A fúria negra ressucita outra vez! (Parte III)
ESPALHA --->
Por: Katiara Oliveira, Kilombagem.org
O dia 24 de agosto de 2015 entrou pro marco da história da luta negra mundial. Nesse dia, que deixou de ser uma simples e corriqueira segunda-feira na cidade de Salvador, militantes negros de vários estados do país, de várias cidades da Bahia, com presença também de militantes dos EUA, Angola e Egito, se reuniram para realizar a III Marcha Internacional Contra o Genocídio do Povo Negro, impulsionada pela Campanha Reaja Ou Será Morta, Reaja ou Será Morto, que contou ainda com o apoio de várias organizações nacionais e internacionais de países como Colômbia, Guiné-Bissau, Alemanha, Suíça, Estados Unidos, Áustria, França, entre outros. Nesse dia marcharam cerca de 5mil pessoas em defesa da vida de seu povo, revoltados contra o genocídio do povo negro enquanto política de Estado e em curso no Brasil e no mundo.
Anterior à marcha, ocorreu no final de semana, nas dependências da UNEB (Universidade Estadual da Bahia) o I Encontro de Formação e Organização Pan Africanista (I EFOP), sob base Pan-africanista, Quilombista e Comunitária, articulado transnacionalmente a partir da filiação à IV Internacional Garveista. Foram dois dias importantíssimos, cuja programação proporcionou o encontro, o debate e a unidade antiracista de perspectiva panafricanista e em torno de uma única causa; a necessidade individual e coletiva de lutar por dignidade e existência.
Acredito que as intervenções de familiares foram parte crucial da nossa formação; pois se tratavam de falas narradas em primeira pessoa, não eram falas terceirizadas, nem de avaliação de dados estatísticos sangrentos, mas da própria experiencia de quem teve suas vidas destruídas por terem que enterrarem seus entes queridos, (no caso de execuções, porque quando não encarcera, tortura ou sequestra, como é o caso do menino Davi Fiúza, 16 anos) que foram subtraídos à partir da ação de agentes do Estado, que chegam no território onde são autorizados pra matar, que é o território negro, (imposto desde o fim da farsa-abolição ao nos negar o direito à terra) a nova senzala; a favela.
Os depoimentos de familiares vitimizados do Rio de Janeiro e da Bahia tinham em comum a busca de um fortalecimento num coletivo onde sua dor não fosse transformada em mercadoria ou em negociação política. Eram falas de que graças ao acolhimento da Associação de Familiares e Amigos de Presidiários e Presidiárias da Bahia (ASFAP-BA) do Núcleo da organização Quilombo Xis, do Fórum Social de Manguinhos, Mães de Maio e da Campanha Reaja, essas pessoas encontraram razão pra seguir lutando, encontraram mais que um abraço; a necessidade de amplificar o grito de dor, pra serem ouvidos.
Na formação do I EFOP foram tratados temas como: subsídios estratégicos Pan-africanistas para o enfrentamento ao Genocídio do Povo Negro; trabalhos e organização comunitária e brutalidade policial, a guerra racial das drogas e o protagonismo da mulher negra na luta contra o genocídio.
Na noite anterior à marcha, tivemos orientações para nos organizarmos, nos posicionarmos e nos proteger e proteger principalmente os familiares das vítimas (de execuções, desparecimento ou prisões), que estariam presentes na marcha para a nossa segurança durante o trajeto. Neste caso, a mesma “arma” de defesa também é a “arma” de ataque que é o nosso próprio corpo. Por isso tivemos dicas de ataque e defesa pessoal em caso de eventual agressão ou brutalidade policial e posicionamento estratégico na hora da marcha. Considero bastante interessante pra militância negra, pra repensar seus métodos de ação, pois assim como precisamos nos apropriar de debate teórico, de meios de comunicação, não podemos negar o corpo e a importância da autodefesa pra driblar o medo. A autodeterminação nossa enquanto povo também perpassa pela autodeterminação do corpo. Aprendi com minha professora de dança africana esse saber ancestral.
Na manhã seguinte despertamos antes mesmo da alvorada para que tivéssemos tempo de nos organizar e tomar café da manhã e às 08h sair em marcha, em duas fileiras, com base no método batizado de UHURU (que foi bastante utilizado pelo Black Panthers Party) em direção à Vila Moisés (Cabula), que estava próximo à universidade em que estávamos todos alojados.
Ainda pela manhã do dia 24, chegamos na Vila Moisés enfileirados em duas colunas panfletando em prol da mobilização da marcha marcada pro período da tarde (às 15h). Ao nos depararmos com moradores, crianças e idosos neste bairro, imaginando quem deles poderiam ter perdido entes e amigos nessa guerra, minhas pernas bambearam, nas veias pareciam correr ar ao invés de sangue e o calafrio e a tristeza, que só aumentava, conforme nos aproximávamos do campinho do Cabula. Difícil descrever este cenário de horror, em que um espaço de lazer improvisado pela comunidade, que é o campinho de futebol, ocorreu a chacina de mais de 15 jovens negros. Cada lágrima de cada militante presente tinha que ser rapidamente enxugada, pra evitar demonstrar fragilidade a quem precisava de força: a força pra avó, mães e irmãs desses jovens, que estavam ali presentes.
O testemunho de uma avó de um adolescente executado nessa chacina foi emocionante, porque tivemos a dimensão dessa dor, que é um eterno luto, que muda a vida dessas pessoas pra sempre, pois diferente da morte natural, perder a pessoa amada nessas condições não é algo conformável. Tenho certeza que a necessidade de justiça e dignidade não perpassa pela dó, essas vítimas do Estado não precisam disso. Precisam de ser ouvidos e de solidariedade mas acima de tudo respeitados em seu luto. Nesse cenário da guerra desigual e covarde onde a RONDESP (que em SP chamamos de ROTA) fez seu “showzinho”, que foi inclusive aplaudido pelo governador Rui Costa (PT), foi plantado uma cajazeira por uma mãe de santo e erguido um memorial com os dizeres: “Em memória de nossos mortos, mantemos viva a luta do povo negro na diáspora. Campanha Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto”.
Saímos do Cabula ainda enfileirados e partimos pra outro bairro onde é palco de muitas execuções também, na quebrada Engomadeira, onde fomos bem recebidos pela associação de amigos de bairro local, pra realizarmos a parada pro almoço. Bem próximo a essa associação havia um cartaz “Fecharemos às 13h por luto, velório às 14h” num comércio do local. Ou seja, enquanto estávamos em atividade de formação no domingo, mais um corpo negro tombava no bairro vizinho.
A particularidade do genocídio na Bahia está justamente aí; além de um isolamento geográfico, (que é o caso do Nordeste), a mídia global não cobrirá e quando cobre é pra reafirmar a criminalização e naturalização dessas mortes, com programas que comparamos como do Datena, lá é o tal de Bocão.
Há o fato de serem cotidianas as tantas mortes que intimida a comunidade e apesar da revolta, teme perder suas vidas no combate enquanto outra parte naturaliza e uma outra se cala pra passar pano pro governo estadual, há uma outra que vai pro arrebento, que são as pessoas que constroem a Reaja, comandada por mulheres trabalhadoras, de luta e que não aceitam o Estado racista e sua mordaça. Essas são as protagonistas de uma revolução racial nesse país, não duvido disso. A mãe, a namorada, a irmã, a avó indignada em Salvador ou Feira de Santana, Ilhéus, dentre outras, sabem que pode contar com a Reaja. Que por sinal é uma campanha autofinanciada e auxilia as famílias que precisam, muitas vezes, de alimentação, uma vez que seus jovens provedores foram covardemente executados e sem comoção social ou pública e menos ainda com uma plena reparação do Estado.
No período da tarde do dia 24, às 15h, iniciou a concentração da III Marcha Internacional contra o Genocídio do Povo Negro em frente o Quartel da PM no Largo dos Aflitos, (o mais antigo quartel da Polícia Militar do Brasil) diante de mais de 5.000 mil pessoas e uma tropa de uma dúzia de policiais, em que uns ficavam intimidando os manifestantes (de várias formas, tirando foto de militantes e mandando pro whatszap da corporação), além do histórico de ameaças narradas por diferentes pessoas próximas e integrantes da Campanha Reaja.
A abertura se deu com o hino da internacional da Unidade Africana, “Nkosi Sikeleli”, em outros momentos tocou no carro de som, que ficava no final da marcha, o rap “Capítulo 4 versículo 3” do Racionais e “Songs of freedom” de Bob Marley, mas nitidamente sem a possibilidade de confundir com carnaval, era uma manifestação de cara fechada, totalmente autônoma, independente de partidos e sem nenhuma propaganda do governo.
Estávamos lá, buscando transformar o luto em luta, quando alguns militantes presentes desrespeitaram o acordo prévio para a não utilização de bandeiras específicas de organizações e partidos. Essa atitude gerou um desconforto que foi corretamente resolvido pela organização da Marcha.
É exatamente por essas e outras que o lema e palavra de ordem é: “primeiramente FECHE A CARA!” porque a ideia é espalhar a revolta em todo território nacional, pra avisar ao mundo que “aqui é um país que mais mata pretos e pretas e que enterra lideranças governistas num túmulo de vaidade, frustação e rancor” nas palavras de Hamilton Borges, que é uma das pessoas referências, bem como Andréia Beatriz, a malungagem real, dignos de grande admiração e máximo respeito pelo corre e trajetória de uma década ousando denunciar a mesma fita: o crime de Estado que é o Genocídio Negro.
Em 10 anos de militância contra o racismo, organizada à partir do Kilombagem, nunca tinha vivenciado nada parecido em termos de solidariedade radical (porque a perspectiva também é radical contra o racismo) e autogestão e comunitária. A REAJA completou 10 anos de árdua luta e resistência, pois são 10 anos de intimidações, ameaças e marginalização, mas de forma autogestionária e autônoma. Como diz a jornalista Lena Azevedo, a Terceira Margem. Uma vez que há certos setores do movimento negro com dúvidas do que representa de fato a REAJA.
Avalio que representa a maior ameaça contra o Estado Genocida Brasileiro, em que massificando essa luta cada vez mais, transformaremos radicalmente esse modo de vida em que nós somos tratados como sub-humanos, ao mesmo tempo que esse mesmo povo foi deseducado pra não se identificar como negro, nem pensar de si pra si enquanto povo e menos ainda de compreender sua história ancestral que antecede à escravidão.
Durante a atividade, a marcha e o tempo no alojamento convivendo com a malungada do front, ouvi vários relatos de casos em que inclui intimidação via invasão de domicílio, de um PM da RONDESP que ameaçou um adolescente que canta rap, de 17 anos (pois causou incômodo com seu rap denunciando o genocídio apoiando a Reaja), a dureza que passa a simpática dona Fatinha que enfrenta dificuldades por estar com seu filho adulto acamado; do andamento da prisão desde 2013 de Rafael Braga Vieira por portar desinfetante, da fala chorosa da mãe de Rildo de 17 anos desaparecido desde 2012, de Salvador, da fala de Ana Paula (RJ) mãe de Jhonatha, executado com 19 anos que diz também no documentário que ela participa, “cada vez que falo dele me fortaleço, sou a voz dele”, da fala de um pai que teve que ele mesmo procurar até encontrar o corpo mutilado e desfigurado de seu filho, depois ainda realizar CPI e não dar em nada. Voltei revigorada pelo quilombo, mas ainda mais revoltada com esse sistema anti-negro.
A fantástica fábrica de cadáveres não pára: na ida à Salvador ainda ecoava em minha cabeça as notícias da maior chacina do ano em SP, resultando 24 mortes numa região (Osasco e Barueri), sendo 30 execuções no total do dia 13 de agosto e como se não bastasse, enquanto redigia esse texto, acompanhava as notícias acerca da execução de uma criança de 12 anos fuzilada pela pela Polícia Civil na favela de Manguinhos RJ, o menino Cristian Soares da Silva. Diante disso, impossível acreditar que pessoas ainda ousam questionar se de fato se trata mesmo de genocídio.
Esta uma luta que está para além das barreiras da geografia, pois é internacional, como disse a irmã dos EUA, Alysia Carey, em seu relato: “Nós, dos Estados Unidos, sofremos a mesma repressão do Estado que atinge vocês aí no Brasil. Cinco meses depois da morte de Blul, policiais matou Sean Bell em Nova Iorque, ele foi alvejado 50 vezes. Em 2010 os policiais mataram o menino Joel de dez anos na frente da família dele. Lá nos EUA, policiais mataram uma menina negra de oito anos que estava dormindo no sofá na frente da avó dela”nos certificando com isso que se trata sim de genocídio; que não escolhe idade ou lugar, só o racismo define quem é o alvo principal.
Nas palavras do guerreiro Fred Aganju, esta “Marcha não é Periférica, Não é contra o Genocídio ou Extermínio da Juventude Negra, Não é contra a o Genocídio da População Negra. Nós Marchamos Contra o genocídio do Povo Negro e como tal nosso objetivo é organizar nosso povo de maneira respeitosa e comprometida com a luta e construir poder. Não buscamos a integração em um Estado Racista e Neocolonialista. Buscamos sua demolição!”.
Se agente se unir, a casa grande vai cair, pode pá!
#RacistasFascistasNãoPassarão
O “nós por nós mesmos” da Reaja é na prática e a prática é ant-neocolonialista.
Tamujunto, Quilombo Xis – Ação Cultural e Comunitária!
Contra o Genocídio do Povo Negro, nenhum passo atrás!
Referências e links de notícias:
Fred Aganju – Reaja
Chacina de Osasco
Reaja, a pedra no sapato contra o poder neocolonial
Documentário “Cada luto uma luta”
Campanha de Doação para o Fundo da Marcha (Colabore e divulgue este site!)
Agradecemos o apoio do Conselho Regional de Psicologia de SP (CRP SP), por viabilizar a ida da delegação de São Paulo para Salvador, para as representantes das organizações Kilombagem e da Posse Haussa.
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