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O reconhecimento

O reconhecimento

ESPALHA --->

– Taí, brilhou. Manja aqueles dois ali no carro?
– Vamu rouba essa porra e era isso, tão de beijinho, dusmeu.
– Vamu porra nenhuma. Ti acalma, merda. E se aquele cara tiver com berro ou uma lisa.
– Foda-se. A gente explode a cabeça dele.
– Com o que? Essa merda é de brinquedo, esqueceu? Tá loco, caralho!
– Porra, Pilão, tô precisando dá uma cagada, que tá foda.
– Vai te fuder, tranca o cu, filho da puta. Precisamo é compra um cano.
– Tô falando sério, Pilão. Sério mesmo. Tá foda por causa dessa merda no meu cu.
– Que tu tem, caralho?
– Morróida.
– Segura essa merda, agora não é hora de se floxar.

O casal estacionou em frente ao prédio dela. Pilão e Chimia viram uma oportunidade. Os dois não tinham nem vinte anos, queriam se dar bem. Moravam numa vila fodida, lugar esquecido. Na Vila Cedo quase todos estavam desempregados. O tráfico era um caminho e para a maioria da gurizada a tendência era crescer roubando: delitos leves e pequenos assaltos.

Pilão e Chimia precisavam de grana. No dia seguinte era aniversário da mãe do Pilão. Dentro do carro o casal, Viviane e Paulo, ela estudante de jornalismo da PUC e ele médico. Queriam ficar juntinhos, esquentando o jogo ali mesmo. Beijos e mãos perdidas, escondidas no calor que já embaçava os vidros.

– Quem sabe a gente sobe, Viviane?
– Não, Paulo. Meu pai deve tá vendo TV, a mãe tá fazendo alguma porcaria pra comer e o Lucas tá aí com os amigos jogando Play.
– Então por que a gente não vai lá pra casa, sozinhos, só nós dois…
– Eu não me preparei…
– Eu tenho uma escova sobrando…
– Não é isso… É de quem?
– O que?
– Nada, Paulo…
– Fala, Vivi…
– Eu não me depilei.

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Foto ilustrativa: Reprodução/Google

Ela fala baixinho e dá beijinhos no pescoço dele. Atrás de uma árvore, no outro lado da rua, os dois se preparam pra dar o bote. Pilão é mais ligeiro, Chimia se aproxima da janela e anuncia o assalto.

– O que tu disse, Vivi?

Ela não tem tempo de dizer nada, percebe que tem alguém atrás do vidro embaçado.

– Aí, baixa a porra do vidro e me dá os bagulho, senão estouro a tua cara, puta do caralho!
– O que? Pergunta Paulo pra Viviane.

Dentro do carro, Viviane não entende o que Chimia dizia do lado de fora.

– O que?
– Porra, mina! Abre a porra da janela senão vamo explodi toda essa porra.
– Droga, Viviane! Abre a janela! É um assalto!

Ela abre. Assustada, começa a pegar suas coisas. Nervosa começa a chorar. Pilão, que está armado, se aproxima do lado do motorista. Paulo olha pela janela e vê Pilão sacando a arma lentamente, como num filme policial. Viviane chora. Os ladrões querem tudo. Paulo, nervoso, sente que a coisa está complicada. Viviane não pára de chorar. Chimia pede que ela pare. Paulo tenta acalmá-la. Pilão está apontando para Paulo. Viviane vira o rosto e vê a arma, dá um grito! Paulo se desespera. Chimia, nervoso, percebe que os moradores dos prédios acendem as luzes, cachorros começam a latir. Paulo olha o rosto do seu algoz. Pilão aponta a arma para a cabeça de Paulo. Um porteiro grita. Viviane chora. Chimia olha pros lados. Pilão mira. Paulo pensa, “- tudo acaba agora”. Respira fundo e por um segundo fecha os olhos, quando abre vê o tambor da arma caindo. Os olhos de Pilão se arregalam. Paulo abre a porta do carro.

– Ah, seus filhos da puta!
– Corre, Chimia!
– O que?!

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Foto ilustrativa: Reprodução/Google

Paulo tem dois metros de altura e é faixa preta de jiu jitsu. Pesa cento e tantos quilos. Viviane pára de chorar, percebe que eles estão desarmados, pega na bolsa o spray de pimenta, joga em Chimia, que sai correndo e gritando. Os dois somem na escuridão da noite.

Na vila, uma hora depois, os dois conversam sobre o resultado da noite. Chimia está com o rosto inchado. Pilão parece normal.

– Droga, não tô conseguindo enxergar direito.
– Porra Chimia, tua cara parece uma traquinas, tá ligado!
– Toma no cu, Pilão. Porra, aquela mina du caralho me jogou essa porra. Nem sei o que é, mas lavei a cara e pioro.
– Demo sorte, Chimia. Demo sorte.
– Sei não, Pilão. Aí, guarda contigo. Quando eu tomei o jato na cara, pensei que fosse morre. Me caguei, parceiro.
– Porra, eu também, caralho. Toma no cu, tu viu o tamanho do cara?!
– Não, Pilão. Me caguei mesmo.
– Tá falando sério? Caralho, Chimia. (rindo) Morreu aqui, tamo junto.
– Foda isso daí. Mas e aí como tu vai fazer festa pra tua coroa amanhã?
– Não vai te, né. Mas depois eu dou um jeito, desenrolo alguma coisa, vendo umas buchas, sei lá. E tu, quando tu vai ver essa parada aí?
– Que parada?
– Tu não disse ontem que tava com umas paradas de não conseguir cagar por que tava doendo?
– Ah, sim. É morróida.
– Pode crê, seu Jairo também tem, mas disse que não morre disso.
– Sei lá, mas segunda vou no médico, já até tirei uma ficha no posto, tá ligado.
– Pode crê. Aí, pega tua parte da grana do postinho.
– Deu quanto?
– Cem pra cada, toma aí.
– Pode crê, vou nessa! Falou Pilão. Te cuida, irmão. É noiz!
– Sempre noiz!

Na segunda, Chimia acordou e fumou um com os guris na praça. Pilão não apareceu. Ninguém se ligou em ligar pra ele. Chimia não viu Pilão, pediu pra galera avisar, se vissem ele, que ele iria no postinho. No outro canto da vila, Pilão trocava uma ideia com os mais velhos.

– Quanto tu tem?
– Tenho cem.
– Porra, com cem não tem nada não, galinho.
– Bah, Tomate. Faz essa mão aí, tô na correria.
– Foda! Aqui ó, vou te apoiar com essa garruncha aqui. Tá judiada, mas queima igual.
– Já é. Tudo nosso.

No posto de saúde, Chimia espera sua vez de falar com o médico. Pilão não vê a hora de mostrar o brinquedo novo pro parceiro.

– Julio Alves, pode passar.
– Sou eu.

O médico olha Chimia dos pés à cabeça, o convida para entrar e sentar. Abre uma pasta e começa a fazer perguntas. Chimia conta que está com um problema sério no cu, que dói muito e que mal consegue cagar sem sair sangue. O médico explica que as vezes a limpeza excessiva provoca uma ultra sensibilidade naquela região e que pra ter certeza do tamanho do problema ele precisa fazer o exame.

– Ah, mas pra gente ter certeza, Julio, é preciso fazer o exame de toque.
– Tá, mas como é que é isso aí?
– Simples, eu enfio um dedo na área que dói e examino como anda.
– Hum, não tem outro jeito?
– Ainda não, mas em breve vai ter. Mas no teu caso é melhor a gente aproveitar e ver agora. Deite na maca, vire de lado e encolha as pernas. Pode baixar as calça e cuecas até o joelho.
– Pega leve aí, hein doutor.

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Charge de Carlos Ferreira

O médico se aproxima, coloca luvas cirúrgicas. O estalo da borracha em contato com a pele do médico causa suor e medo no Chimia. Ele está quase desistindo, quando sente algo entrando no seu cu.

– Porra, Doutor, tá doendo.
– É assim mesmo. Tá feio o negócio por aqui.

Passados três minutos, o médico continuava revirando o cu do Chimia, que já dava sinais de estar irritado com a situação. O médico, com um certo sadismo, conversava e seguia revirando o cu do jovem meliante. Na entrada do posto, Pilão chega e pergunta para uma menina que estava pegando remédio se ela tinha visto o Chimia. Ela diz que ele está na sala de consulta. Pilão senta em frente a porta e escuta os gemidos do amigo. Assustado, abre a porta e vê o médico com o dedo no cu do seu parceiro. O médico reconhece Pilão do assalto do fim de semana.

– Eu te conheço, seu filho da pu…

Pilão reconhece o cara do carro, saca a garruncha e dispara.

– Porra, Pilão! Tu pudia ter esperado ele me dar a receita!
– Relaxa, eu vi um comercial ontem na TV. Tem uma pomada que a embalagem é rosa, diz que faz milagres…

Opinião O reconhecimento

Antonio Cesar, o Padeiro, é escritor, produtor e Diretor Criativo na Mandraque Filmes. Ex-integrante do grupo Da Guedes, Padeiro comanda o Coletivo Sentido Contrário e a fanpage Camburão Sonoro.

5 comments

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Andréa Schaeffer

Será sempre urgente ouvir atentamente o outro lado. Não como uma interpretação, mas tradução, e sem makes! Esse garoto é um orgulho!

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Vika Schabbach

👏👏

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Catherine

Hehehe tragédias da vida real. Baita texto!

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Guilherme Maltez

Sensacional, mano

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JULIANA SANTOS

Curti esse final tipo “vida que segue” no meio do “mau tempo”. 😉