua é intensificar as ocupações dos espaços públicos oferecendo ao público não somente entretenimento, mas formação política afim de que saiam dali lutadores sociais comprometidos com a emancipação humana.

IMG3-7-150x150 Opinião | A anti-cordialidade dos manos na luta contra o fascismo*Arthur Moura é cineasta,
graduado em História pela
Universidade Federal Fluminense,
mestre em Educação pela
Universidade Estadual do
Rio de Janeiro.

Opinião Opinião | A anti-cordialidade dos manos na luta contra o fascismo