O canto, a batida e o rap d’As Lavadeiras
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A música rap rompe fronteiras e talvez seja um dos poucos estilos musicais que consegue se mesclar com outros estilos sem perder sua raiz. Pelo contrário, se completa. Essa é uma das características do trabalho do grupo AS LAVADEIRAS.
O grupo – formado por Karen Dias (23), Sarah Key (29), Bruna Moura (24) e DJ Nandes Castro (32), todos residentes no município de Mogi das Cruzes, São Paulo – lança o EP “AS LAVADEIRAS” (ouça abaixo), que vem com cinco faixas que misturam o rap com a música popular brasileira, samba de coco, maracatú, dentre outros estilos.
Mas o trabalho d’As Lavadeiras não se limita ao ritmo e a poesia. O EP homônimo, lançado no fim de 2016, vem no formato de webclipe, com todas as faixas e um forte teor de protesto contra a violência do sistema, questões ligadas a mulher, ao cotidiano e sempre com muita musicalidade.
Aproveitando o lançamento, trocamos uma papo com duas das integrantes do grupo, que falaram sobre suas influências, as origens do grupo, questões sociais, machismo, dentre outros assuntos. Confira!
Bocada Forte: Como e quando o grupo se formou?
Karen: O grupo teve início em 2014 através de uma oficina de MCs realizada na casa do hip hop de Mogi das Cruzes ( Região metropolitana de São Paulo), com o nosso amigo e irmão Acme. Eu e Sarah sempre nos encontrávamos nos movimentos de arte da cidade e sempre nos sentíamos de alguma forma conectadas. A Sarah já era integrante do grupo de maracatu Suburbaque e eu estava começando a expor composições de muitos anos atrás, estava vivendo uma energia de coragem nunca antes vibrada daquela forma. Muito antes de nos encontrarmos na casa do hip hop fomos nos apresentar na Casa Fora do Eixo. Eu fui cantar três composições minhas e Sarah foi com o grupo Suburbaque para tocar alfaia. Nesse dia a pessoa que iria me acompanhar no violão não apareceu e lá estava Sarah. Nunca tinha ouvido meu som e acompanhou na percussão junto com outra irmã como se tivesse intimidade com as músicas. Isso tudo pra lembrar que nada se move de forma incorreta ou imperfeita nesse plano. O mano não apareceu no dia pra que tivéssemos tido essa conexão. Uma semente que foi plantada lá trás pra que a gente se reconhecesse nesse trabalho no agora.
Sarah: O grupo se formou no final de 2014, na oficina de MC ministradas pelo Acme, na Casa do Hip-Hop de Mogi das Cruzes.
Bocada Forte: Porque a escolha do nome ‘As Lavadeiras’?
Karen: Quando olhávamos pra dentro de nós e pras obras que estavam nascendo do nosso encontro, era muito presente a influência da cultura popular de forma natural e os assuntos genuinamente eram sobre nós, sobre as mulheres, era a nossa voz ressoando aos nossos ouvidos, tomamos consciência de que estávamos representando todas as nossas ancestrais do feminino, era mais que fazer um rap. Na época das oficinas o Acme sugeriu esse nome pra gente, as mulheres mais fortes da cultura popular são as lavadeiras que cantavam seus cantos de trabalho na beira dos rios. Sempre foi sobre nós, aqueles encontros entre as mulheres, as trocas, os cantos em uníssono, a sonoridade junto com o barulho das águas. Não existe número certo pra cantar os cantos de trabalho, quanto mais mulheres cantando, mais bonito fica. Assim é a nossa caminhada, o tempo todo estamos chamando mulheres e irmãos pra somar nesse existir. É como um convite aberto a somar com nosso canto de trabalho e luta.
Sarah: O nome foi palpite do Acme, vimos que tinha peso e fazia menção a tudo que precisávamos, desde os temas tratados, toda essa “roupa suja” sendo lavada, até a cultura popular, as Lavadeiras e seus cantos de trabalho.
Bocada Forte: O EP do grupo trouxe alguns elementos de música popular e outros instrumentos mesclados ao rap. Quais são as suas principais influências?
Karen: Primeiramente os próprios grupos de nossa cidade, o Jabuticaqui, o Suburbaque que são dois grupos que nos aproximou da cultura popular de uma forma muito generosa e democrática, nos ensinou muito, nos deu direção e norte. Meu pai, baterista e extremamente musical, me ensinou a apreciar o sons das coisas antes de classificá-las. As Clarianas são como um presente pra nós, nos acrescenta muito musicalmente e cenicamente. Coco raízes de arcoverde, o baque de porto rico no qual tivemos a oportunidade de vivermos uma oficina juntas com o gigante Rumenig Dantas. A cultura popular nos ensina sobre força, sobre nossas origens ancestrais. Nos estimula a descobrir nossos sons naturais, o canto que é de toda mulher, de toda lavadeiras em potencial. Em geral sou influenciada com a postura de quem reconhece e executa a missão de existir com responsabilidade. Seja no rap ou fora dele há algo que nos aproxima dos irmãos e irmãs que buscam um exercer não corrompido. A gente já nasceu corrompido e vejo uma legião de seres vindo com a intenção de purificar nossa desconexão. Um religare não institucional. A mim me influencia essas pessoas no geral, me colocam sempre de volta no meu trilho, me fazem lembrar de quem eu sou na minha linha do tempo universal.
Sarah: Eu venho de três grupos percussivos que reproduzem os ritmos tradicionais de Recife, Pernambuco e Maranhão. Eles são Suburbaque, Jabuticaqui e Batucaia, daí as influências, maracatu, coco, boi, ciranda e outros. Fora os grupos e mestres que tive o prazer de conhecer e vivenciar oficinas, mestre Gilmar da Nação Estrela Brilhante de Igaraçu, mestre Afonso da Leão Coroado, Chacon do Porto Rico e também Cacuriá de Dona Teté.
No rap, minha maior influência foi Visão de Rua, também tive a honra de conhecer a rainha Dina Dee, eu era adolescente e ela bombardeou minha mente de idéias, satisfação. Fora SNJ, que até suas canções são para mim como orações, mais o rap nacional anos 90 e 2000 fizeram minha construção.
Bocada Forte: A música “Abatedouro” faz uma forte crítica à sociedade. Qual o posicionamento do grupo com relação a questão social e política atual e quais ações podemos ter para mudar a situação?
Karen: Abatedouro nasceu como um parto, doloroso e curandeiro. Existem operações policiais que são como limpezas sociais. Um massacre dentro das quebradas, onde muitos meninos cheios de muita luz morrem cruelmente sem ter tido a chance nem de ter se (re)conhecido nesse plano, de ter se desenvolvido como um alienígena em solo terreno. E estava acontecendo uma operação dessas nos nossos bairros, mataram um menino da minha rua, que estudava com meu irmão, tinha a idade dele, podia ter sido meu irmão. Aquilo me corroeu por dentro e a sensação que eu tinha era de total impotência. Toda a dor foi colocada pra fora em forma de música. Nós precisávamos falar sobre aquilo, tomar consciência de um desconexão é estar atento a ela. Falar sobre a limpeza social nas quebradas é reconhecer e se colocar disposto pra transformação. O rap pra mim foi isso. Serviu de informante de uma realidade, me colocando a serviço da transformação. Não é só denúncia. É o serviço da desconstrução pra reconstrução originária. Toda a transformação, acreditamos, está no próprio existir de forma consciente. Tudo o que somos, somos por influência de alguém. Tenho certeza que você que lê o conteúdo do Bocada forte o faz por influência de alguém ou de algo, por exemplo. Por isso em tudo o que a gente faz a gente busca estar atenta à essa responsabilidade de influenciar. Acreditamos na arte como uma ferramenta poderosa de mudança. O que a gente propõe, tanto nos shows, quanto fora do palco, é sempre a oportunidade da pessoa se questionar e se sentir. Se reconhecer é o primeiro passo pra se posicionar. Quantas vezes a gente não ouve dos irmãos e irmãs a frase “eu não consigo” as vezes você só está ali naquele espaço tempo pra dizer que você também já achou que não conseguiria mas que se livrou dessa armadilha mental, entende? Você nunca é colocado num ponto geográfico com outro irmão ou irmã a toa, há sempre algo pra absorver e aprender. Já pensou quantas vezes já deixamos de influenciar pro bem por covardia ou preguiça? Acreditamos nesse existir de forma consciente, porque somos co-criadores desse universo, a magia é a transmutação de um estado pro outro. A música é mágica, o estado presente de um ser humano é mágico , a forma que a gente se alimenta, veste se relaciona com as pessoas, tudo é um ato social, um ato revolucionário se feito de forma consciente, não mecânica. Todo mundo ocupa um lugar de destaque, um chamado de responsabilidade. Mas o sistema implantou na gente que só quem tem um bom diploma e um cargo outorgado é quem ocupa um lugar de honra. Se coloque no seu lugar de honra, só quem pode outorgar esse lugar é a sua intuição.
Sarah: A nossa obra no seu todo já deixa bem claro nosso posicionamento. Boicote a toda e qualquer forma de silenciamento. Hoje tudo virou um ato de resistência, desde de se vestir até se alimentar. Acreditamos na valorização de estilos de vida mais alternativos, que estimulam as relações e suas vivências, de forma que sirvamos o povo, sempre buscando ações benéficas pra gente e pro outro
Bocada Forte: O número de MCs mulheres e grupos formados por mulheres cresceu muito nos últimos anos e com alguns ótimos trabalhos. Nos shows do grupo vocês presenciam muito a questão do machismo? E se sim, que forma esse machismo é reproduzido?
Karen: Acho que a visibilidade pros trabalhos das irmãs tem aumentado. Sempre existiu muita mulher no hip hop mesmo sem muito espaço pra nós. A gente é agraciada por um público muito respeitoso que nos segue, irmãos que somam de verdade e se colocam no papel da desconstrução mas infelizmente não é sempre assim. Já vivemos experiências em que os irmãos deram a devida atenção a todos os grupos que se apresentaram, grupos de homens e quando entramos na cena essa atenção foi reduzida a quase zero chegando ao nível de atrapalhar o show pela inconveniência. Ninguém é obrigado a dar atenção a ninguém, mas respeito é importante e o hip hop me seduziu exatamente porque aprendi posturas que a escola convencional nunca me ensinou. E a gente sabe que esse desrespeito sempre tem a ver com poder. O ser humano aprendeu a se achar superior aos outros seres. A gente se mata todo dia, mata floresta, mata os bichos, mata a água, mata mulheres, mata negros, mata homossexuais. Você mata sempre algo ou alguém que lhe é menor, inferior, você objetifica, toma posse e manipula. O machismo é uma doença muito profunda que estamos tentando erradicar. Amamos nossos irmãos, celebramos com eles mas não permitimos mais que essas posturas se repitam pois não se trata de Karen ou Sarah, mas se trata de todas as outras irmãs que merecem respeito, um respeito que a gente nem deveria se preocupar em exigir.
Sarah: O machismo existe. Fato. Logo temos que lidar com ele todos os dias. Uma vez em certo evento, que inclusive foi cancelado na hora sem ao menos nos comunicarem, éramos nós, mais um mano e outro grupo, também com homens, eles se reuniram, e começaram a decidir se iam tocar na festa ou se íamos embora, em momento algum perguntaram qual era nossa vontade a final. Sobre a cena feminina ter crescido, é fato! Mais também é fato que ela cresceu muito mais do que realmente eh mostrado, pouca coisa chega até nós, não são alguns bons trabalhos, são muitos, somos muitas, são obras de empoderamento, feminino, social e humano, a problemática sempre foi a mídia seletiva que nos silencia todos os dias, nossa luta é deslegitimada, mas se não nos dão espaço a gente toma de assalto.
Bocada Forte: As músicas do grupo abordam temas fortes, como abuso infantil e outras formas de violência, mas de maneira extremamente musical. Muitos MCs deixaram de abordar alguns desses temas e se preocupar mais com a imagem e o ritmo. Qual a opinião de vocês sobre a atual cena do hip hop no Brasil?
Karen: Eu acho que cada pessoa sente de externar o sentimento que mais vibra nela. Se a aparência física é tão importante pro MC e a música evidencia isso é porque a pessoa tá vivendo aquele momento em demasia. Eu busco respeitar a expressão de cada um porque se colocar a disposição da própria arte não é fácil no Brasil. Agora, pra mim isso é o que eu penso e não desejo que mais ninguém pense da mesma forma, porque esse é o processo que EU estou vivendo, portanto, só eu sei dele e o que é relevante tratar. Pra mim, por ser tão difícil elevar a sua arte até o patamar dos ouvidos dos irmãos, a mim não cabe agir no mínimo com toda a responsabilidade que me cabe. Cada vez que pego na caneta pra escrever é como um ritual de parto, um filho nasce pra gerar luz nesse planeta. Acredito que a música também. Busco ser verdadeira comigo mesma, mas sempre buscando dentro das minhas experiências sensoriais mensagens que auxiliem o processo de outros irmãos também. E a música, como tudo na vida, é tão impermanente. As primeiras músicas das lavadeiras tratam a vida de uma forma que a gente já não trata mais. A essência é a mesma, mas o olhar muda o tempo todo, então se você não for responsável naquele agora do escrever você mesmo pode se sabotar e consequentemente, os ouvintes. Busco estar atenta a isso e mais nada. Não busco comparar, porque a classificação é o tratar a vida com um senso racional perigoso. Se ver no outro é importante mas a caminhada é individual, sempre. Só desejo que todos que manipulam o poder da fala e as energias da música estejam sendo sinceros consigo mesmos e com o outro. Mais respeito com nós mulheres, estamos no mesmo corre, somos guerreiras do novo mundo, estamos com vocês, nos respeitem e nos honre não só na sua letra, mas na sua caminhada.
Sarah: Assim como outros movimentos, tem aqueles que honram os mandamentos e tem aqueles que faltam com eles. É mais importante olhar pra gente e honrar a nossa prática, sabemos da ferramenta poderosa que eh o rap em nossa vida, buscamos correr com responsabilidade, o movimento está vivo, embora eles queiram que a gente acredite q não, a gente tem q potencializar o que acontece de bom, aprender a agradecer, sobretudo, buscar soluções.
Bocada Forte: Qual o principal objetivo do grupo na música?
Karen: Aprender e passar adiante. Todo mundo tem algo relevante pra acrescentar. Desde quando iniciamos o projeto, aprendemos muito, todos os dias. O ofício me cobra a posição de aprendiz e essa postura eu tenho estendido pra minha vida em todos os sentidos. Depois de se colocar a disposição, se a gente sente de passar adiante algum aprendizado, fazemos. Compartilhar o conhecimento é o seu exercício. Somos canalizadores dessa e de outras dimensões. Acredito muito na música como materialização dessas conexões.
Sarah: Trazer empoderamento, estimular as potências das minas, potencializar a importância do expandir da mente, o tratar das consciências e melhoria pros nossos.
Bocada Forte: Qual a opinião de vocês com relação aos movimentos feministas do Brasil? As Lavadeiras são um grupo feminista?
Karen: Existir de uma forma destacada dentro de um movimento ainda muito machista como o rap por si só é uma ato feminista. Somos duas mulheres fazendo rap, tratando de sentimento, lidando com vidas, adentrando os corações das pessoas, fazendo um convite ao partilhar dos saberes e isso é muito sério. Tudo nos foi tirado, desde os tempos mais remotos nós já éramos subjugadas. Mulheres livres que tinham intimidade com a natureza eram queimadas vivas, julgadas publicamente e chamadas bruxas do mal. Houve um tempo em que todos nós éramos ligados com nosso centro sagrado, homens e mulheres. Nossos ancestrais indígenas prezam por uma boa postura ao se sentar, pois a coluna é sagrada. De repente pegaram esse ensinamento sagrado e transformaram em um instrumento de dominação da mulher, sentar direito se tornou uma obrigação às mulheres e os irmãos se perderam junto. Mulheres fortes que sabiam o que queriam eram sempre interrompidas e ainda hoje são. A gente questiona o porquê a nossa força é tão ameaçadora e fazemos um convite pra descobrir isso juntas. Quando algo que já nasce conosco nos é tirado, como a ligação das mulheres umas com as outras pelo útero e é transformada em uma competição implantada todos perdem, homens e mulheres. A falta de empatia agride a todos e nos adoece cada dia mais. Estamos a serviço, sim, de todos os instrumentos de autoconhecimento. O feminismo pra mim nunca foi violento ou uma agressão gratuita. A mim chegou como um abraço da mãe terra até pra me reconhecer como mulher, como deusa, a me ver nas outras irmãs, foi um presente. O feminismo não tem nada a ver com ataque, mas como um berço de resgate pra gente voltar a se amar como um dia fomos. Tudo o que me resgata à origem é sagrado e honro a vida todas as irmãs que fazem esse corre no seu som, na sua arte, na educação do seu moleque, da sua menina. Transmutemo-nos.
Sarah: Enquanto formos obrigadas a sair nas ruas gritando por condições óbvias, cada movimento tem sua extrema importância, muitas vezes estamos completamente desamparadas, esses movimentos são como pilares, trazem segurança e norte. Não nos intitulamos, acreditamos na pratica das ações pra além dos rótulos. Estamos na luta, por nós e por todas as outras.
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