Não é sobre nascimento, é sobre morte
ESPALHA --->
Hoje o Bocada Forte tem o prazer de apresentar aos amigos e amigas, leitoras e leitores, Camilla Cidade. Ela é natural do Rio de Janeiro e muito atuante nas questões envolvendo gênero, estudos da periferia e política.
O BF sempre valorizou muito e abriu espaço para que mulheres pudessem expressar suas opiniões sobre os mais variados assuntos. Nós a convidamos para fazer parte do “time”, porque suas ideias são extremamente pertinentes e importantes.
Sem mais delongas, abaixo você confere seu primeiro texto para o nosso portal. Seja muito bem-vinda, Camilla a.k.a Rootscidade!
Não é sobre nascimento, é sobre morte. É sobre a naturalização da morte, é sobre a radicalização da morte, é sobre o status financeiro da morte.
Não é sobre morrer, é sobre matanças. Sobre matanças legitimadas e anunciadas pelos governantes. Não é sobre Ághata Félix, não é sobre Marielle Franco, não é sobre Evaldo Rosa, Dyego Coutinho ou Amarildo de Souza. É sobre todos. Sobre esse momento. Sobre as mortes negras e periféricas diárias, sobre o absurdo legitimado, em sinal de arma com as mãos na eleição.
Tava anunciado.
É sobre deixarmos chegar a extremos sem conseguirmos reagir, pois a violência está legitimada, defendida e argumentada em todas as mídias: “mira só na cabecinha”. É sobre um povo perdido, que em sua maioria é pobre e preto, mas que foi levado, por falta de acessos, por manipulação, a colocar no poder exatamente o governo que trabalha para exterminar seus direitos e cidadanias básicas. O direito à vida, o direito a existência.
Estamos conscientes e temos vozes. Nos matam todos os dias, mas temos representantes… E aí, eles matam nossos representantes. E normalizam. E inventam mentiras para justificar assassinatos. Não existe justificativa para matar inocentes. Não existem territórios como mapa minados da criminalidade. O que existe são corpos pretos e periféricos sendo eliminados todos os dias. O que existe é evasão escolar por falta de meios e incentivos. O que existe são balas achadas nas vielas segregacionistas de um estado que tem como modo de ação a necro-política, o uso do poder social e político para ditar como algumas pessoas podem viver e como algumas podem e devem morrer.
É sobre política de extermínio, É sobre poder. É sobre racismo.
É sobre quando o estado atira 80 vezes em um pai de família trabalhador, antes de conferir, e tem quem o defenda. Quando o estado atira de cima em escolas, com crianças dentro e tem quem o defenda. Quando o estado entra em uma comunidade e mata um menino atleta, sem passagens criminais e a comunidade precisa defender seu corpo para que não sejam plantadas provas que o incriminem e sujem a sua honra, para legitimar seu assassinato.
É sobre o desespero que nos dá ao ver avô de Ághata gritando: “ela fazia ballet, sabia inglês”… Como uma pessoa referiu: “Mesmo diante de uma morte injusta, [o avô de Ágatha] tentava validar a existência dela com as qualidades que a classe branca dominante aceitaria”
É triste, desesperador. Mas há que ter uma luz no fim do túnel. Precisamos de reflexão, precisamos de educação, precisamos de ação! Como vamos reagir?
As mortes consecutivas e naturalizadas fazem menos estardalhaço que um beijo homoafetivo em um gibi. A mídia compra e reproduz um discurso vazio, que transfere a responsabilidade sobre um problema de saúde e de segurança pública para os consumidores de droga. Surreal.
Mas não tão surreal como neste momento, onde nunca se deu uma estatística tão grande em mortes inocentes. Hoje (24/9), vamos ter que dormir com a notícia do decreto publicado no Diário Oficial do Rio de Janeiro. Wilson Witzel retirou a redução de mortes cometidas por policiais como um dos indicadores do Sistema Integrado de Metas, que norteia os bônus pagos a policiais militares do estado. Na prática, os policiais não serão mais incentivados a reduzirem sua letalidade. O genocídio negro e periférico está mais que autorizado.
Nós combinamos de não morrer, mas eles combinaram de nos matar.
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