Neura da Gangues – Parte 3
ESPALHA --->
Nada no mundo assombrava mais a vida de qualquer maloqueiro que a polícia. Lá na vila era assim, primeiro a gente começava a andar na rua à noite, depois tomava uns gorós e ficava de onda, um dia tretava com alguém da rua do lado. Logo arrumava uns inimigos, os mentes fracas já queriam vingança de qualquer tipo de treta, os mais fracos se apoiavam nas bengalas como faca e pistola, mas em 90 conseguir uma pistola era mais difícil do que “casar virgem” nos dias de hoje. Então, se a treta fosse muito séria, o negócio pra arrumar dinheiro era roubar.
O que a sociedade nunca entendeu e provavelmente nunca vai entender, é que nem todo mundo que mora em vila é ladrão, a expressão não significa que o mano tá roubando alguma coisa, era só uma gíria, mas sempre tinha os tiozinhos de ouvido espichado nas conversas, na volta da mesa de sinuca, do bar do Tio Kaska. E nessas aí que eu e o Negrinho ou melhor, o Cabeção, quase se lascamos na mão do policial mais cruel que a cidade já tinha ouvido falar, o Sombra.
O Sombra era um Preto de dois metros de altura, pesava mais de cem quilos de pura massa muscular, ódio, violência e fúria. Quando se ouvia a voz dele, os becos esvaziavam na mesma velocidade que de um piscar de olhos. Reza a lenda que ninguém sobrevivia a seus métodos de tortura, diziam que quando ele pegava neguinho confessava roubos que nem tinha pensado em fazer. Nunca conheci ninguém que foi preso por ele, outra lenda sobre o Sombra, não deixava rastro. Ninguém sabia como descrevê-lo direito, só sabiam dizer que era um Preto gigante.
Mas a gurizada do movimento não tava nem aí, queriam mesmo era resolver as tretas com as gangues vizinhas, arrumar umas minas e ficar respeitado na vila. Ainda não tinham tantas bocas de fumo, cocaína era coisa de gente rica e crack só ouvíamos falar em filmes como “New Jack City”.
As tretas eram o que nos dava moral diante das minas, se o cara era bom na mão, tinha respeito do resto da gurizada. Quem brigava bem ficava conhecido até nos outros bairros. Eu era bem conhecido em outros bairros, não por brigar bem, mas por ter o dom de me esconder. Por ser meio falastrão conseguia dar meu jeito e sumir. Na real nunca fui de brigar, sempre imaginava alguém me acertando um soco e arrancando um dente da boca ou furando um olho meu. Isso me parecia bem complicado pra pegar mulher, ainda mais que a gente tinha um amigo, o Bozó, que era caolho e banguela.
A febre do verão de 90 foram os vídeo games, qualquer um que tivesse entre 13 e 18 anos era viciado no Super Star Soccers (foto ao lado), joguinho de futebol da Nintendo. Lá na vila tinha uma locadora de jogos, funcionava na garagem do Gordo Junior. O pai dele viajava pro Paraguai e trazia tevês grandes e jogos, fora isso, ainda tinha Baré Cola e bolacha pra vender, custava 50 centavos a hora. Era tudo que um jovem precisava pra ficar longe dos problemas. Seria simples se a vida fosse só isso.
Tinha um parceiro nosso Babalu, mano o cara era foda, roubava carro do pátio virando roda que não acordava nem os cachorros. Dirigia de trator à Variante, era ótimo mecânico, mas o ladrão de carro mais pé frio que eu já conheci. Vivia na gaiola e quando saía da cadeia a primeira coisa que fazia era visitar algum terreiro. Fazia segurança, fechava o corpo, prometia que nunca mais, mas era só a Roseli largar o Babalu que se revoltava com o mundo e voltava a puxar carro. Nunca entendi o Babalu, mas como diz o proverbio do RZO: “Eu Sempre Respeitei Ladrão, Cada Um na Sua Função”.
Babalu, achou uma Mãe de Santo forte, lá pros lados da Rio Branco e depois disso os home não conseguiam mais pegar ele, até o dia que o Sombra entrou pra 1ª DP de Canoas, aí mano… até a Mãe de Santo foi enquadrada. O Babalu passou uma semana escondido na casa dos amigos, todos os dias no mesmo horário passava uma viatura da civil bem na manha na nossa rua. Babalu se escondia onde dava, em cima das árvores, embaixo dos caminhões, atrás dos muros. Uma vez acharam ele escondido no forro da casa de Nego Chimia. Na real ele quase escapou, não tivesse pisado em falso e caído do forro. Uma semana o Sombra ficou procurando ele direto. Uma tarde a gente tava jogando bola e o Babalu apareceu, tava assustado, pediu um copo d’água pra minha mãe, ela disse pra ele entrar e pegar na geladeira, antes dele chegar na cozinha o carro branco entrou na rua, a gente cantou a pedra pro Babalu, só que invés de fugir achou melhor se esconder. Sombra parou duas casas antes da minha, desceu do carro, cumprimentou os vizinhos, dizem que seu Ronaldo, pai da Cota, que caguetou o Babalu. Sombra cumprimentou minha mãe e
perguntou se podia entrar, a mãe imaginando que o Babalu tivesse fugido, deixou entrar. Babalu tava embaixo da minha cama. Saiu algemado.
Sombra fez um levantamento pra descobrir quem era quem na vila, conseguiu informações com um Pastor filho da mãe que a gurizada tinha corrido depois dele fazer a limpa numa vozinha que morava sozinha. Mentia tanto pra vozinha que ela cedeu a própria casa pra que ele fizesse uma igreja. Ela morreu de frio num barraco no fundo da igreja. A revolta foi tão grande que tacaram fogo na igreja numa noite fria de junho, os guri queriam trancar ele dentro, foi as batuqueiras da vila que salvaram a pele do Pastor Ricardo.
Esse cretino fez uma lista de todo mundo que ele não gostava e entregou pro Sombra. Até eu e o Cabeção tava na porra da lista, mas o que fodeu a gente foi quando o cabeção ganhou um vídeo game. A gente jogava todas as noites ou era na minha casa ou na casa dele. As vezes minha mãe acordava e mandava a gente ir dormir, aí a gente desmontava o vídeo game guardava numa caixa de vídeo cassete e ia pra casa do outro jogar. Algum vizinho notou a movimentação e avisou a polícia, logo o Sombra estava na nossa cola.
Uma noite minha mãe estava dormindo e nós jogando na sala, estava perdendo de dez a zero pro Cabeção, a essa altura do campeonato estávamos rindo alto, minha mãe acordou e mandou a gente embora. Juntamos as coisas e fomos pra casa do Cabeça, na rua a gente conversava sobre umas minas que tinham se mudado a pouco tempo e que ficavam ouvindo Biz Markie e dançando na sala. Nem percebemos que no final da rua um carro entrou com os faróis apagado. Quando a gente viu tinha uma viatura da civil do nosso lado a janela aberta e uma mão preta segurando um trinta e oito cromado, cano longo, ventilado. O Sobra achou a gente.
“- E aí gurizada medonha, ta bom o papo?”
“- Tava”
Cabeção começou a rir de nervoso e o Sombra desceu do carro. Ele levou uns três minutos pra sair daquele gol chaleira.
“- O que tem na caixa?”
“- Meu vídeo-game.” Respondeu o Cabeção.
“ E tu tem a nota dele, aí?”
“- Não”
“- E como vou saber que tu não roubou?”
“- Minha mãe ta em casa..”
“- Já vai chamar a mãe?”
“- Não, senhor.”
“- E aí, da onde vocês roubaram esse vídeo cassete?”
O Cabeção tava nervoso demais pra falar, apesar de ser dele, a presença do Sombra não era um sinal de que as coisas terminariam bem.
“- Não é um videocassete”, respondi.
“- É o que então?”
“- Um vídeo-game.”
“- E tu tem a nota dele, porque se não tiver vou levar pro meu filho, ta entendendo?”
“- A nota ta em casa com a minha mãe.”
“- A tu não tem ela aí contigo, como tu sai na rua com isso sem nota, pediu pra perder…”
O Sombra já tava colocando as mãos na caixa quando um barulho de latas tirou a gente do foco dele.
“- Fiquem quietos.”
Duas casas depois um barulho na brita chamou atenção do Sombra, de um pátio sem muro um Fiat 147 começou a surgir, o carro se mexia lentamente, como se estivesse virando roda e os poucos foi surgindo o Babalu, meio bebum, resmungando alto.
“- Essa vadia me paga…”
Foi nessa hora que o Sombra teu voz de prisão. Babalu não parou e ele deu o primeiro tiro, Sombra correu atrás do Babalu e os dois sumiram na sombra dos becos da Vila Cerne… A gente volto pra casa do Cabeção, ligamos o vídeo game. A tia, mãe do Cabeção levantou pra trabalhar e a gente ainda tava jogando na sala.
“- Vocês ainda tão jogando?”
“- A noite toda, mãe!”
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