O Rei da Noite Branca – Capítulo I – A Grande Sacada
ESPALHA --->
Com a ponta do pé conseguiu puxar a cortina. Não muito, mas o suficiente. Não precisava ver a rua, só queria saber se já havia anoitecido. Pra não perder o costume, correu os olhos na esquina. Tudo parecia tranquilo; os guris já estavam na atividade e as meninas também.
O lugar tinha acesso rápido e fácil. Era movimentado. Uns vinham pela avenida Cristóvão Colombo outros pela avenida Farrapos. Alguns faziam sentindo contrário e desciam a avenida Independência. Outros chegavam pela avenida Osvaldo Aranha. Uns de carro, outros de moto; a maioria a pé.
A diversão sempre passou pelos bares, pelas buchas de 10 ou pelos baseados de 2, que se vendia livremente na rua Barros Cassal, coração do bairro Bom Fim. Não poderia haver lugar melhor pra se começar um negócio, ainda mais se fosse bem lucrativo, como a exploração da alegria. Pastores fazem isto com a fé e não é crime.
O tráfico era na rua, sob gargalhadas, gritarias, bebidas, sexo casual e madrugadas sem fim. Um território livre e protegido que durante anos funcionou como a boca de fumo mais rentável e segura da cidade de Porto Alegre. Os melhores clientes, filhos de políticos, médicos, advogados, arquitetos, engenheiros, dentistas, psicólogos, comerciantes, juízes. Homens e mulheres bem nascidos, pessoas com estrutura familiar, com nome e sobrenome, com boi no campo – como falava uma amiga minha -, mas não com estrutural emocional.
Os pais sabiam o que os seus filhos faziam, mas pra eles era melhor que “as crianças” ficassem no bairro. Era mais seguro. Os ricos se protegiam, assim como os judeus, os alemães, os italianos, que eram os predominantes no bairro. A polícia os protegiam e a mídia também. Qualquer problema envolvendo seus filhos era abafado imediatamente. O que eles não perceberam é que com o tempo teriam que proteger muita gente pra conseguir esconder debaixo do tapete as merdas que “as crianças” faziam.
Foi no meio de tudo isto que um cara, Ciro Barbosa, entendeu o jogo e assim surgiu o Rei da Noite Branca. Ciro percebeu que por trás de toda aquela rebeldia haviam alguns meninos mimados, endinheirados e idiotas suficientemente para quererem mais que diversão. Queriam o mundo e como diz o ditado: “quem tudo quer nada consegue”.
Em 1993 existia uma Porto Alegre que vivia uma expansão cultural relativamente moderna ou barroca, como sempre gostei de dizer. Bandas pipocavam dentro das garagens espalhadas pelos quatro cantos da cidade. Sedentas por espaços pra tocar suas músicas, pra beber, trepar e se drogar até o sol nascer. O rock era o estilo escolhido como representante dessa jovem classe média rebelde, anarquista e internamente conservadora.
Os vinte e um anos de regime militar havia criado bolhas na sociedade e somente àqueles com poder aquisitivo podiam realmente se divertir. Como disse um filosofo do gueto: “dinheiro é puta e abre as portas”.
A liberdade de expressão era um grito preso dentro da garganta, sendo assim, pouco ouvido. A liberdade sexual era intensa, mas arriscada. A AIDS era uma realidade cruel, ainda pouco conhecida. Era, no mínimo, estranho. Uma doença que matava, basicamente, negros, mulheres e gays, tudo que os velhos conservadores odiavam. A existência de doenças sexualmente transmissíveis não eram devidamente divulgadas e as drogas chegavam no mercado a passos largos. Ácidos e cogumelos eram considerada drogas extremamente pesadas e se usava em grupo, no máximo duas vezes por ano. Cogumelos no verão e ácido no inverno. Maconha já tinha um público consagrado, mas em 1993 ninguém queria ficar “viajandão”. Todos queriam ficar pra cima, criar coragem, falar com as meninas, falar com os amigos, falar com estranhos, falar, falar, falar.
Cocaína era uma novidade para a grande maioria. Antes somente os ricos tinham acesso. A euforia dos anos setenta refletia na loucura das boates, na escuridão dos inferninhos e na sensação de falsa liberdade que gritava nas paredes dos velhos casarões do bairro Bom Fim, agora ocupado por bares “underground”.
A criatividade musical era exportada da Europa e se acreditava que Porto Alegre era a vanguarda do rock nacional. Que o ar era diferente, que o pôr-do-sol era o mais lindo, que o Grenal era o maior duelo do futebol, que as mulheres eram as mais lindas e que não havia negros na cidade. Mas tudo isto não passava de um puro sentimento Londrino de inveja e recalque dos que nunca admitiram suas verdadeiras identidades. Rescaldo de uma abertura política social recente, mas para a juventude da época era coisa do passado.
“Foda-se, eu quero é me divertir”. Os jovens pensavam assim. Ciro entendeu isto. Sabia que nem todos eram idiotas, mas tinha certeza que a maioria era. Isto era o bastante para que ele ganhasse dinheiro com a sensação de felicidade alheia.
Soltando a cortina com a ponta do pé, Ciro pediu pra Claudia se vestir.
– Acho que tu precisa levantar, gatinha. Preciso trabalhar, mas depois quero que tu venha pra cá. Vou mandar um táxi te pegar, onde tu estiver.
A mina ficou balbuciando alguma coisa, que Ciro não entendeu. Ele levantou. Precisava de um banho. Quando saiu, ela ainda estava deitada.
– Claudia, levanta, preciso sair, porra!
– Tá bom, mas eu to tão cansada, não tem nada pra me ajudar a levantar?
Ciro, balançou a cabeça negativamente, abriu a gaveta e pegou um bucha; jogou na cama. Claudia rapidamente fez uma carreira.
– Tu tem o nariz nervoso, hein gatinha… Já ta me devendo mais de cem…
– Pensei que esta fosse presente.
– Presente é sempre a primeira e esta já te dei ontem, lembra?
– Acho que eu sei como te pagar…
Eles tomam banho e logo que ela saiu, Ciro começou a trabalhar. Abria a janela e assoviava. Logo seus amigos e parceiros se aproximaram da porta do prédio. Ciro descia e passava cinco pacotes com trinta buchas dentro. Victor e Coelho eram os melhores vendedores, mas havia outros. O trabalho era simples: Ciro buscava o pó em dois lugares, na Vila Jardim e na Orfanotrófio. Conhecia os guris da boca. Era chegado dos patrões. Não tinha nenhum tipo de arrego, mas era considerado por sempre pagar na hora. Morava no centro, fazia isto de quinta a sábado. Nos outros dias ele sumia, nunca deixava pó em casa e só vendia fiado pra mulher. Os caras precisavam deixar alguma coisa consignada, senão, nada feito. Pena que seus amigos não tinham a mesma prática, tanto foi que a casa caiu, pra eles.
O Bom Fim era conhecido por ser um bairro boêmio. Há anos a Osvaldo Aranha era o berço dos poetas, músicos, atores, pintores… De um modo geral, quase todos os frequentadores do bairro se consideravam artistas e pra criar se drogavam, mas nunca terminavam a ideia que tiveram no primeiro teco.
Existia um circuito que os jovens da época gostavam. Começava no bar da faculdade, passava pela Lancheria do Parque, Lola, Bar do João, Megazine, Elo Perdido, Bar Ocidente, Garagem Hermética, Circus, Bambus, Papilon e terminava, pra alguns, no Van Gogh.
Os mais antigos tinham um circuito ainda mais elástico. Bar do John, Zelling, Cais, Dr. Jekyll, S.O.S… Fora os inferninhos do centro: Tablado, Peter Pan…
Em um determinado momento havia quase um traficante para cada consumidor, o que tornou a lei da oferta e procura algo surreal. Não demorou muito para que Ciro terminasse conhecendo alguns patrões de porte médio, que queriam expandir os negócios e viam no Bom Fim “um lugar do caralho”.
Foi numa noite qualquer, de 1994, que Ciro conheceu o Muca e o Taxo. Muca era o fornecedor, andava com dez, vinte gramas de pó. Taxo era uma espécie de consumidor/segurança do Muca. Mas Ciro sabia das suas limitações. Não era branco, num bairro de maioria branca. Não tinha ensino superior, num bairro de maioria estudada. Não era rico, num bairro burguês, mas conhecia o preconceito e sabia com quem estava lidando. Foi assim que teve a grande sacada da vida: nunca ser maior do que precisa e nem brigar com alguém que possa lhe fazer mal e o mais importante nunca confiar em um viciado.
Continua…
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