Nossa Cultura passa pela voz dos ‘Nego Véio’
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Domingão qualquer, meio dia. Churrasco na casa dum bruxo lá da vila. Costela na brasa, ceva e caipa gelada. No velho três em um, rolava só rap nacional, Racionais, D2, Câmbio Negro, Thaide, Comando Preto, GOG, Ndee Naldinho, Metralhas, Da Guedes, Facção, Revolução, Por La Calle, T.W.P, Rap Crazy, Manos do Rap. O mano abriu o baú…
Passados quase trinta anos, agora estávamos todos ali, na casa do Negão Fernando, sentados em banco de tijolo, embaixo da parreira da casa da Tia Rosa, todo mundo reunido: Nego Jairo, Bolota, Saco de Veio, Padeiro, Sabonete, Nego Zóio, Alex, Nego Chimia, Ciro, Alemão Fio, Careca, Goiaba e Zé Codorna. Rindo do passado, lembrando dos nossos amigos que não estavam mais com a gente. Das nossas paixões, das festas, das brigas com a Vila do lado…
Fernando era das antigas, muitos ali conheceram Rap por causa dele, muitos fumaram maconha a primeira vez com ele, no Beco da Maria ou no Campo do Império. Muitos ali não sabiam nem como chegar numa mina. Negão Fernando era o mais experiente da gurizada. O pai dele tinha uma equipe de som, Negão conhecia a Black Music como poucos.
Aí chegou o amigo do filho do Fernando, um guri de uns dezesseis anos, gostava de rap também, mas se aproximou da gente porque queria trocar a música, segundo ele “o rap não era mais assim”. Negão ficou de cara, ali começou uma conversa entre duas gerações diferentes. Fernando falava de Kool Moe Dee, Grandmaster Caz, Melle Mel, Big Daddy Kane, Kurtis Blow, Biz Markie, Whodini… O guri falava de Rafa Moreira…
A gente ficou só ouvindo a conversa, Negão Fernando tentou explicar a história do Rap pro guri, mas ele não queria saber de história, queria sentir a música, que segundo ele era o que representava o rap. Muito rapidamente o assunto passou para “minha cultura” x “sua cultura”.
Até que o Negão disse que quem criou o Rap foi o Afrika Bambaataa e o guri abriu o Google e com um sorriso maroto confrontou o Nego Fernando dizendo que não era isso que o Google dizia…
Mano… O bicho pegou. Fernando explicou pro guri que o Rap, pra aqueles manos que estavam sentados embaixo da parreira, era mais que uma música, que o Rap era nosso ponto de equilíbrio na vida. Que não se tratava de quanto dinheiro poderíamos ganhar com a música mas quantos poderiam se salvar ouvindo ela. Fernando falou por uns quarenta minutos e ao final o guri disse:
“- O Tio, o mundo não é mais assim, isso é passado. Não leva a mal, Tio, mas hoje a gente tá por ganhar nossa grana na rede e comprar o que a gente quiser, nossos roles são os melhores, nossas minas são as mais gatas e eu ainda prefiro o Rafa Moreira.”
Foi nessa hora que surgiu o argumento para escrever esse texto.
Em tempos de Internet, uma ferramenta de busca onde se encontra toda e qualquer resposta pra tudo, vejo crescer um mundo com perguntas sem respostas, totalmente diferente da minha geração. Hoje, parece que o que está no Google é a verdade. Estamos perdendo a capacidade de absorver informações. Os livros viraram telas de tablets, celulares e computadores. Não sabemos a origem da informação, não checamos, é o famoso “ninguém quer saber”. Não temos tempo pra nada e achamos que professores de história só sabem sobre datas e acontecimentos militares.
Dave Chappelle já dizia: “vocês pesquisam no Google as coisas que eu vivi”. As novas gerações recebem dez vezes mais informações que a minha. O escritor Umberto Eco disse certa vez: “redes sociais deram voz a uma legião de imbecis.” O escritor deve ter razão.
Quando traficantes evangélicos atacam terreiros de Umbanda, alguma coisa se perdeu. Quando colocamos nosso perfil “somos todos…” relacionadas a tragédias ou desastres na Europa ou nos Estados Unidos, mas ignoramos uma mãe arrastada por uma viatura da polícia por ela ser Preta e moradora de favela, alguma coisa está errada.
O mundo está perdendo a empatia, não temos tempo pra olhar o mundo com nossos olhos, não temos tempo pra comemorar, pra ficar tristes, pra chorar
Quando um prédio pega fogo e desaba no centro de São Paulo, e alguém comemora por achar que ocupações são invasões, algo está se perdendo. Quando descendentes de escravos acreditam na voz do senhor de engenho, algo está errado. Quando a cantora Pitty diz: “- Eu não volto pra cozinha, o negro não volta pra senzala, o gay não volta pro armário, o choro é livre e nós também…” e é reprimida por homens brancos de classe média ofendidos, algo está errado.
O mundo está perdendo a empatia, não temos tempo pra olhar o mundo com nossos olhos, não temos tempo pra comemorar, pra ficar tristes, pra chorar. A cada momento uma nova manchete chega pela Internet.
A rede está impossibilitando a gente de viver experiências reais. Vivemos em uma bolha cibernética que dita o que nós devemos curtir, comentar e compartilhar. Antes a gente sentava num muro ou num banquinho fumava “um” e ouvia as histórias dos “nego veio” da vila. Hoje eles são motivo de piada na boca de uma gurizada que nasceu conectada ao mundo virtual. Precisamos ler a favela de Ferréz, Sacolinha, Sérgio Vaz, Marcelo Silva, José Falero, Lucas Borges, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo…
Acredito que num futuro muito próximo entraremos em uma nova era, um lugar mais equilibrado. Mas não se iludam, pra isso acontecer as novas gerações precisam entender que só chegamos até aqui porque a experiência de muitos homens e mulheres foram fundamentais para a construção da nossa cultura e isso passa pelas histórias dos “nego veio” que circulam pelas ruas, becos e vielas das quebradas espalhadas por todo país.
É importante ouvir e respeitar a história dos artistas que chegaram antes de nós: James Brown, Curtis Mayfield, Marvin Gaye, Al Green, Isaac Hayes, Donny Hathaway, Bill Whiters, Sly Stone, Quincy Jones, Stevie Wonder, Gil Scott Haron, Bob Marley, Jorge Ben, Cassiano, Bedeu, Kool Herc, KRS-One, Jazzy Jay, Rakim, LL Cool Jay, Grandmaster Flash, Ice T, Chuck D, N.W.A e muitos outros, depois de reverenciar esses caras entenderemos como surgiu o rap. Depois voltamos pra falar do Rafa Moreira.
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