Conexão Mãe de Santo
ESPALHA --->
Mãe Dolores de Oxum era uma batuqueira muito respeitada na quebrada. Chegou alguns anos atrás. Começou ganhando a confiança das mulheres, dos velhos e logo qualquer malandro que quisesse andar livre e sem medo tinha que passar no terreiro dela. Quase um monopólio da segurança espiritual. Como ela mesmo dizia, não tinha a mão boa pra relacionamentos, nem doenças. Seu forte era proteção.
Passou três dias mandando recado pra eu aparecer no terreiro. Na quinta feira, Nego Maicon veio avisar. Maicon era uma espécie de faz tudo. Vivia babando na volta da Mãe Dolores.
– Aí, Tomate. A mãe Dolores pediu pra tu ir lá no terreiro o mais rápido possível. Ela disse que teu pai de cabeça tá te cobrando algo que tu prometeu e não fez…
– Porra, mas agora?
– Acho que é, né?
– O que eu prometi? Eu nunca faço promessas que não posso cumprir…
– Nunca? Hum… Vai vendo…
Quem é de vila sabe: quando uma mãe de santo pede pra ir no terreiro, boa coisa não é. Nunca vi ninguém ser chamado pra receber uma grana, uma notícia boa ou coisa do gênero. Geralmente é merda. Ou vai morrer ou vai se foder, que nesse caso dá no mesmo.
– Tu vai voltar lá, agora?
– Vou.
– Faz essa mão pra mim? Diz pra mãe que eu vou dar uma refletida nessa promessa, fazer a barba, tomar um banho, passar no Ueliton, pegar um xis, depois vou na Gloria pegar umas roupas que ela lavou, depois vou passar no mercado do Nonato, não tem mais nada no barraco! E depois eu chego lá.
– Tá bom, mas se eu fosse tu, ia mesmo. O Machadinho não foi quando ela mandou chamar… Viu que mataram ele na maloca do Salgado?
– Brincou!? Porra, eu falei com ele, terça! Tem certeza? Eu prometi que…
– O que?
– Nada.
– Ôxe, tô falando. Foi ontem de noite que ele morreu, na hora do Ratinho. Mãe Dolores avisou que estavam atrás dele, ela viu nos búzio. Disse que era pra ele fazer uma segurança, fechar o corpo e que isso ia ser barato, mas tu sabe como é o Machadinho, pão duro pra caralho. Olha a merda que deu.
– Mas por que ela jogou pra mim?
– Não sei, só mandou chamar.
Na última semana três amigos haviam morrido, dois nas mãos dos porco e o Machadinho, filho da puta, levou o que me devia pro caixão. Quando fez a segurança, Mãe Dolores pediu pra eles usarem a guia sempre. Pediu, também, que eles não usassem durante a fornicação, como nenhum deles sabia o que era fornicação, se foderam. Tendeu?
Enxergava o meu campo de sobrevivência como uma hierarquia de esperteza. Na minha vila, até pouco tempo, se respeitava os nego véio, se respeitava trabalhador, se respeitava as tias da nossa rua. Hoje, tu tá é loco!
Mãe Dolores era boa nisso. Segurança era seu forte. Respeitada além da ponte. Vinha cliente de tudo que era lugar: ladrão de carro, estelionatário, bicheiro, político, traficante, e claro, os malandros, como eu. Eu não era propriamente um bandido, vivia de pequenos delitos… Quem não, né?! Enxergava o meu campo de sobrevivência como uma hierarquia de esperteza. Na minha vila, até pouco tempo, se respeitava os nego véio, se respeitava trabalhador, se respeitava as tias da nossa rua. Hoje, tu tá é loco! Não tem mais respeito desses otários. O que eles pensam da vida? Ah, foda-se! Uns moleque de merda, segurando um cano se acham machão. Na boa, nunca quis foder ninguém, mas nunca pensei duas vezes pra defender o que é meu. Nunca curti trabalhar. Acho que isso ninguém gosta. Prefiro ficar de boas na vila. Sei que pode parecer idiota, mas aqui, quando noto que o cerco tá fechando, a maioria fica sem direção, eu só observo. Não sei se isso é dom ou não, mas graças à isso sigo forte, meu irmão.
Mãe Dolores tinha um pouco mais de quarenta anos, era solteira, uma pessoa espiritualizada, mas além disso uma bela mulher. Os nego até queriam se achegar… Mas, e o medo…
Lembro quando passava pelo centro trazia alguma coisa pra vender no mercadinho do Nonato, um cabeça chata que apareceu aqui depois que São Paulo virou um inferno. Ela sempre sabia quando eu tinha feito merda. Mãe Dolores era muito séria, adorava piadas, quando ria as gargalhadas dava pra ouvir do outro lado da vila.
Nunca fui preso, o que me tornava diferente do resto da gurizada da vila, era considerado pelos mais velhos e isso incomodava muita gente. Gente como o nego Maicon, e o polícia que dormia com a Gloria… Aquele era desconfiado, mas só desconfiava de mim. Eu era o único que a Gloria não cobrava pra lavar as roupas. A gente era amigo de infância, mas a malícia mora nos olhos de quem vê, não é, não?
Nego Maicon voltou pro terreiro da mãe Dolores, fui fazer minhas coisas. O terreiro ficava duas quadras da minha casa. Fiz o que tinha pra fazer, depois cheguei, entrei e fiquei esperando pra ser atendido. Nego Maicon ajudava na casa, tipo mucama. Acho que ele era afim da batuqueira. Não era normal a admiração que ele tinha. Parecia aqueles crentes que ficam batendo na porta da gente domingo de manhã pra dar revista Sentinela, saca? Enchia o saco dos moradores falando dos poderes da jovem batuqueira.
Depois de um tempo a porta do quarto de santo se abriu, um cheiro de defumação saiu de lá e junto com o cheiro veio o Zé Galinha, todo esfumaçado. Logo atrás, mãe Dolores.
– Agora é só tu esperar sete dias, se não te acharem até sexta, não te acham mais.
– Obrigado, mãe. Vou fazer tudo direitinho, mas e se me acharem?
– Bom, tu pode começar pagando essa segurança antecipada… Aquela outra eu te dei, ajudou bastante, né? Faz assim, deixa uns trezentos pila no pé do santo que tá bom.
– Mas hoje tá ruim, mãe. Vou deixar cinquenta que é o que tenho aqui.
– Deixa de frescura, Zé galinha. Tu roubou a fábrica de tinta semana passada, as entidades me disseram.
Zé galinha regalou os olhos. Nego Maicon concordou com a cabeça. Ela realmente tinha uma forte ligação com as entidades. Zé Galinha puxou os trezentos e colocou no pé da imagem de Ogum.
– Isso mesmo, filho. Pro santo não se nega nada!
– Oi, Tomate, quem bom que tu veio. Maicon faz um café e traz pra gente, tenho muito pra conversar com o seu Tomate.
Maicon saiu pra fazer o café, meio contrariado, afinal de contas ele realmente queria falar com ela. Ele tava tendo visões… Eu estava ali contra a minha vontade.
Entrei na salinha, aquele cheiro de defumação. No fundo da sala ficava o altar, embaixo dos santos pratos com guias mergulhadas em sangue de galinha, eu acho. Eram as seguranças que junto com os patuás formavam a melhor proteção da região. Mãe Dolores ajeitava suas guias no pescoço, ela era muito atraente. Foi difícil me concentrar. Meu sangue esfriou quando ela me disse:
– Senta aí, Tomate. Eu andei jogando pra ti… A coisa tá feia, viu? Teu pai de cabeça tá querendo que tu se ajeite. Do jeito que tá tu não vai longe, visse. E seria um desperdício ver um homem tão bonito jogado numa vala.
– Nossa, mãe Dolores! A coisa tá tão ruim assim?
– Tá muito pior do que eu imaginava.
– Mas o que a mãe viu no búzios? Eu não saí da linha, tenho cuidado pra não fazer merda…
– Olha a boca suja no quarto de santo.
– Desculpe… Eu tenho me “cuidado” pra andar certinho…
– Pois é, mas isso é pouco. Tá na hora de tu crescer, virar homem. É isso que teu pai tá te cobrando.
– Mas a mãe deve saber que isso é um coisa bem complicada. Crescer e virar homem significa muitas coisas que eu não considero crescer e virar homem, entende…
– Não entendi.
– Não gosto de trabalhar, nem de responsabilidades, gosto de levar a vida numa boa, curtindo a mulherada e observando a natureza…
– Faça-me o favor, Tomate. Isso não é brincadeira. Estão sabendo que tu é um dos envolvidos na falcatrua das Tele-Sena!
– Quem estão sabendo?
– Os orixás, menino.
– Hum… Então… Eu prometo que vou fazer tudo que estiver ao meu alcance.
– Acho bom.
– Também acho, afinal de contas quem não iria querer ter uma bela mãe de santo cuidando da gente…
Mãe Dolores deu uma gargalhada.
– Toma jeito, Tomate e não me venha com cantadas que faço tu ficar brocha, safado!
– Não brinca com isso, por favor…
– Então não brinque com coisa séria…
Quando estava saindo do quarto de santo, Maicon, parado, segurava uma bandeja de café.
– Vai ficar pra outro dia, Maicon. Valeu!
– Leva de volta, Maicon. Tomate tem muita coisa pra fazer… E tu me faz um sanduíche e um chá gelado. Vai, Maicon! Depois volta aqui, viu, Tomate? Vou fazer uma proteção especial pra ti.
Saí do terreiro com uma pulga atrás da orelha. Algo estava errado naquela conversa com a mãe Dolores. No caminho pra casa ouvi o polícia brigando com a Gloria, mas em briga de marido mulher a gente não deve meter a colher, mas podemos ficar escutando um pouquinho…
– Não sei o que tu tanto faz naquele terreiro!
– Que isso?! Desconfiando de mim, Glória!? Que eu saiba quem vive de conversinha com macho aqui é tu! Mas já vou avisado: se eu desconfiar que tu anda arrastando asa pra aquele maloqueiro, tu me paga, Gloria!
– Deixa de ser ridículo, Mauro! Tu pode pagar de valentão com os teus cupinchas da polícia, mas aqui, meu filho… Quem manda sou eu! Presto atenção!
– Não levanta a voz, Gloria!
– Aqui na minha casa eu levanto a voz, levanto a faca, levanto o que eu quiser. Vai dar ordem pros teus negos! Aproveita e pega teus pano de bunda e te arranca da minha casa. Procura moradia em outro terreiro, ouviu? Não sou mulher de colocar, muito menos de tomar guampa. Não sei que tanta proteção tu precisa. Há pouco tempo dizia que era evangélico, agora vive às escondidas na casa da Dolores.
– Fala baixo Gloria, ninguém pode saber disso…
– Ué, ninguém pode saber o que, Mauro?
– Não fala alto, Glorinha.
– Glorinha é o diabo que te carregue! Sai daqui, Mauro!
– Porra, mulher…
– Saiii!!!
Fiquei espiando atrás do muro. O polícia saiu todo irritado, pegou o carro, arrancou, mas logo em seguida voltou a pé e como quem não quer nada, entrou na casa na casa da mãe Dolores. Foi aí que eu fiz o link. Claro! Agora tudo fazia sentido. Mãe Dolores tinha uma história com o polícia. Tinha que ser isso! Por isso ela sabia das broncas todas. Achei estranho quando ela falou do roubo da fábrica de tinta e das Tele-Senas. Zé Galinha não tinha falado pra ninguém, mas arregalou os olhos quando ela falou que sabia. Como ela ficou sabendo? Ela pode ter ouvido da boca do polícia. Claro! Porra mano, não dá pra confiar em ninguém!
Colado na casa da Gloria morava o nego Maicon com a vó, Dona Jurema, uma senhora de 90 anos, muito mais lúcida que ele. Nego Maicon me viu atrás do muro.
– Tu tem que ficar esperto com essa aí. Ela ainda vai terminar fazendo merda, por causa desse polícia.
– Não viaja, Maicon. Qualé? Tá vendo o futuro também? A Glória é minha amiga de infância, não faria mal pra ninguém. Ela tá desconfiada, ficou braba como qualquer mulher.
– Não sei. Vou cuidar da vó. Um dia esse povo daqui vai perceber o que estão fazendo.
– O que tão fazendo, negão?
– Só sei que o amor que eu sinto é maior que tudo que eu sei.
– Pode crê, Maicon. Foi fundo, mas agora vô nessa.
Fui pra casa me sentindo estranho. Nego Maicon deu aquele papo esquisito. Já não era a primeira vez que ele fazia isso. Todo mundo tirava o negão pra loco. Eu não tava nem aí, mas era melhor eu ficar esperto. Existem certos sentimentos que não sei explicar. Não tem como. O que passava na minha cabeça era assustador. Eu poderia morrer. Prometi o que não devia, vou pagar com o que? Não tenho porra nenhuma, nem nome tenho.
Deitei no sofá, tudo passava na minha frente. Tudo estava ali. Percebi que não tinha como me defender. Que as revelações que tive ao longo do dia terminariam com o sono que chegava…
Acordei com os gritos e o barulho das sirenes. Abria a porta, uma movimentação grande na frente da casa da mãe Dolores. Corri até lá. Quando cheguei ainda consegui ver Gloria, algemada, toda ensanguentada, chorando e gritando. Depois fiquei sabendo… Desconfiada, ela foi atrás do polícia. Quando chegou no terreiro pegou nego Maicon com a faca na mão. Ele tinha acabado de matar mãe Dolores e o Mauro. Glória, enlouquecida, pulou no pescoço do adorador da batuqueira. A Preta véia que trabalhava na cozinha disse que Gloria parecia um bicho. Matou o assassino arrancando, à mordidas, a sua jugular. Ciúmes, disse o cara do IML, dando entrevista para uma rádio comunitária.
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