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Opinião: Levantados das ruas: a arte que salva

Opinião: Levantados das ruas: a arte que salva

ESPALHA --->

POR KLÉBER G.

Por que ler?

Observar a importância da leitura e das expressões artísticas numa sociedade rasgada pelo consumo inútil, de tão repetido se tornou clichê. E como disse um dos mestres extraídos de nossas periferias, “tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires”, por isso eu vou tentar tecer meu texto com o qual modestamente venha debutar no Bocada Forte, de um jeito novo. Não porque sou autêntico e original, mas porque vou usar de matéria uma experiência particular que vem ao caso.

Lembro que era inverno, talvez quinta-feira, ano 2000. Uma tarde letárgica, nublada, embalada pelo som das crianças brincando na rua enquanto eu rolava desempregado dentro de casa. De repente a sinfonia daquele pequeno universo ali vivido foi cortada por uma saraivada de estampidos duros, secos, rápidos, estampidos destes que já acontecera antes, que conhecíamos, mas sempre havia a esperança de que pudesse ser qualquer outra coisa, até que os cachorros pegaram a latir, as galinhas sacudiram as asas como que espantando a paz dos quintais, e uma zaragata de pés e de gritos fez explodir minha adrenalina: glândulas suprarrenais fazendo com que em milésimos de segundo o sangue escorra em velocidade indescritível por todas as nossas artérias.

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O livro é uma arma.

Um horror paralisante, que nos deixa inúteis por alguns instantes e que depois nos empurra, nos diz “vai, corre, vai salvar”, como se fossemos blindados a tiros de canhões. Quando sai à rua um automóvel preto cortou a minha frente fritando pneus e desaparecendo na esquina. Primeiro um silêncio mudo. Depois, pouco a pouco, as janelas foram se abrindo, as mães saíram gritando por suas crianças que se revelavam de seus esconderijos improvisados, e então os cães se acalmaram, e as galinhas fecharam suas asas, e ficaram os acordes graves da tragédia.

Uma das crianças apontou para a servidão que descia ao lado da minha casa. Encontrei um lastro de sangue no chão e no muro. Seguimos até chegarmos na cerca derrubada e encontrar o corpo de imberbe viciado do meu primo retorcido. Puta que pariu os joelhos magros encostando o rosto pálido. Puta que pariu as mãos dilaceradas denunciando a tentativa inútil de proteger a cabeça emplastada de pus. Puta que pariu minha tia descendo a servidão com o desespero mudo cobrindo seus gritos sufocados. Puta que pariu era o seu filho morto, o seu filho-filho, seu filho ali revirado em lodo e nada entre as plantas e o sangue que fazia poça. Puta que pariu as moscas. Puta que pariu o policial filho de uma égua que atendeu a urgência anunciou na rádio da polícia que havia menos um para incomodar. Puta que pariu, puta que pariu de novo, o tempo todo, puta que pariu, puta que pariu…

Velamos e sepultamos o meu primo com todas as tristezas e mistérios que envolvem a morte. Quando o túmulo foi lacrado e nos dispersamos do cemitério eu fui caminhar. Corri os Bairros da região Continental de Florianópolis com aquele cheiro de flores e bálsamo grudado em meu espírito, e em cada esquina inscrevia-se o cadáver retorcido do meu primo. Era um garoto de 17 anos, um ano mais jovem do que eu, metido em pequenos furtos e que nos últimos anos fora abatido pelo vício terrível no craque. Minha tia o havia expulsado de casa algumas vezes. Fato que provavelmente agravou as dores que até hoje a mantém de bruços sobre a lama negra da depressão.

A vingança era o sentimento inevitável. Caminhava compondo odes a vingança. Vingança e vingança, eu repetia, sem fazer qualquer pistas de quem assassinara meu primo. Sugeriu-se fulano e ciclano daquela ou da outra boca de craque, e também sugeriu-se alguma vitima dos pequenos furtos do meu primo. Mas mesmo sem culpados, nos rostos que eu encontrava na Cidade, todos absolutamente borrados, como se eu estivesse dentro de um pesadelo cinza, não existia inocência. Ninguém é inocente dos massacres e tragédias do Mundo. Por ato ou omissão, de uma forma ou de outra, todos somos culpados. Não importava que cabeça eu fosse explodir, o gesto me traria alívio à dor e à impotência das pessoas que eu amava. Depois de 2 horas caminhando cheguei então à ponte que liga o Continente à Ilha, atravessei a passarela para pedestres e fui para o Centro da Cidade. Recordo que foi a primeira vez que observei como o curso das coisas segue independente dos dramas individuais.

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O argentino Raul Lemossof e sua arma de destruição em massa

Em uma das ruas mais movimentadas, vagando feito um fantasma, parei em frente à uma banca de revistas que se preparava para fechar e o título de um livro exposto me chamou atenção. Crime e Castigo. O nome do autor me pareceu impronunciável e causou-me uma estranheza atemorizante. Fiódor Dostoiéviski. Imaginei então, que esse escritor, Fiódor Dostoiéviski, fosse um homem alto, de barba negra e comprida, e que provavelmente seria um pactuário do demônio. Sem hesitar eu entrei na banca, tomei o volume e sai enquanto a moça permanecia agachada atrás do balcão revisando alguma coisa, incrivelmente no gesto impulsivo não foi necessário que eu exercesse a arte de furtar que algumas vezes eu empreendera nos supermercados e lojas de CDs.

Fui até a praça XV de Novembro e me abriguei em um banco sob a luz despejada da lâmpada presa a um dos imensos ramos da famosa figueira. Comecei a ler a volumosa obra enquanto um mendigo se acomodava em caixas de papelões ao meu lado. Era um volume de capa grossa, destes que eram lançados em coleções de editoras.

Já nas primeiras linhas houve a identificação imediata com o personagem. Na mente, nas atitudes, no desespero, na vida de Raskólnikov havia todos os demônios com os quais um garoto da periferia poderia confrontar. E no discorrer da história, enquanto Raskólnikov era surpreendido pela amoralidade de seu gesto assassino, meu fluxo de consciência assumia novas dimensões. Era como se a experiência do livro estivesse abrindo novos campos em minha mente.

Talvez tenha me livrado do crime? Nunca saberei ao certo, mas naquele momento a literatura me foi fundamental.

De tão verdadeira eu sei que a minha história parece ficção. Mas levo comigo a vontade de em algum dia, poder promover debates verdadeiros sobre a arte, em todas as suas manifestações, como instrumento renovador e condutor da compreensão aos irmãos que sempre e cada vez mais sempre deverão superar o ódio que permeia o Mundo injusto em que vivemos.

E você leitor ou leitora; como e quando a arte ajudou sua existência?

Abraço.