‘O Pior DJ do mundo’
ESPALHA --->
No final dos anos oitenta ainda se escutava fita cassete e vinil. Não existia coisas como CD, DVD, HD externo, nem celular. O telefone que tinha era de linha ou “convencional” como é chamado hoje, mas era um artigo de luxo e só quem fosse muito rico tinha um aparelho em casa. Meus amigos não tinham. Na maioria das vezes era o telefone do trabalho. Mas qualquer jovem, daquela época, sabia como encontrar os amigos seja de escolas, trabalho, faculdade, vadiagem, cidades e estilos diferentes. Existia um lugar. Avenida Osvaldo Aranha, bairro Bom Fim. Esse lugar era tipo o Facebook analógico da gente.
Porto Alegre vivia uma efervescência cultural no início dos anos noventa. O Brasil havia acabado com o casamento de mais de vinte anos com a ditadura e novos amores estavam surgindo. Beijos apaixonados com a democracia rolavam enquanto as mãos pegavam firme a liberdade de expressão. Limites? Ainda não precisávamos de limites, tudo era novo, tudo era possível, tudo.
A cultura norte-americana era empurrada goela abaixo através da TV, rádio, jornais e revistas. O rock ainda tinha status de “a voz dos jovens”, “a rebeldia” e blá, blá, blá… Ao mesmo tempo que a classe média gritava ao quatro ventos letras dos Paralamas, Titãs e Legião Urbana, nas periferias o samba perdia espaço para o funk e o charme.
A Black Music, que “disfarçou” a cara do Rap por algum tempo, ganhava espaço nas rádios e bailes. Foi aí apareceu o Pepeu, com “4 nomes de meninas”, e logo em seguida a batida pesada do Naldinho, com “Lagartixa na Parede”, e Thaide e DJ Hum, com “Corpo Fechado”. Agora não tinha mais volta, o Rap era a cara da periferia, era a nossa cara.
Não demorou muito pra surgir os primeiros grupos de Rap por aqui. Não era como em São Paulo, claro. Estamos no sul e aqui tudo levava um tempo pra chegar. O pessoal que curtia charme, funk e Rap tinha um ponto de encontro, que durante a semana era na Esquina Democrática e nos finais de semana na Osvaldo Aranha. Foi lá que a maioria das bandas e grupos surgiram. Misturava todo mundo. Quem vinha das vilas, dos bairros nobres, quem vinha de outras cidades, de outros lugares. Um centro de informação à moda antiga. Quem tinha banda de rock, geralmente, não sabia tocar mais do que três notas, a gente dizia que era da família dos Ramones. O pessoal do Rap não sabia tocar instrumentos e por isso durante muito tempo, éramos considerados um movimento anti-cultural.
Bom, pra encurtar a história lembrei de um episódio que aconteceu comigo… Alguns grupos de rap que frequentavam a Osvaldo foram convidados pra tocar numa festa em outra cidade (Esteio), num bar que tinha uma pista de skate. Era muito comum andar de skate e ouvir rap – tem que diga que o punk rock é primo do rap. Eu concordo, atitude.
Enfim, iriam tocar muitos grupos na festa. Na época era mais prático colocar grupos pra tocar do que bandas. A gurizada não carregava instrumentos e a maioria dos grupos dividiam o mesmo DJ, por causa do equipamento. Mas alguns não tinham DJ e esses dependiam de alguém que apertasse o play da cassete com as bases. Esse era o caso do Aldo G, um amigo que fazia um Rap no grupo T.W.P, junto com Bocão e o Francês, e carregava as bases em fitas.
Ice T a gurizada escutava direto, tinha a trilha do filme mais foda que o Rap já produziu “Collors, As Cores da Violência”, do diretor Dennis Hopper. “Collors” era um hino pras gangues, que por aqui eram muitas. Algumas eram bem conhecidas como a “Coreia”, do bairro Partenon, e os “Thundercats”, lá da Restinga.
https://www.youtube.com/watch?v=-AV_YKqDu-4
Em Canoas, os “Demônios da Cerne”, não eram conhecidos, mas eram a minha gangue e em Pinhal (litoral do RS) a “gangue dos mijão”, do meu amigo Giovane. Essa não era conhecida também, mas era a mais engraçada. Uma hora eu conto a história dessa gangue. Todo mundo conhecia “Collors”, era como ouvir Racionais nos dias de hoje.
No dia do show, os grupos se reuniram no Bar do João e de lá fomos, de trem, até Esteio. O espaço era grande, um ginásio com um banks no meio pra galera andar. Num lado ficava o palco e no outro lado, em cima do bar, numa espécie de gaiola, ficava o DJ da festa. Os primeiros grupos subiram e deram seu recado. O som sempre foi um problema. Ninguém sabia operar som, níveis de volume de base e voz eram totalmente distorcidos, apesar de não se entender o que o cara cantava a gente batia palma e apoiava a cena. Eram amigos no palco e na plateia. Então chegou a hora da T.W.P, do Aldo.
Não lembro bem desse dia, mas lembro que o DJ do grupo era o Noise D, que na ocasião não pôde ir. O Aldo me chamou e disse: “- Bah, Padeiro, preciso que tu me ajude. É só colocar a base da música que a gente vai sair cantando”. Perguntei que música era, ele me falou: “- Collors”. Ali eu vi que a coisa era séria. O bicho ia pegar!
Aldo me deu uma fita cassete e fui até a gaiola onde ficava o DJ. Lembro que o cara que tava colocando som era um mala, não queria que eu subisse e muito menos que mexesse nas coisas dele. Depois de muita conversa ele deixou eu colocar, mas o grupo do Aldo já estava sendo anunciado no palco. Cada segundo era precioso. O DJ começou a me explicar como mexia naquela aparelhagem. Bebum, não entendi nada. Era uma corrida contra o tempo. O cara anunciou o grupo, o Aldo e a rapaziada da T.W.P. pegaram o mic, deixei a fita cair. Me joguei no chão pra evitar que a fita quebrasse. Consegui colocar no aparelho, olhei pro palco e fiz um sinal de ok… No palco, a luz abaixou. Todo mundo se virou pra ver o show, os guris de capuz e óculos escuros começaram:
“- Isso rapaziada, nós somos o T.W.P., diretamente de Porto Alegre, pra fazer Esteio tremer! A revolução é através da palavra, certo?! Yo! Vai DJ!”
Lembro só de apertar o play… E nas caixas começar a tocar… “Vem chegando o verão, um calor no coração…”
O Aldo deu um pulo no palco e gritou no microfone: “- Não, Padeiro!!! É o outro lado, caralho!”
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