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Capitalismo, meritocracia e o peso das periferias nas eleições de 2024

Capitalismo, meritocracia e o peso das periferias nas eleições de 2024

Na semana passada, um tiozinho que trampa de motorista de aplicativo veio trocar uma ideia sobre política com um dos membros do BF. Durante a conversa, o mano disse:

“Cara, a igreja evangélica fala que os manos são guerreiros abençoados, esses outros aí, esses do Instagram e pá, dizem que os manos são empreendedores. Aí vem a esquerda e fala que eles são explorados e são parte do precariado. Carai, o que eles vão escolher? Quem eles vão ouvir com mais aceitação? O que é mais positivo?”

As eleições municipais de 2024 revelaram um cenário político que desafia as fronteiras entre direita e esquerda, ao mesmo tempo que expõem a ascensão do conservadorismo e a instrumentalização das pautas identitárias em prol de agendas políticas de poder. Ao mesmo tempo, o avanço de uma lógica de “darwinismo social” na sociedade contemporânea, reforçada por discursos meritocráticos e práticas de uberização, impõe desafios à luta social e racial que a Cultura Hip-Hop historicamente representa. Essas questões estão cada vez mais entrelaçadas, criando uma nova configuração de desigualdades sociais, que precisa ser enfrentada com novas formas de resistência.

O conceito de “sobrevivência do mais apto” ao âmbito social e econômico, reapareceu no capitalismo contemporâneo por meio da glorificação do individualismo. Esse discurso, amplamente replicado nas narrativas de empreendedorismo e na uberização do trabalho, contribui para a precarização das relações laborais e cria uma falsa ilusão de mérito pessoal. No Brasil, essa ideologia é reforçada pelo discurso político predominante nas periferias, onde partidos de centro e direita têm consolidado seu poder. De acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nas eleições de 2024, 51% das prefeitas eleitas são de partidos de centro, e 33,6% dos prefeitos negros também estão alinhados a partidos de centro e direita.

A Nova Configuração Política nas Periferias

De acordo com o site The Intercept Brasil, esse cenário político reflete uma transformação crescente entre as comunidades periféricas, que outrora representavam os bastiões da resistência social. Exemplo disso é a trajetória de Isaac Faria, ex-militante do PT e figura comunitária, que se afastou do partido após perceber que suas demandas e as aspirações dos jovens periféricos não estavam sendo atendidas. Faria observa que o desejo de consumo e ostentação nas periferias, reforçado pela cultura capitalista, descolou o discurso de luta política de seu cotidiano. “A molecada quer tomar um whisky bacana e acessar lugares que Lula disse que não eram só para a classe média. A política do PT não conversa mais com essa realidade”, diz.

Nesse contexto, vemos a figura do self-made man, que “vence por esforço próprio”, sendo exaltada, ignorando desigualdades estruturais como raça, classe e gênero (que agora estão na mira da campanha anti-identitarismo). A narrativa do sucesso financeiro individual, amplamente promovida no discurso de partidos conservadores e em parte da cultura hip-hop contemporânea, reforça o mito de que todos têm as mesmas oportunidades. Isso mascara a realidade de que muitos partem de pontos de partida drasticamente desiguais.

A Uberização do Trabalho e a Precarização dos Direitos

O fenômeno da uberização, onde trabalhadores são tratados como “empreendedores de si mesmos”, é um exemplo claro de como o darwinismo social e o empreendedorismo individual precarizam as relações de trabalho. Aplicativos de entrega promovem uma falsa sensação de autonomia, enquanto exploram os trabalhadores com baixos salários e falta de direitos trabalhistas. A lógica de que o fracasso é pessoal, e não resultado de uma estrutura desigual, faz com que a culpa recaia sobre os indivíduos, em vez de ser vista como consequência de um sistema econômico predatório.

Essa precarização também reflete uma nova configuração política. Partidos de direita e centro têm se apropriado das pautas identitárias para conquistar eleitorado nas periferias, e a ascensão de mulheres e negros em suas fileiras exemplifica essa estratégia.

O Hip-Hop: Entre o Coletivo e o Sucesso Individual

O Hip-Hop, historicamente uma trincheira de resistência social, está em um momento crucial de reflexão. Em suas raízes, o movimento sempre se posicionou contra o racismo estrutural, a violência policial e a marginalização da juventude negra. Entretanto, parte do discurso contemporâneo no trap e em outras vertentes do Rap tem exaltado o sucesso financeiro individual como métrica de superação. Esse discurso, embora compreensível no contexto de resistência pessoal, corre o risco de legitimar um sistema que marginaliza as mesmas populações de onde muitos desses artistas emergem.

“Retire seu senso de coletividade, seu senso de união”

Ao focar no sucesso financeiro e na aquisição de bens materiais, essa parada pode, conscientemente ou não, reforçar os valores capitalistas e individualistas. Isso cria uma desconexão com a tradição de luta coletiva do Hip-Hop, que sempre valorizou a organização comunitária e a transformação social como ferramentas de emancipação. Essa glorificação do individualismo se alinha à lógica meritocrática do darwinismo social, que perpetua a ideia de que apenas os mais fortes ou adaptáveis sobrevivem e prosperam.

No entanto, o Hip-Hop ainda possui o potencial de ser uma força de contestação poderosa contra essa narrativa. Para enfrentar a precarização do trabalho, a despolitização e o avanço conservador nas periferias, o movimento precisa reforçar sua capacidade de organização coletiva. Oficinas, debates e rodas de conversa e o apoio financeiro a iniciativas de coletivos periféricos podem ser ferramentas eficazes para engajar a juventude periférica na luta por direitos trabalhistas, políticas públicas inclusivas e justiça social. A ideia da grana girar entre nós ainda não virou realidade.

O Bocada Forte, dentro de seus limites, ainda acredita que o Hip-Hop pode e deve voltar a ser uma plataforma de crítica social, enfatizando a importância da ação coletiva e da luta contra as desigualdades estruturais, que é pauta da esquerda política.

O movimento precisa redescobrir seu papel como voz da resistência, garantindo que as narrativas de sucesso individual não ofusquem a necessidade de mudanças estruturais. Somente por meio da organização coletiva e da luta por políticas públicas inclusivas será possível enfrentar as desigualdades e injustiças que marcam o Brasil contemporâneo.

Nós, mesmo identificados e identificadas como um veículo de comunicação cultural e periférico, somos excluídos/as ou até mesmo ignorados/as por pessoas de partidos políticos que se dizem progressistas ou de esquerda. Ainda assim seguimos no mesmo propósito, sabemos qual é o nosso lado, nossa consciência de classe, racial, social e política está em dia.

Em 25 anos assistimos muitos desistirem ou mudarem de lado, não julgamos porém entendemos e sabemos muito bem quais são os motivos que os levaram a isso, o inimigo é outro. Em um mundo onde cada vez mais a comunicação tem feito a diferença, ver uma mídia de quebrada que resiste há 25 anos ser tratada com indiferença por pessoas e partidos, que na teoria deveriam nos apoiar, dá o tom e a dimensão do que vem acontecendo nesse diálogo entre a dita “esquerda” partidária e as quebradas.

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