O seletivo olhar policial
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O braço armado do Estado sempre teve a função de manter os privilégios da elite branca, seja por meio da prisão, ou do extermínio da população negra
Por: Pedro Borges, para Alma Preta
Ilustrações: Vinícius de Araujo
“Glória em Canudos, e, de armas e almas”. “Feijó e Tobias, legaram-na aos seus, tornando-os vigias, da lei, e paulista”. “Por mercê de Deus”. Esses são alguns trechos do hino da polícia militar do estado de São Paulo, uma instituição que em nada respeita o fato do país ser laico e faz desastrosas homenagens, tanto ao massacre de Canudos, como aos líderes separatistas Feijó e Tobias, este último também símbolo da tropa de elite da polícia paulista, a ROTA.
Os dados da corporação têm justificado os ideais do seu hino. Pesquisa feita pelo programa SPTV via Lei de Acesso à Informação com base nos dados de 2014 denuncia que, para cada cinco assassinatos na cidade de São Paulo, um é cometido pela polícia. Das 1.198 vítimas de homicídio na capital, 343 morreram por policiais em serviço, o maior número dos últimos 10 anos.
A Anistia Internacional divulgou no mês de setembro (2015) um documento que coloca a polícia brasileira como a que mais mata no mundo. De acordo com os dados, em 2014, 15,6% dos homicídios no Brasil foram causados pela corporação. O levantamento da organização se concentrou na zona norte do Rio de Janeiro, onde se constatou que entre 2010 e 2013, 99,5% das vítimas eram homens, 79% negros e 75% jovens.
Caroline Borges, uma das referências da Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto, não apresenta surpresa frente aos números e rebate o discurso de que a policia é despreparada. “Não há nenhum despreparo da polícia e não há nenhuma coincidência na quantidade de mortes, sobretudo, no que tange a juventude negra. A gente entende que existe um projeto, uma estratégia nítida de extinção e de extermínio de todo o povo negro em África, ou na diáspora.”
Fuca, membro do Comitê Contra o Genocídio da Juventude Preta, Pobre e Periférica e integrante do grupo de rap Insurreição CGPP, completa a colocação de Caroline e expõe como a “policia, principalmente a militar, é treinada para combater o povo preto enfatizando na juventude. Agem nas periferias, vão atingir em menor grau com as pessoas com menos melanina, mas a regra segue a lógica racista!”
Não é de hoje!
A caça patrocinada pelo Estado à comunidade negra não é marca exclusiva do período escravista ou da sociedade atual. Djamila Ribeiro, mestranda em filosofia pela Unifesp e colunista da Carta Capital, recorda a Lei da Vadiagem de 1941, ferramenta do Estado Novo de Getúlio Vargas para perseguir e prender pretos e pobres. Em 1975, a suposta vadiagem chegou a ser o segundo maior motivo de prisões na cidade do Rio de Janeiro, com 1.956 casos. Depoimentos da época destacavam como 70% dos presos eram absolvidos por falta de provas, ou até por serem trabalhadores que no momento estavam sem documentação. Para Djamila, a lei exemplifica a sua constatação de que “a população negra já está sendo morta há muito tempo. Costumo dizer que essa ideologia de matar preto, essa ideologia do ódio, ela é antiga. Se a gente parar para pensar, já existiram várias formas de fazer isso.”
Em 1970, surge da união entre a antiga Força Pública e a Guarda Civil, a Polícia Militar, importante instituição na perseguição à população negra durante o regime ditatorial. A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo lembra como a oposição ao regime não se limitou a setores médios, urbanos e brancos. A luta negra enfrentou inúmeras dificuldades, sobretudo, pelo fato do Serviço Nacional de Informações (SNI) negar a existência do racismo no Brasil e creditar tal problema como invenção da esquerda. Rebelar-se contra as questões raciais, de acordo com a ditadura, era ir contra a nação e propagar ideais subversivos.
Mesmo diante da situação, o posicionamento contrário e radical da população negra durante o não democrático foi marcante. Além da criação, em 18 de junho de 1978, do Movimento Negro Unificado, MNU, uma das figuras mais representativas na luta contra o regime era negra, o líder revolucionário assassinado pela polícia Carlos Marighella.
Racismo Institucional
Não são apenas os números que evidenciam o seletivo olhar do Estado com relação à população negra. Em 2013, a polícia militar de Campinas-SP cometeu um “deslize de comunicação”, de acordo com o comando da PM, ao permitir a divulgação de uma ordem aos policiais para que abordassem “indivíduos da cor parda e negra”. A mensagem completa ajuda a entender o porquê há um alto número de homicídios entre jovens negros. O comunicado pedia foco “em abordagens a transeuntes e em veículos em atitude suspeita, especialmente indivíduos de cor parda e negra com idade aparentemente de 18 a 25 anos”.
Em Diadema/SP, material elaborado e distribuído pelo Centro de Comunicação Social da Polícia Militar de São Paulo dava dicas de segurança para situações corriqueiras do cotidiano. No folder, as pessoas brancas são apresentadas como bons cidadãos e o personagem negro, com o cabelo crespo e uma arma em mãos, é o criminoso que deve ser temido, evitado e combatido. Para Fuca, “a policia existe para defender o patrimônio da classe dominante composta na sua maioria pela elite branca, então a policia mantem incrustado todo o ideal para resguardar os privilégios dos que dominam. Nisso, tem a população negra como suspeita, o excedente na sociedade, ou como pessoas com potencial para o mal, para a vadiagem.”
“Depois que a polícia convence o público branco de que o negro é um elemento criminoso, a polícia pode chegar e interrogar, brutalizar e assassinar negros desarmados e inocentes. E o público branco é manipulável o bastante para lhes dar apoio. Isso faz da comunidade negra um Estado policial. Isso faz do bairro negro um Estado policial”, Malcolm X.
Bruno Candido, advogado presidente do Instituto Justiça Negra e membro da Comissão de Igualdade Racial da OAB-RJ, compactua com a “definição da ONU em visita ao Brasil em 2014, que o racismo no Brasil é estrutural porque permeia todas as áreas da vida.”. Não há, portanto, como negar que na polícia não há o racismo institucional. A entidade é guiada e direcionada pelo Executivo, parte da esfera do poder público que já teve uma série de posicionamentos racistas. Bruno lembra “que recentemente, o Governador do Estado do Rio de Janeiro afirmou publicamente que a ação dos policiais que impediram que jovens negros chegassem às praias, estava correta.”
Bruno, porém, faz uma importante ressalva. Ele destaca o perigo da atitude de parte da mídia hegemônica de justificar a existência do racismo no Brasil a partir de fatos pontuais. De acordo com o advogado, “não podemos cair no mesmo erro, posto que é um desfavor à causa. O Racismo no Brasil é estrutural e deve ser combatido com a promoção da diversidade nesta estrutura.”
Os diferentes olhares para a polícia
A letalidade da polícia e a sua seletividade ao matar, gera desconfiança na população negra e periférica. O rapper de 22 anos de idade, Murilo SDC, carregava muito dinheiro da empresa que o contratara enquanto trabalhou como office boy. Por isso, andava escoltado por seguranças, todos policiais. “Eu falava para eles, é o seguinte, eu estou aqui, trabalho com vocês, vocês são policiais, a gente troca ideia, a gente dá risada, mas eu não gosto de policia não. Uma vez um deles me respondeu assim, lógico que você não vai gostar de policia, você é preto, pobre, mora em quebrada, vai gostar de policia como? Então os próprios policiais sabem o quão racistas eles são.”
Se Murilo, preto, pobre e periférico, tem inúmeros motivos para não gostar da polícia, parte da população branca, rica e residente em prédios e condomínios de luxo, tem demonstrado afeto à polícia mais assassina do mundo.
“As pessoas das camadas mais privilegiadas veem a polícia como herói, os policiais como heróis, porque elas acreditam nesse discurso que é vendido, esse discurso de que bandido bom é bandido morto”, de acordo com Djamila Ribeiro. Ela apresenta que esse posicionamento tem por detrás “uma ideologia de ódio racial. É uma ideologia de ódio contra a população negra e faz parte dessa ideologia nos exterminar.”
Extermínios e os seus frutos
Essa ideologia é a que tem dado respaldo para a aceitação pública de determinados temas, como a pena de morte e a redução da maioridade penal. Ela alimenta também a criação e a impunidade aos chamados grupos de extermínio.
Relatório do serviço de inteligência do DHPP da Polícia Civil de 2011 indica que, entre 2003 e 2010, grupos de extermínio formados por PMs foram responsáveis pelo assassinato de 152 pessoas em São Paulo, em 70 ocorrências. 48% das vítimas fatais não tinham antecedentes criminais e, entre os sobreviventes, 82% não tinham passagem pela polícia. De acordo com o documento, 20% dos assassinatos foram motivados por vingança, 13% por abuso de autoridade, 13% por “limpeza”, 10% por cobranças ligadas ao tráfico, 5% por cobranças ligadas ao jogo e outras 39% das mortes não têm motivação aparente.
Mais do que matar, Fuca revela como alguns policiais tem o hábito de tirar fotos e gravar vídeos das suas vítimas. “Eles tiram sim que eu já vi. E tem casos que eles enviaram para a família. Um emblemático é o caso da favela da São Remo na Zona Oeste. Eles enviaram via whatsapp e chegou a notícia na família da morte. Esse foi o caso do colar de tiro no pescoço, quando mataram quatro adolescentes”. O “colar de tiro” é um modo de execução com tiros em todo o em torno do pescoço da vítima.
Ele ainda explica que se por um lado há repressão e cobrança dentro da corporação para “quem não matou muitos ‘bandidos’”, por outro, há incentivo e reconhecimento àqueles que mais matam. “Tem o fato de condecorar com medalhas, salvas de prata por relevantes serviços prestados, que na verdade, quer dizer por ser um bom combatente ao derrubar/matar pessoas.” Fuca relembra também “que policiais que participaram de massacres e casos emblemáticos de execuções são promovidos de cargo, viraram políticos, como o caso do Conte Lopes, Telhada, Cel. Ubiratan.”
O Cel. Ubiratan, o comandante da ação policial que culminou no massacre do Carandiru, foi duas vezes eleito deputado estadual em São Paulo. Nas duas oportunidades, seu número fazia menção direta aos 111 mortos do massacre. Pelo PPB, adotou o número 11190 e pelo PTB, candidatou-se com a numeração 14111.
Combate e Vulnerabilidade
O enfrentamento aos grupos de extermínio é uma tarefa árdua devido à dificuldade de se levantar provas e à vulnerabilidade de quem os investiga. Bruno Candido questiona “que advogado privado tem segurança frente a um grupo de extermínio? O advogado ser negro aumenta ou diminui essa segurança? A resposta é, nenhuma. E sim, aumenta.”
No dia 27 de maio de 2014, o advogado negro Sérgio Martins, sindicalista e ativista contra o racismo, foi assassinado em um restaurante no centro de Duque de Caxias. Fontes que por segurança não tiveram os nomes revelados, dizem que Sérgio temia a morte por ter descoberto irregularidades no sindicato que trabalhava, o que levou um funcionário a demissão. Bruno destaca também que há o rumor de grupos de extermínio como possíveis responsáveis pelo crime.
Por isso, ele contraria o mito da democracia racial e a ideia de que a ascensão social protege o negro e que a conquista do diploma universitário dá ao negro a condição de cidadão. “Não é real! O fato de ser um advogado diplomado, com visibilidade política não protege, e não protegeu. A ascensão é ótima e necessária para a população negra, mas a marca do alvo esta na cor da pela. A força da identidade negativa é ainda muito forte no Brasil. Ela levanta outro problema, humanos que merecem ou não ser protegidos, sob a visão de cidadão.”
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