O Rei da Noite Branca – Capítulo IV – O Novato
ESPALHA --->
Ciro se reuniu com seus amigos pra decidirem como iriam comandar a porra toda. Sentados em torno de uma mesa na sala do seu apartamento, falavam dos próximos passos. Sobre a mesa uma luminária dando um ar de jogatina. Pelos cantos da sala almofadas e tapetes davam um tom aconchegante. A fumaça escondia os rostos e o cheiro de cigarro barato enganava o nariz mais desavisado. Ouviam Snoop Dogg e uma bandeja de alumínio circulava com cocaína “sem mistura”, gritava quem servia.
– Nosso negócio só funciona porque os caras nunca tão contente. Filosofou Ciro para seus amigos, na reunião que ficou decidido o fim da parceria com o Muca e Taxo.
– Esse é o motivo que os cara tomba, mano. A fissura é uma bosta, mas é aí que a gente vai, enche o cu de dinheiro. Respondeu Cabeça, enquanto dava um teco.
– Cêis tem certeza disso? Os caras não vão aceitar assim essa palhaçada de nova ordem do comando. Gritou Claudinho.
Claudinho era o único que não se atirou de peito na jogada do Ciro e do Cabeça. Ele gostava da segurança que tinha com Muca e o Taxo. Tinha outras ambições, estava no tráfico pra ser bandido, queria crescer na vida, bem diferente do Ciro que tinha uma vida bem tranquila.
– Do que tu tá falando, caralho?! Questionou Arroz.
– É isso mesmo, Arroz. A gente vende pros caras mó tempão, aí do nada mandamo a merda… Vai da ruim.
– Mano, eu tô por vocês. O que for decidido eu fecho junto. Respondeu Bigode.
Bigode era um negrão forte pra caralho, vendia pouco e se divertia muito. Brigava bem e estava sempre próximo do Ciro e do Cabeça. Ciro pediu a palavra.
– Calma lá, gurizada. Ninguém ta traindo ninguém. Só tamo aqui a mais tempo. O pó deles foi bom, mas a gente já ta perdendo espaço. Na Osvaldo já tem o Dinho e o Paulão, chegaram com um pó melhor e mais barato…
– Como eles conseguiram isso? Questionou Claudinho.
– Eles tem amigos na polícia, mas tá suave. Vamos arrumar a casa e quem sabe abrir uma nova boca, hein? Agora segue o baile que hoje tem festa no Garagem e a noite é nossa!
Naquela noite tinha uma festa foda no Garagem, chamada Cinemiando. Era a festa da galera do cinema, pessoal gente boa. Era uma meia-dúzia de gargantas. Se achavam a última bolachinha do pacote, falavam de Fellini, Godard, Scorsese e um tal de Tarantino o tempo todo. Mas eram bons clientes, cheiravam bastante, gostavam de suruba e nunca reclamavam do preço.
Ciro fazia a mesma coisa todos os dias: tomava café na padaria do Português, almoçava no restaurante do Gordo ou do Castelhano e, à noite, antes de começar o trabalho, passava na Lancheira do Parque para ver seus amigos. O Português era um escroto relaxado, mas seu café era maravilhoso. A Lancheira do Parque era a segunda casa do Ciro. Amigo dos funcionários, Adilar, B.A. e o Ildo, esses nunca se envolveram com drogas e só falavam de futebol e davam boas risadas. O Gordo e o Castelhano nunca deixaram alguém sem almoço tendo dinheiro ou não. Tinham um sotaque forte e arrastado. Mal conseguiam se comunicar com o público. Vendiam almoços populares a um e noventa e nove. Era um rango bacana, honesto.
Uma tarde, o Castelhano estava limpando o salão quando viu uma Kombi estacionar na frente do Garagem Hermética. Os músicos subiram a escadaria com seus instrumentos, falavam alto, riam e bebiam. Castelhano terminou de limpar o salão, pegou um cigarro e foi caminhando em direção ao bar. Atravessou a rua e parou na frente. Lá dentro a banda chamada Primavera nos Dentes, passava o som. No repertório tudo lembrava o movimento hippie dos anos sessenta. Castelhano amava Carlos Santana e quando a banda tocou “Samba Pa Ti”, Castelhano viajou no tempo. Terminou de fumar seu cigarro e voltou para o restaurante. No poste de luz, um cartaz colado com durex anunciava o show: “Sexta, vinte e duas horas”. Naquela noite, Castelhano, sem falar com o gringo, abriu o restaurante. Não demorou muito pra chegar os primeiros perdidos atrás de cerveja mais barata que nos bares ao lado. Ele fechou o restaurante a uma da manhã. Apagou seu cigarro na frente do bar, pagou ingresso e subiu pra assistir o show.
O Garagem Hermética era num antigo casarão com salas grandes, corredores enormes. Gente diferente, música diferente, paredes finas e chão de madeira. Em alguns momentos a sensação era de que o chão iria cair. O fundo do bar era um espaço à parte, rolava uma festa da galera do cinema, mas os donos abriam depois dos shows para circular um ar com menos fumaça dos cigarros e becks. Pessoal gostava de ir lá pra fumar ao ar livre e dar uns tecos.
Um casal que morava ao lado do bar, curtia transar com sombra chinesa e fazia uns showzinhos para uma pequena plateia enlouquecida que ficava se drogando no pátio do Garagem. Castelhano pirou com aquela loucura toda. Quando estava voltando do pátio, passava pelo corredor e uma mulher pegou ele pela mão e o puxou pra dentro do banheiro.
– Oi bonitão, me ajuda aqui.
– Claro. Disse ele, sem ter ideia do que ela estava fazendo.
Castelhano não sabia como agir. A mulher abriu a bolsa e pegou um estojo de maquiagem. Do bolso veio a bucha. Esticou duas linhas generosas, com uma nota de plástico, fez um canudo e cheirou uma das linhas. Ofereceu a outra para o Castelhano que só imitou o que ela fez. Quando ele saiu do banheiro, falava um portunhol caribenho atraente e engraçado. Agora mais agitado, se sentiu mais sexy, se sentiu mais alto, se sentiu mais homem.
Fumou alguns cigarros enquanto tomava algumas cervejas. Ficou com a mulher que havia conhecido no banheiro. Beberam, dançaram, fumaram, se divertiram. Quando acordou, estava em casa. A mulher dormia ao seu lado. Havia camisinhas, latas de cervejas e plásticos de buchas espalhados pelo chão. Um prato duralex ao lado da cama, canudos e vestígios de um pó no nariz, na barriga, um pouco na base do pau. Percebeu uma dormência no cu. Ele pensou na noite anterior e sorriu.
O pó que o Castelhano cheirou, que lhe trouxera tanta euforia e momentos de extrema felicidade, era do Cabeça, braço direito do Ciro.
Antes da ideia do Cabeça, a cocaína que se vendia fazia alguns clientes terem diarreia. Uns vomitavam, outros escorriam o nariz. Mas com a mistura do Ciro nada disto acontecia. Ele usava remédios para anular a dor de barriga, para ânsia de vômito e um analgésico para dor de cabeça na manhã seguinte. Os clientes achavam a melhor cocaína da noite. O que eles não imaginavam era o efeito que aquilo faria no organismo alguns dias depois.
Ainda existiam “tomadores”, resquícios dos anos oitenta e pela Garagem era comum ver frequentadores com marcas nos braços e tornozelos. Tinha um cara, gente boa, chamavam ele de Leda. Foi um dos primeiros DJs de festa que circularam pelo Bom Fim, Tinha sotaque nordestino, era baixinho, cabeludo, usava roupas e botas de couro. Gostava de “pico”. Uma noite Leda passou no bar e pegou algumas buchas com o Cabeça. Duas semanas depois foi encontrado em seu apartamento. Seu estado de decomposição só não era mais avançado por conta do ar-condicionado que estava ligado na hora que ele bateu as botas. Ao lado do corpo encontraram uma colher com uma mancha de fogo, um isqueiro Zippo, uma seringa espetada no braço direito. Um prato com um pouco de pó e uma garrafa de whisky nacional ao lado da cama. No toca-disco pulava a agulha e repetia a frase “vale tudo”, da música do Tim Maia… Depois de algum tempo no necrotério, como não apareceu ninguém pra reclamar o corpo, ele foi enterrado como indigente.
Leda era um cara legal, segundo testemunhas que moravam no prédio. O fato de levar duas semanas pra alguém sentir sua falta, chamou a atenção de um policial, que havia acabado de sair da academia de polícia. O novato notou que existia um mundinho chamado Bom Fim e nele a vida não valia nada. Os legistas levaram o corpo pra fazer alguns exames.
O novato se chamava Rafael Meganha. Seu pai e seu padrasto também eram policiais. Mesmo assim se sentia bastardo. Seu pai não o assumiu e seu padrasto não gostava dele. A família toda sabia. Resolveu entrar pra polícia pra provar que poderia ser melhor que os dois. Quando recebeu o resultado da perícia, entrou na sala do inspetor chefe, que estava lendo um jornal.
– Oi, chefe.
– Fala Meganha, tá tudo bem?
– Sim, sim, eu queria ver com o senhor a possibilidade de investigar o tráfico de drogas no Bom Fim…
O chefe de investigação, parou de ler o jornal e levantou os olhos.
– Prossiga.
– Então, chefe. Estou acompanhando o caso do DJ morto e queria ir mais a fundo nessa história.
– Foi suicídio por overdose, não foi?
– Sim, foi, mas…
– Mas o que Meganha? Tu sabe que Bairro é o Bom Fim? Sabe quem mora por lá? Aquilo é um parque de diversões da maioria dos bacanas da cidade. O que tu quer, um deputado enchendo meu saco por causa do filhinho dele que foi preso por uma bucha?
– Não, senhor…
– Então, porra! Deixa esses merdas se matarem. Temos milhares de casos em aberto e tu quer brincar com essa gurizada de polícia e bandido? O que morreu era tomador, tinha mais que morrer mesmo.
– O senhor viu os exames?
– Não, por quê?
– O que menos tinha no organismo dele era cocaína, senhor.
– E?
– As misturas é que mataram ele.
– Meganha, deixa eles se matarem e me deixa ler o meu jornal. E fecha essa porra de porta antes de sair! Não aguento esse barulho de máquina de escrever. Essa merda parece a redação da Zero Hora, caralho! Porra, foda!
Rafael saiu da sala chateado, mas resolveu por conta própria investigar o caso. Bastou um único final de semana para ele perceber o esquema gigantesco que existia. Dois grupos abasteciam todo o Bom Fim. A turma do Ciro, na parte alta, e a gangue do Dinho e do Paulão na baixada. Naquele mesmo final de semana quatro jovens deram entrada no HPS: infarto, overdose ou disritmia cardíaca. Dois vieram a óbito. Na segunda-feira Meganha bateu na porta do chefe de investigação novamente.
– Bom dia, senhor.
– Fala Meganha.
– Eu queria falar sobre o tráfico no Bom Fim, chefe.
– Caralho, de novo?! Hoje está sendo um péssimo dia. Tenho pilhas de casos parados aqui na minha mesa, meu filho teve uma disritmia cardíaca jogando videogame no final de semana e tu me vem com essa porra de Bom Fim!? Deixa essa gente em paz e aproveita e me deixa em paz também, porra!
– Sim senhor. Ah, só mais uma coisa, senhor. Eu fiquei de campana esse final de semana…
– O que?
– Andei pela rua e fotografei algumas movimentações estranhas de usuários e traficantes. O senhor quer ver as fotos?
– Deixa aí, depois eu vejo.
Rafael deixou um envelope sobre a mesa e saiu. O inspetor chefe olhou por cima algumas fotos e numa delas viu seu filho dando um teco no lado do Bambus. Nem imaginava que o garoto frequentava aquele lugar, mas percebeu na hora o motivo da disritmia cardíaca do menino.
– Meganha. Gritou o chefe.
– Senhor. Rafael voltou a sala do Inspetor.
Pediu pra Rafael sentar.
– Meganha, que dia foi que tu tirou essa foto aqui?
– Sábado, por volta das onze da noite.
– Tá vendo esse guri aqui? Apontando para uma das fotos.
– Sim, senhor.
Com um tom mais brando.
– Fecha a porta e senta aí. Este aqui é o Isaías, meu filho. Não imaginava que ele cheirava essas merdas. Ele me disse que estava na casa de uma colega jogando videogame, quando se sentiu mal. Eu estava de plantão, conversei com o pai do guri, que me disse que estava tudo bem.
– Sinto muito, senhor.
– Ele é meu único filho. Sou viúvo e não quero enterrar meu filho, entende? Por isto, quero que tu te infiltre, faça umas amizades, descubra o que está acontecendo. Não quero que prenda ninguém, afinal de contas é só um bando de crianças. Quero os nomes dos peixes grandes, quem realmente está abastecendo o Bom Fim de cocaína.
– Sim, chefe. Rafael, ficou empolgado.
– Só uma coisa… Presta bem a atenção. Não te envolve. Tu vai conhecer muita gente legal e isso pode te confundir. Não esquece que tu é um policial. Quero relatórios semanais e quero que fique na cola do Isaías. Ele é tua responsabilidade principal nesse caso, entendeu?
– Sim, senhor.
Ciro acordou, assustado. Seu pager vibrava ao lado da cama. Na tela, uma mensagem dizia: “Mataram o Arroz. Se liga!”
Continua…
3 comments