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‘Um corpo que transbordou em forma de chuva’ – conheça JuPat

‘Um corpo que transbordou em forma de chuva’ – conheça JuPat

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#RapBR #RapLGBT | Aquariana, sensível, sagaz, trans. JuPat é muitas coisas e tudo isso atravessa e reverbera em sua música de maneira ímpar. Diretamente de Piracicaba (interior de SP), a MC “é um corpo que transbordou em forma de chuva”.

Em junho de 2018 JuPat lançou seu álbum de estréia “Toda Mulher Nasce Chovendo“. Entre instrumentais que vão do boom bap ao violão acústico, a MC explora de forma poética temas que vão de suas experiências e reflexões enquanto mulher trans às experiências da vida urbana contemporânea.

Em minha opinião pessoal, dizer que “Toda Mulher Nasce Chovendo” é um dos álbuns mais bonitos que ouvi em 2018 seria um eufemismo danado. É impossível não se sentir inspirado pela faixa de abertura (“Introbiografia”), introspectivo em “Paraísos Reais” e uma certa nostalgia gostosa em “Blue Jeans 80“. Mais do que uma ótima e sensível lírica que conta a realidade de uma trans no Brasil, é um álbum que fala sobre experiências humanas em toda sua complexidade e beleza.

Em entrevista exclusiva para o Bocada Forte, conversamos com JuPat sobre sua trajetória, suas inspirações, seu álbum e muito mais. Confira:

Bocada Forte: Nas suas palavras, quem é JuPat?
JuPat: JuPat é um corpo que transbordou em forma de chuva. E essa chuva é recebida de diferentes maneiras por cada pessoa. Pode ser um incômodo, um escândalo, um alívio, uma resistência, uma libertação, uma declaração brega de amor… Pra mim é um delírio tropical, um mergulho, aquela melancoliazinha gostosa à meia luz, uma mistura de Portishead com Lulu Santos

BF: Como foi sua trajetória na música (e na vida) até o presente momento?
JuPat: Minha história com o rap é bem antiga. Começamos a fazer música lá no início dos anos 2000, quando eu e uns amigos daqui de Piracicaba descobrimos que dava pra fazer rap no pc de casa. Formamos um grupo, o ThePhin, e a gente passava o fim de semana fazendo música e soltando na internet. Depois fomos conhecendo mais gente com a mesma energia e formamos um coletivo maior, a Família Sempre. Foi uma época linda e muitas das maiores amizades que eu carrego até hoje vêm dessa época.
A vida vai passando, relações, trabalhos, mudanças, outras cidades, outras músicas, outros gêneros e, no ano passado, eu me vi em um momento da minha vida que eu estava transbordando existência. Saindo de uma relação de 10 anos, tendo passado por um processo profundo de transformações, transição de gênero e uma nova forma de encarar e enfrentar o mundo… E aí começou a chuva. eu precisava escrever e registrar todo esse processo e esse momento e conforme eu ia criando, minhas músicas iam me recriando, e eu fui mergulhando até parir, até mais uma mulher nascer chovendo.

BF: Uma metáfora que atravessa todo seu álbum solo – do título às transições de faixas – e mesmo agora em suas respostas é a chuva. Como você enxerga essa metáfora da chuva?
JuPat: Pra mim a chuva é a melhor representação desse tranbordo de existência que eu tento registrar nesse disco. É um nascimento, por um processo natural de transformação, a passagem da matéria de um estado físico pra outro. Ao mesmo tempo, a chuva é a benção: é a natureza se manifestando através de uma catarse, um escândalo, um fenômeno natural que mexe na rotina de uma cidade e deixa todo mundo meio introspectivo. E também tem um lado mais instintivo, dos símbolos dos lugares de criação… O lugar onde eu busquei a inspiração pra esse disco é esse lugar da água, da fluidez, das entidades netunianas, da libertação do emocional, do misticismo, do desejo de alcançar o divino.

BF: Seu estilo de escrita parece bastante pessoal, com relatos e construções de cenas bastante inspirados em sua vida. Como é a sua relação com seu eu-lírico?
JuPat: Como eu disse é uma relação de criação e recriação muito intensa, rola praticamente uma transa entre eu e minha eu lírica… Ela joga uma frase, eu falo “ah, que xaveco fajuto”, aí ela tenta de novo, eu falo “continua”, até que ela acerta uma e eu
falo “yeaah” (risos).

Meu processo de composição é muito pessoal, individual… eu preciso me isolar do mundo, me desligar, mergulhar, entrar na dimensão do beat, tentar desvendar qual é a emoção que tá sendo pedida ali, e qual é meu personagem ali dentro… Então acabam saindo letras muito existenciais, acaba sendo uma exposição muito forte, uma nudez, que eu vou mascarando e disfarçando com umas roupinhas metafóricas.

BF: Entrando já no “Toda Mulher Nasce Chovendo”, me chama atenção justamente a intensidade mas, o mesmo tempo, a sensibilidade e a lírica mesmo que permeia todas as faixas tanto nas letras quanto no encaixe delas com os Beas. E isso já fica nitido na faixa que abre o álbum – “Introbiografia”. Poderia cobrar mais sobre a composição dessa faixa?
JuPatEssa faixa talvez seja a que mais resume o disco, não por acaso se chama “Introbiografia”, uma biografia escrita por dentro. Ela veio no meio do processo de composição do disco, eu já tinha escrito algumas faixas, mas ainda tava buscando a primeira. Eu tinha acabado de voltar de uma viagem da África, ainda vibrando todas as experiências mágicas vivenciadas lá, é um lugar que te empurra pro encontro com sua ancestralidade… Era também um momento crucial pra afirmação da minha identidade e pro resgate de forças que eu precisava extrair do universo pra existir e ser ouvida. Eu vejo essa música meio que como um manifesto pela minha existência. Que vida não tem suas contradições? Por que eu não posso ter as minhas?
Ela bebe inspirações no livro “Manifesto Contrassexual“, de Paul B. Preciado, que dá uma rasteira em todos conceitos estruturantes do poder sobre o nosso corpo, homem/mulher, hétero/homo, natural/artificial, carne/plástico, orgânico/tecnológico… E por fim, acho que foi nessa faixa que consegui chegar o mais perto da musicalidade que mais me toca, essa vibe meio trip hop, graças à produção gênia do Pipo Pegoraro e das vozes deusas da Silvia Tape.

BF: Outra faixa incrível é a “Transe”. Desde a introdução com uma amiga mandando mensagem, toda a faixa e mesmo a finalização contando sobre uma mulher negra e o peso que as mulheres carregam no peito. Também cheia de simbolismo, chama atenção a sua sensibilidade ao falar sobre sexo de uma maneira tão delicada. Poderia comentar a criação dessa faixa também?
JuPat: As poesias de whatsapp dessa faixa são um oferecimento da maravilhosa Dani Ursogrande, minha amiga amada astróloga (aliás, quem tiver interesse numa leitura astrológica poética, procure-a!)… Quando eu fiz essa música o disco já tava mais avançado e eu achava que tava faltando uma música mais “safadinha” (risos). Explorar mais o lado da sensualidade… Aí o Rasec apresentou o beat que era perfeito pra essa idéia, só que como eu sou toda metida a abstrata existencial, acabou saindo essa narrativa de uma transa com a morte: das relações dos nossos desejos com as entidades abstratas e como isso vai se traduzindo nas nossas relações com o corpo…
A idéia é essa, o Transe, podendo ser um imperativo, uma sugestão, “transe!”, se relacione com o outro, se liberte, se entregue e significando também o transe no sentido de uma busca para um estado não convencional da mente, de identificação com a divindade, com as entidades ocultas do universo. E partindo dessa ideia, vem o Trânsito entre esses universos, do desejo, da sedução, da vida e da morte, do claro e do escuro, da melancolia tropical, do que tá concreto na pele e o que tá escondido debaixo das abstrações e dos lençóis, de um corpo não convencional se transcendendo nas trocas, até encontrar aquele lugar do orgasmo em que o tempo para, que a gente morre um pouquinho, que não se sabe mais o que é corpo e o que é entidade.

BF: Recentemente saiu um entrevista linda sua no canal ter.a.pia no YouTube onde você fala principalmente sobre sua transição de gênero “tardia”. Em certo ponto você disse que ainda que as pessoas trans precisem se desconstruir e experimentar muito para se entenderem (vivendo de maneira não linear, como você conceituou), as pessoas cis também não tem vivências tão lineares quanto pensam. Como você entende isso?
JuPat: Me aponte uma vida linear, totalmente livre de contradições, perfeitamente enquadrada em todos esses padrões que nos enfiam goela abaixo… Se achar uma pessoa assim, essa deve ser a pessoa mais chata e entendiada e insuportável do mundo, né? (risos) E tem muita gente sofrendo por essa imposição de um caminho único e obrigatório possível… Tanta gente poderia estar aí dando seu melhor, criando, atendendo seus desejos e talentos e acabam que tão passando por crises profundas e sofrendo com pressões nas escolas, na família, nas ruas, por uma simples intolerância, por uma incapacidade da sociedade de abraçar todas as possibilidades da vida humana, que são infinitas…
Pega essa distorção, essa desonestidade intelectual que são os discursos de ataque à ameaçadora “ideologia de gênero”, por exemplo. Como se ideologia de gênero não fosse o que já existisse, perpetuando e enfiando goela abaixo das pessoas o que são coisas de menino e coisas de menina, o que homens devem fazer e mulheres devem fazer, que faz os pais seguirem torcendo pra que seus filhos meninos apresentem trejeitos masculinos e virem cidadãos de bem, fazendo pose de arminha com a mão e que as suas filhas meninas apresentem trejeitos femininos e se tornem belas, recatadas e do lar. Ideologia é sempre dos outros, né, o meu é o pensamento “natural”…
Eu acho que a quantidade de pessoas, das mais variadas vivências possíveis que chegam em mim falando que sentiram algo com o meu disco é uma prova de que não precisa ser trans pra lutar pela libertação, pela tolerância, que todas as vidas tem suas curvas e que não adianta votar em candidato fascista achando que você tá livre e seguro porque uma hora você vai ser enquadrado também.

BF: Mudando um pouco o assunto, eu gostaria de te perguntar sobre o cenário rap BR. Nós sabemos que a cena ainda é bastante masculina e normativa em relação às manas e às monas. Para você, quais são as principais dificuldades encontradas pelas LGBT’s que estão hoje no rap?
JuPat: Acho que não é muito diferente das dificuldades que a gente encontra em qualquer outro lugar… Toda cena tem os cena tem os seus donos e a cena é sempre naturalmente cisheteronormativa, né. Eu, por exemplo, fui atrás de um espaço pra apresentar um show numa casa aqui em Piracicaba. O discurso do dono da casa foi do tipo: “olha, eu sou super aberto a esse tipo de público, mas precisaria de uma programação muito específica voltada a isso, pois abrir a casa por abrir, sem público, é uma noite perdida”. “Esse tipo de público”, saca?… quer dizer, quem é que quer ver uma trans cantar rap? onde habitam? do que se alimentam? o rap nunca é “rap hetero”, porque essa é a normalidade, agora um rap gay é um rap gay, um rap trans vai ser um rap trans, é a mesma coisa que o Don L diz sobre a premiação da categoria “melhor rap do nordeste”.
Então é isso: a cena existe e estamos sim conquistando os espaços, mas não porque o cenário deixou de ser LGBTfóbico, mas porque tem um monte de artistas fodas todo dia rasgando essa lona.

BF: Falando agora sobre outro nicho, ainda que o movimento LGBT cresça cada vez mais no Brasil, temos problemas internos como a falta de visibilidade para pessoas trans e para LGBTs negras. Na sua visão, quais pautas deveriam ser priorizadas no movimento LGBT e porque?
JuPat: Esse balaio dos preconceitos dentro do próprio movimento LGBT é grande, né… Não tem jeito, os preconceitos naturalizados e enraizados na sociedade são estruturais e tem gente que acha que porque se identificou com uma letrinha G ali da sigla tá autorizado a repetir os mesmos preconceitos contra as outras letrinhas…
O movimento LGBT não tá de forma alguma livre do mesmo racismo, machismo, transfobia, invisibilidade bissexual, gordofobia, discriminação aos pobres, aos deficientes que a gente encontra fora dele. Tem LGBT votando em candidato que quer nos eliminar. tem político negro e gay atuando contra as pautas negras e LGBTs. Tem feministas radicais destilando às trans o mesmo ódio dos fascistas. Não existe superioridade moral em ser um oprimido e tá cheio de oprimidos trabalhando pela causa opressora.
Eu não tenho a pretensão de ditar quais pautas que o movimento LGBT deve priorizar, isso deve ser construído por todas as vozes que tão aí sendo caladas mas acho que nesse momento do país, não tem como fugir da pauta mais urgente que é evitar a legitimação de todo esse ódio com a eleição do candidato que diz que “as minorias tem que se curvar às maiorias”, que “ou as minorias se curvam ou simplesmente desaparecem”. Se esse discurso não é suficiente pra nunca ser endossado pelo seu voto, você perdeu o senso de humanidade.

BF: Hoje em dia quais artistas LGBT’s você tem ouvido e não saem do seu fone?
JuPat: A deusa Linn da Quebrada, as amadas do Rap Plus Size, o divo Raphael Warlock (que em breve teremos novidades juntinhos), a Monna Brutal, Danna Lisboa, The Internet, Princess Nokia. E deixa eu citar o Edgar também, que não é propriamente LGBT, mas é meu amigo, inclassificável, uma inspiração e uma entidade libertadora, e com certeza tá do nosso lado.

 

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e o cistema

Uma publicação compartilhada por Ju Paterniani (@jupat.jupat) em

BF: Antes de fechar queria te perguntar, rapidamente: – Um livro (e/ou quadrinho)? – Uma música? – Um filme ou série (e/ou uma animação)? – Uma inspiração?
JuPat: Livro, escolho a série “Napolitana“, da Elena Ferrante, deliciosa companhia ano passado. Quadrinho, a série “A Pior Banda do Mundo“, de José Carlos Fernandes.
De música, “Astronauta” de Os Nonatos, acho que toda minha essência, a minha eternidade tá resumida nessa música. É a mais linda declaração do amor e da beleza feminina em uma viagem de disco voador, transpondo os limites do céu multicor. E tudo isso na vibração da música mais raiz, mais profunda, mais interior, pra ouvir deitada no chão e olhando as estrelas.
Série, Transparent mudou minha vida e estou completamente apaixonada por Brooklyn Nine-Nine.
Filme, A Pele que Habito, Estamira e Volver
Inspiração, Laerte.

BF: Para finalizar: quais mensagens você gostaria de deixar para quem acompanha seu trabalho?
JuPat: Eu lóvi todos vocês. O meu sentido em fazer música se completa quando alguém sente algo com o que saiu de dentro de mim. Vamos nos desalgemar de nós. Amem livremente. E #elenemfudendo. Me sigam no insta pra ver fotos da minha gata Soso e vá nos meus shows! (risos)