O Rei da Noite Branca – Capitulo II – A Firma
ESPALHA --->
Muca era o grande traficante do Bom Fim. Ninguém sabia quem ele era. Pra muitos não tinha rosto, mas todos sabiam que existia. Taxo era o seu segurança e braço direito. Dois homens brancos com uma elegância de subúrbio. Conheceram a noite underground por acaso. Muca, durante o dia era assessor parlamentar de um deputado que gostava de aventuras sexuais com travestis. Taxo trabalhava com entrega de produtos embutidos: salames, copas, patês e queijos. Fazia tudo de moto. Depois do trabalho, se reunia com alguns motoboys pra beber uma gelada e dar uns tequinhos. Foi assim que ele conheceu o bar Ancoradouro. O primeiro bar com uma temática “Hells Angels” da cidade.
Jaquetas e calças de couro, botas de bico fino, Harley-Davidson na frente, nomes estranhos, 63, Beto 70, 57. Os nomes eram referência ao ano das motos estacionadas. Nas caixas de som tocava Creedence, Stray Cats, Elvis… No banheiro uma basculante de navio e tudo que lembrasse o filme Easy Rider. (Confuso como o Nelson, o proprietário).
Taxo curtiu o lugar. Percebeu que o pessoal gostava de dar um teco… Uma noite bebeu um pouco mais e terminou conhecendo os outros bares da rua. Viu que existia uma movimentação interessante de jovens rebeldes de classe média alta. Gurizada bebia, fumava e cheirava na rua. A polícia fazia vista grossa. Lhe chamou atenção o fato de haver outros traficantes, a maioria deles aviões que vendiam pra sustentar o próprio vício. Um playground para drogados. Foi numa noite dessas que Taxo e Muca conheceram Ciro. Não demorou muito pra que eles o convidassem pra trabalhar na firma.
Muca e Taxo tinham uma forma de trabalhar organizada e viciados à disposição. Ciro era uma exceção no meio daquela loucura. Conhecia todos os seguranças, os donos dos bares, o pessoal da noite, os promoters, caras de bandas, até alguns caras da polícia. Muca desconfiava do Ciro justamente por conhecer tanta gente sem ser conhecido, mas conviviam numa boa porque Ciro era o mais inteligente dos seus funcionários. Por outro lado, Ciro via nos dois uma oportunidade de ganhar uma boa grana. Eles tinham um pó de qualidade e não precisava nem sair de casa. Não tinha que ir nas bocas buscar a droga. Só queria fazer a dele e voltar pra casa com algum rabo de saia, umas notas e um baseado dos bons.
A coisa era simples e sem rodeios. Ciro tinha os seus parceiros pra venda e um apartamento pra empacotar a cocaína. Taxo passava na Barros Cassal toda noite, no mesmo horário: 21h45. Encostava a moto, deixava vinte gramas de pó. Contava sempre uma piadinha infame antes de entregar a droga. Lá pelas seis da manhã vinha pegar a grana da noite.
– Aí, Ciro cuidado! Esse pó deixa os cara boquinha e as mina sem calcinha!
– Pode crê, Taxo.
Ciro não achava graça nas piadas, mas sabia a malandragem da rua. Subia com a droga pro seu apartamento, no edifício Bagé, quinto andar. Pegava quatro sacolas plásticas, um rolo de durex, uma tesoura, um prato duralex, uma colher e um isqueiro. Esquentava o prato, não muito, mas o suficiente para que o pó permanecesse seco, as pedras brancas esfarelavam com a pressão da colher levemente aquecida. Dava um teco pra mulher que estivesse com ele no momento. Precisava saber da qualidade do negócio… Só depois de ver a reação, que começava a embalar as buchas. Não usava balança. Tinha a medida certa: meia colher de chá. Nunca dava mais de um teco pra quem testava. Sabia exatamente o que poderia significar para os negócios se cheirassem demais. Depois de embaladas, dividia em sacos com dez buchas. Não entregava mais do que dez para cada avião. Eles abriam a bucha e faziam mais duas de cada uma delas. Isso era praxe de qualquer traficante chinelo. Ligava pra central e mandava mensagem via pager para seus parças. Em dez minutos Coelho, Arroz, Claudinho, Bigode e o Cabeça chegavam pra pegar as encomendas. Cada um deles tinha um ponto certo de trabalho, Coelho e o Arroz trabalhavam na Osvaldo; Claudinho gostava do Elo Perdido; Bigode vendia no Circus e no Megazine; Cabeça no Garagem Hermética. Ciro ficava pela rua. As vezes entrava no Líder, as vezes no Bambus.
E foi numa noite qualquer bebendo ceva no Bambus que Ciro se ligou numa coisa: o caminho que a droga fazia. Quem fornecia a droga era branco. Quem vendia era preto e quem comprava era branco. Os pretos eram os únicos que estavam na linha de frente. Foi assim que ele teve um pensamento um tanto histórico socioeconômico…
“Foi pro Sul do Brasil que enviaram a maioria dos miseráveis da Europa. Sim, antes de entrarem naqueles navios, os europeus precisavam assinar uma carta de miserabilidade. Chegando aqui, ganharam terras do governo espalhadas por todo o Estado. Alemães, italianos, poloneses, japoneses, russos. Todos trabalharam muito, mas isto não muda o fato de terem ganhado as terras.
O que eles esqueceram é que trezentos anos antes do primeiro europeu pisar aqui e ganhar terras do governo, mais de 3 milhões de pretos amontoados em porões e jogados a própria sorte, vieram da África para o Brasil como escravos.
Enquanto os miseráveis da Europa ganharam terras, os pretos, com a abolição, ganharam do governo brasileiro o direito de ficarem quietos em um canto e morrerem em silencio. Sem terras, sem educação, sem dinheiro, sem oportunidade, sem comida, sem um lar, sem respeito, sem dignidade, sem esperança e sempre sujeitos chibatas, piadas e humilhações. Acho que tá na hora de ganhar alguma coisa desses arrombados, sem perdão.”
Uma epifania, um rompante de lucidez. Ciro não era formado em história, mas tinha uma paixão secreta por ela. Fora isso, era amigo de um professor de história que com o tempo se tornou uma espécie de guru. O professor Gibran sempre dizia pra ele: “- Tudo está na história, meu amigo”.
Ciro ainda refletia sobre o assunto e bebia sua cerveja, quando um cara branco e grande se aproximou e perguntou:
– E aí Ciro, belesma?
Ciro estava visivelmente incomodado sobre o que pensava e não gostava de ser interrompido.
– Que tu quer Alemão?
O cara parecia estar nervoso, meio sem saber como falar. Suava, apertava os dedos e seu queixo tinha um leve desalinho.
– Tu tem umas bucha, né? Acerto contigo assim que meus coroas forem pra praia.
Apesar de ficar de cara pela interrupção, ele conhecia o Alemão. Era filho de um casal de advogados do bairro Moinhos de Vento. Sem falar que os negócios viam sempre em primeiro lugar. Ciro abriu um sorriso:
– Claro, Alemão. Tá na mão. Bonito relógio, hein? Ô, Alemão, tu é dus meu, mas não esquece que tem umas buchas pra trás, né? Mas tá suave guerrero. Me paga na sequência.
– Sim, sim. É só o tempo deles saírem. Já venho e pego mais! Ontem eu me passei, né? (risos)
– Capaz, Alemão! Ontem tu foi o meu melhor cliente (risos)
O cara não devia absolutamente nada pro Ciro, mas esse era o negócio. Tipo ter uma locadora de vídeo-cassete. Se rebobinou, não importa, mas se esqueceu de entregar a fita, tá fodido. O crédito tem juros. Alguns visíveis outros invisíveis, mas é o preço pra se manter o vício. A loucura era tão grande que o Alemão nem sabia se tinha ou não pago uma ou duas buchas, mas o que importava era que “tava na mão”. Ciro não enxergava eles como amigos. Isso aconteceu depois que um cara virou as costas pra ele na fila de um banco.
Pro Ciro eram apenas clientes, que num primeiro momento ganhavam presentinhos. Ele descobria quem eram seus clientes, se tinham dinheiro, se vinham de berço, quem eram os pais, que tipo de negócio a família tinha. Era assim que ele determinava o crédito que o viciado teria. Tequinhos no banheiro pras minas e os mais endinheirados. Uma chavada nos meia-boca só pra despertar a fissura. Esses não tinham grana, mas sabiam quem tinha.
Vivíamos uma grande crise econômica. Collor havia confiscado a poupança da classe média e isto desestruturou a população. As pessoas estocavam comida em casa, alguns até se mataram. Mas a alienação entre os jovens era tanta que não estavam nem aí pra crise econômica e o Ciro via seu negócio crescer. A cada dia surgia mais um maluco louco por um teco. Gente disposta a tudo pra ficar ligada. Um negócio arriscado, mas rentável. O esquema era simples. Ciro zelava pela qualidade não pela quantidade. A clientela gostava disso. Era seguro. Até que o Cabeça começou a misturar…
Continua…
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