Priscilla Feniks: ‘só a gente sabe’
ESPALHA --->
Por: Nerie Bento, Hip Hop Feminino
A entrevistada de hoje é mais que especial. Iniciou no hip hop há 15 anos como B-Girl, mas estava predestinada a ser MC. Ressurgiu das cinzas diversas vezes e usou suas vivencias para construir suas músicas. Já morou em Porto Alegre, Rio de Janeiro e, por enquanto, está em São Paulo. Nunca aceitou ser coadjuvante e nem esperou por oportunidades, criou suas próprias chances através de sua empresa de produção cultural e ocupou espaços que até então eram somente de homens. Em 2013, lançou seu primeiro CD Só a gente sabe, com produção de E-Beilli, cujo trabalho foi elogiado por diversas pessoas importantes do hip hop, como KL Jay. A MC da vez é PRISCILLA FENIKS.
Um amigo me falou que a Feniks era uma das melhores MCs da cena. Dias depois, assisti o show dela na Virada Cultural com ele, não consegui conhece-la pessoalmente no evento. Meses depois estávamos juntas em uma van trocando varias vivencias. Ganhei um CD dela e prometi ouvir e fazer uma resenha. Preferi aguardar esta entrevista. O disco já é lindo pela arte, Feniks é puro swing, a qualidade da produção musical deste trabalho não deixar a desejar em nada. Minha preferida é “Deixar Passar”, com participação da Nanny Soul, duas mulheres talentosas, musicalidade pura, fiquei pensando como não conhecia ainda o trabalho da Priscilla. A falta de acesso ao trampo das mulheres tem disso. Agora não largo mais, acompanho todos os projetos, mesmo de longe e já posso me classificar como fã, Feniks é uma extensão da música autentica que ela faz.
Apresentação
Sou a Priscilla Feniks. Nascida em Porto Alegre, passei pelo Rio de Janeiro e estou hoje em São Paulo, muito do meu rap é marcado pelas histórias das cidades por onde passei, muitas vezes “ressurgindo das cinzas”. Tenho 33 anos e desde cedo (acredito que uns 12 ou 13 anos) escrevia muitas poesias pensando que elas poderiam virar música um dia. Como meu pai e irmão são músicos, então muito da construção poética surgiu dessa vivência. Tinha um fascínio pelo pandeiro, então aos 15 anos aprendi a tocar e gostava de interagir em rodas de samba, pois achava lindo uma mulher mandando ver nos instrumentos. Me interessei pela dança e em contato com o pessoal da rua, um amigo me apresentou sua irmã, uma das primeiras B-Girls de Porto Alegre: a B-Girl Cris. Após longas conversas sobre o que era a cultura hip hop e sua representatividade, ensinou os passos. Com isso, iniciei um envolvimento maior com o hip hop e as pessoas que faziam parte dele. Também tentei por diversas vezes montar grupo de rap feminino, mas nunca dava certo. Os caras chamavam pra participar dos sons: “bá, tem um refrão aqui que queria que tu fizesse”. Queria morrer com isso, tá brincando comigo, o refrão pode ter 16 compassos e ser só rimado? Se puder fecho, mas como dizem os mais novos SQN. Desenvolvi um trabalho com a Assessoria Fenix Cultural, um coletivo de mulheres – a MC Flor do Guetto também era uma das integrantes – e, através dessa equipe, iniciei muito da minha construção nos movimentos negros e nos movimentos de mulheres, sempre em busca da inclusão do hip hop, da mulher do hip hop, da juventude negra. Aos 22 anos, me mudei para o Rio de Janeiro (a convite de uma ONG), e participei das gravações do CD do sambista Ytallo Bezerra da Silva (na época MC Partideiro), fazendo rap com samba. Aos 25 anos, já em SP, ganhei tive mais oportunidades para a produção do meu trabalho solo, além de poder realizar um projeto antigo: o Baile Soul Brasil, baile de rua que era realizado toda última sexta-feira do mês (2008-2010) na Rua 24 de Maio, no centro de SP, um dos símbolos da dança de rua e do hip hop. Era uma mulher produzindo e apresentando um evento no centrão, pois acreditava que se ninguém me dava espaço eu criaria meus próprios eventos para atuar e mostrar minha arte. Em 2013 lanço o meu primeiro CD “Só a gente sabe”, com letras guardadas há oito anos, e lancei com a produção musical de E-Beilli.
Processo de criação
As inspirações sempre vieram da rua, situações vividas em Porto Alegre, Rio de Janeiro, e São Paulo. É um constante aprendizado de reflexão entre tudo o que já passei e que me ajudou a me tornar o que sou hoje. Muitas vezes o que não consigo expressar às pessoas ou mesmo pela internet, sai nas letras. Normalmente alguma música ou refrão já vem cheio de melodia. Por muito tempo ouvi que lugar de mulher não era na rua, não era militando. Minha história foi construída com base nessas vivências e andanças da rua, então falo de tudo em minhas rimas e me inspiro nessas situações que tenho certeza que são situações que muitas jovens passam. São assim mesmo, cheias de sentimento cheias de reflexões. Como uma vez KL Jay falou ao ouvir a música “Só a Gente Sabe” (me lembro que foi mais ou menos isso): “parece um trem descarrilado, não tem lógica”. Acho que é isso mesmo, não tem lógica assim como a rua não tem lógica. A gente vive ela e ela vive em nós. Algumas histórias ainda são um desafio para mim, para que vire uma letra, mas um dia sairão. São cotidianos da rua na visão e experiência de uma mulher. Me inspiro também em várias guerreiras que tem as suas trajetórias marcadas por essas histórias e que são exemplos para mim, como a Dina Di e a Flor do Guetto.
Relação com fãs
Essa palavra soa estranho pra mim. Mas fico muito feliz quando as pessoas entram em contato, ou até amigos que me conhecem a muito tempo e que puderam ouvir de fato o meu trampo há pouco tempo, e que falam que curtiram o som ou compartilham nas redes sociais. Também fico muito emocionada quando um adolescente curte meu som, porque pô, é difícil “conquistar o coração” ou a atenção de um adolescente (estava falando isso alguns dias atrás com a Lunna da Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop). Em um dos últimos shows, na Virada Cultural em SP, tinha uma menina que ouvia o som e chorava muito, mas muito. Quando fui falar com ela e levar um CD meu de presente, nossa, ela falava: é a história da minha vida, foi muito difícil mas estou aqui viva. Pois é, só a gente sabe…
Trabalho
“Só a Gente Sabe” – lançado em 2013. Foi muito difícil para essa produção sair, porque como eu disse, a maioria das músicas e refrões já vinham cheias de melodia na minha cabeça, e ficava difícil encaixar nos samplers. Era muito difícil também encontrar produtores musicais que estivessem dispostos a fazer um trampo pra mina. Pra mim, que sempre fui tímida e tinha um pouco de receio de mostrar o meu trampo (porque sempre achava que não estava bom, e talvez até não tivesse mesmo) qualquer piada, brincadeira ou até mesmo perceber que alguém não estivesse empolgado em construir uma instrumental já era motivo pra voltar do zero. Esse trabalho, em especial, foi muito simples de ser produzido, pois o E-Beilli é músico e ele conseguia entender melhor o que eu queria e desmembrar as melodias na minha cabeça. E também estava disposto (com a insistência de nosso amigo baterista Wavá Marinho). Eu ia rimando e cantando, e ele já fazia no violão. Então o processo de produção foi mais simples. Também ficava a vontade para expor minhas ideias sem ser “cortada”, ou seja, ouvir que aquilo ou isso não funcionava pro rap. Porque sem brincadeira, ora eu “tinha que cantar igual Erikah Badu ou tinha que rimar igual Snoop Dogg”. Então esse CD Só a Gente Sabe foi um filho que nasceu com oito anos ou mais de gestação. Mas já estou começando a trabalhar o segundo, que terá um “lado A e lado B”, espero que não fique tanto tempo na “barriga”. Um bagulho de loko, sem regra.
Estilo Feniks
Não sei se me enquadro em algum estilo específico no rap. Até mesmo penso que rap é rap e pronto. A essência é uma só. Já me falaram muitas coisas, seu rap é isso ou aquilo. Mas eu não paro muito pra me preocupar com estilos quando faço o som, e muito menos se está do tamanho pra tocar na rádio ou não. Não vai tocar mesmo seu eu não pagar… Salvo caso ou outro. Então, hoje sei, faço o som com o máximo de sentimento e verdade, e deixo as pessoas sentirem também e entenderem da forma delas. É o que tenho pra oferecer.
Influências
Até os 15 anos de idade, só me lembro que tudo o que tocava em casa tocava no velho “rádio toca fitas vinil” no centro da sala. Então eu não tinha radinho, toca-fitas, walkman, etc… Tinha esse aparelho de som que tocava as músicas dos meus pais. Então minhas maiores referências vieram daí: minha mãe era fascinada por Michael Jackson e meu pai ouvia Louis Armstrong e Gipsy Kings. Isso o que me lembro. Quase toda noite, esperávamos meu pai chegar, porque ele pegava o violão e começava a cantar: “mistérios da meia noite…” e “What a wonderfull world…”, inclusive com a mesma tonalidade de voz do Louis.
Quando fui ter meu toca-fitas e walkman, daí conseguia gravar as músicas da rádio. Então minhas influências foram: 2Pac, RZO, Dina Di, Nde Naldinho, Doctors Mcs, Jigaboo, Racionais, Face da Morte, Snoop, Lauryn Hill e Queen Latifah, Ray Charles, Jorge Bem, Tim Maia, Cassiano, Hyldon, Leci Brandão, vários sambas. Mas tem muito som que rolava no programa do Brother Neni e que curtia muito: Run DMC, Wu tang Clan, Mos def, e por ai vai. Sempre fui mais de nacional do que internacional. Tudo isso faz parte de alguma forma do meu som, mas não existe uma busca específica ou algum som específico que me influencia diretamente. Vai da alma…
O Hip Hop Feminino
Nossa, toda a importância do mundo. Nós não temos destaque, temos pouquíssimo espaço. Temos que fazer nossos corres por nós mesmas. Infelizmente a maioria das pessoas que possuem algum tipo de mídia no hip hop nacional, não fazem nada diferente daquilo que a grande mídia faz. Falando do rap, existem muitas mulheres fazendo seus corres e muitos trabalhos femininos ainda estão no forno (porque ainda é muito difícil fazer ou encontrar essa produção musical). Então é muito importante um projeto deste tipo que promova essa produção criativa da mulher no hip hop. Assim conseguimos mostrar que o hip hop feminino é forte, e que a cada dia vem demonstrando muita qualidade nas rimas. Como diz a D´Origem: Põe o capacete que o teto vai cair!
A mulher dentro do Hip Hop
O espaço para a mulher vem crescendo a cada dia, mas é um espaço conquistado com muita luta e suor, um espaço que só abre com o pé na porta desde as primeiras que estão fazendo o hip hop até hoje. Não precisamos do aval de ninguém pra fazer nossos corres, então vamos lá e fazemos. Mas com dificuldade ainda, mas a cada dia conquistaremos mais espaços como, por exemplo, um dia teremos mais produtoras musicais do rap. É desgastante ter que a todo evento defender a questão de gênero, porque eles não entendem, mas enfim é isso. Estes espaços conquistados vem sendo, na verdade criados pelas mulheres, porque os espaços que já foram delimitados são puramente masculinos, são festivais, eventos, casas noturnas, ações socioeducativas, e diversas outras atividades com programação puramente masculinas. As mulheres estão ali para tirar foto, filmar, produzir, anotar contatos e arrumar o camarim. Parece que as mulheres no hip hop não existem, como protagonistas, como artistas, como militantes… Mas estamos aqui, não só de olho no movimento, mas fazendo a máquina girar. Então esses espaços vão sendo criados, como a página do hip hop feminino, espaços criados pelas mulheres do hip hop. Em breve, seremos as mantenedoras e protagonistas de rádios, programas de televisão, grandes festivais. Infelizmente a ideia era fazermos nossos eventos em conjunto, mas essa velha desculpa de que não existe mulher no hip hop valeu até um momento. Hoje, com tanta mulher no hip hop, a desculpa é de que a qualidade musical do rap feminino não é boa. Amanhã, será outra “desculpa”. Aliás acho incrível um movimento que luta tanto contra o racismo seja mantenedor do machismo. Estratégias de opressão e invisibilidade tão iguais, mas que em um caso é luta e em outro caso é ‘mimimi’. Tudo opressão, tudo ismos que fazem pessoas sofrer e serem estereotipadas ou condenadas a um lugar de inferioridade na sociedade. Ou seja, a sua verdade e ideologia vão até onde mesmo?
Indicação
Gostaria de ouvir um pouco mais da minha irmã Flor do Gueto, a guerreira Alessa, do Rio de Janeiro (que fazia parte do grupo Vozes do Gueto). Daqui de Sampa, indico Sharylaine.
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