Netão Influência: Educação através do Hip Hop
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#Educação #MemóriaBF
Em tempos de desmonte do Estado e da educação pública, resgatamos esta entrevista realizada por DJ Neew* com o MC e educador José Francisco Rossi Neto, conhecido como Netão Influência. O ano era 2015.
Muito se discute da importância da educação como base de formação social e cultural de uma sociedade principalmente diante a atual pauta da redução da maioridade penal, entretanto o sistema educacional brasileiro conta com diversos problemas que no decorrer dos anos não são solucionados por iniciativa governamental, com isso alguns militantes da cultura hip hop e moradores das periferias pelo Brasil tomam iniciativas independentes na elaboração de projetos e novas didáticas pedagógicas utilizando a linguagem do hip hop através de seus quatro elementos.
José Francisco Rossi Neto, conhecido como Netão Influência, tem 29 anos e uma trajetória de militância na cultura hip hop e na área da educação em especial no município de Cotia na região metropolitana de São Paulo, MC, educador e articulador cultural conta um pouco da experiencia com crianças e adolescentes nos projetos em que faz parte e como usa o hip hop em junção com a pedagogia de Paulo Freire.
Bocada Forte: Qual sua profissão e a quanto tempo atua na cultura hip hop?
Netão: Sou formado em jornalismo na Uninove. Trabalhei no jornal Brasil de Fato, como repórter, por dois anos e meio. Hoje atuo como educador social em projetos socioeducativos em ONGs, Instituições e Escolas Públicas. Sou MC do Grupo de RAP Influência Positiva, compositor e articulador do Sarau Poesia na Garagem, também daqui de Cotia. Sou membro e militante da cultura hip hop há 13 anos.
Bocada Forte: Fale da sua atuação na área da educação, o que faz? de qual projeto faz parte? aonde e como é feito?
Netão: Trabalho como educador social e cultural na Oficina de RAP (Ritmo Alternativo Pedagógico) que eu mesmo criei. Misturo o conteúdo das músicas de RAP com o método de ensino freireano, do grande mestre e um dos maiores educadores populares do mundo, o nordestino Paulo Freire. Na Oficina de RAP uso dois métodos de ensino diferentes. Com crianças de 10 a 14 anos, trabalho com interpretação de textos musicais que tragam algum conteúdo educativo e crítico. Nesse conteúdo, insiro a prática da linguagem oral e escrita. O RAP é muito rico nessa questão da linguagem, pois traz exatamente o nosso vocabulário em suas canções. Isso auxilia muito no processoficina 3o educativo da criança, pois ele “se vê” naquele conteúdo musical, que nada mais é que uma crônica do seu dia a dia. A partir desse encontro, da música com a criança, a gente dá início ao debate em torno do conteúdo de determinada canção. Como exemplo, trabalhei com os educandos a música Versos Vegetarianos, do Inquérito, Final Comum, do Nocivo Shomon, Negro Drama e Jesus Chorou, do Racionais MCs. Além do rap, trabalhei com eles a música ‘A Escravidão’, da banda Raízes que Tocam. Enfim, a partir da temática de cada música, a gente faz um debate e proponho exercícios referentes ao tema, que auxiliam-os na interpretação e conhecimento da linguagem.
Com os menores, de 5 a 9 anos, como estão ainda no processo de alfabetização, nós trabalhamos com atividades silábicas, também utilizando o método do professor Paulo Freire. A partir de uma Palavra Geradora, ou seja, alguma palavra usada no cotidiano das crianças, a gente cria o quadro de descoberta, que seria essa palavra, no caso FAMÍLIA, dividida em sílabas. Juntando todas as sílabas, a gente desmembra outras palavras, que se formam a partir da divisão desta. Com isso, as crianças vão pegando o som das sílabas que vão se formando. Com crianças dessa faixa etária, também trabalho com o rap, mais no sentido de leitura e ritmo das batidas. Ensino pra eles o compasso e a essência poética contida em cada música. Com o tempo, eles vão pegando o jeito de rimar as palavras, o que também ajuda muito no processo de alfabetização.
Bom, eu trabalho, no momento, em dois projetos. Um, na Escola Municipal Samuel da Silva Filho, no bairro do Mirante da Mata, toda segunda e quinta-feira, e o outro, na Fundação Maria Carolina, no bairro Jd da Glória, às terças-feiras. Ambos os projetos são em Cotia (SP).
O que eu quero dizer, é que nenhuma política pública é pensada no jovem, nem do de hoje nem no de 10 anos atrás. Nas periferias – e isso é um problema de muito tempo – não temos acesso aos serviços básicos de saúde, cultura, lazer e educação de qualidade
Bocada Forte: Qual sua opinião sobre o jovem nos dias atuais comparado ao jovem de 10 anos atrás e como o hip hop pode ajudar na educação desses jovens?
Netão: As coisas hoje estão muito mais à mostra, escancaradas. Um jovem há dez anos atrás, por exemplo, tinha um pouco mais de dificuldade de comprar uma droga. Hoje a venda é feita em qualquer canto. Mas isso não é culpa do jovem, e sim de como as coisas são estruturadas de cima para baixo. O que eu quero dizer, é que nenhuma política pública é pensada no jovem, nem do de hoje nem no de 10 anos atrás. Nas periferias – e isso é um problema de muito tempo – não temos acesso aos serviços básicos de saúde, cultura, lazer e educação de qualidade. Tudo é feito “nas coxa”. A única secretaria do Estado que entra nos bairros populares é a secretaria de Segurança Pública com a Polícia Militar, que na verdade traz Insegurança para os moradores. Não temos bibliotecas, pontos de cultura e de lazer. Quando tem, é a própria comunidade que se organiza e mobiliza. Nada vem do Estado, que pagamos – e muito caro! Claro, que por outro lado, não posso deixar de reconhecer que nos últimos 10 anos tivemos alguns avanços com as políticas sociais do PT. A periferia teve um acesso ao consumo que jamais tivera em outra época. No entanto, costumo dizer que essas políticas mudou da porta de casa para dentro. Do lado de fora continua a mesma coisa, os problemas são os mesmos. Acho muito importante sim a periferia ter um acesso ao consumo, mas só isso não basta, deveria ter continuidade, principalmente aos jovens. Beleza, hoje o jovem compra, se veste melhor, tem um ‘buti’ mais caro no pé e uma motóca pra fazer um rolê. Mas ele ainda respira o esgoto, não encontra áreas de lazer na sua quebrada e não tem acesso à uma cultura e educação de qualidade. Aquele jovem que não conseguiu ter esse potencial de compra, vai querer possuir os mesmos bens também. E o que ele faz? Vai pro crime, modo mais rápido e prático, porém, as conseqüências já conhecemos. Mas isso não é só “culpa do PT”. Os próprios estados e municípios deixam muito a desejar.
Nós temos que usar as nossas ferramentas e tentar construir algo novo, alternativo para os nossos jovens. E o Hip Hop tem um potencial transformador enorme! Ele aliado à educação ainda nem se fala!
Aí fica a pergunta: o que fazer diante desse cenário todo? Se entregar e cruzar os braços “porque as coisas são assim e assim sempre serão”? Nada disso. Nós temos que usar as nossas ferramentas e tentar construir algo novo, alternativo para os nossos jovens. E o Hip Hop tem um potencial transformador enorme! Ele aliado à educação ainda nem se fala! Precisamos resgatar um pouco essa essência de nossa cultura e por em prática, seja dando aula de rimas, poesia, grafite, dança, discotecagem, enfim, o Hip Hop é um leque de alternativas, basta cada um encontrar a sua identificação e trabalhar. Então, nós, que fomos jovens há 10 anos atrás e que pertencemos a cultura Hip Hop, temos uma missão a cumprir: usar tudo que aprendemos no decorrer desse tempo em prol dos nossos jovens de hoje, para que não se percam igual muito de nós já nos perdemos e que nos encontramos nessa cultura tão rica e gratificante que é o Hip Hop.
Bocada Forte: Você aplica ou chegou trabalhar em algum momento com a lei 10639 (ensino de África e cultura afro)?
Netão: Cara, eu inseri na Oficina de RAP atividades sobre o tema da Escravidão no Brasil e suas consequências. Peguei algumas músicas e textos sobre o tema e debatemos durante as aulas. Fiz um gancho da África com a cultura Hip Hop e foi bem bacana. Chegamos até a construir uma música na Oficina com o nome ‘Brasil Africano’. Passei trechos de entrevistas sobre o assunto também. Mas, na prática mesmo, não sei bem lhe dizer se essas atividades se encaixam na Lei, por não conhecê-la em sua essência.
Bocada Forte : Maioridade penal, que medidas devemos ter perante menores que cometem delitos e de que forma esse jovem pode ser resgatado?
Netão: Quando me perguntam a opinião que tenho a respeito da redução da maioridade penal, costumo dizer que as pessoas olham apenas para o efeito, e não a causa do problema. Esse olhar sobre a redução está equivocadíssimo. Combater o efeito não irá solucionar o problema da criminalidade, ainda mais combatendo ele com prisões, o chamado ‘punitivismo’. A sociedade quer vingança! Acredita que desta forma o mundo irá melhorar. Ao mesmo tempo, essas pessoas não veem que os menores são muito mais vítimas da violência do que propriamente os autores dela. Basta ver os números. Os programas de Teve sensacionalistas, com Datena, Rezende e afins, pegam um ou dois casos mais comoventes e criam em cima disso um terror, um clima de que os menores são uns monstros! Generalizam como se todos cometessem homicídios e outros crimes hediondos. Mas não é isso que nos mostram os números. Cerca de 1,5% dos menores infratores cometeram homicídios. Ou seja, 98,5% ou estão envolvidos no tráfico de drogas (grande maioria) ou cometeram crimes contra o patrimônio, ou seja, crimes sem vítimas. Mas não é essa impressão que dá quando assistimos esses telejornais grotescos e imundos. Querem nos passar a impressão de que todos merecem ser punidos com a lei mais dura possível. Querem fazer do Brasil uma Indonésia, se puderem.
Pois bem, focando um pouco agora na minha experiência com menores infratores. Fiz 3 apresentações na Fundação Casa de Osasco. E o que vi lá? Jovens que estavam apreendidos por falta de oportunidade. Parece clichê dizer isso, mas é verdade. Inúmeros talentos que encontrei na Fundação, meninos com menos de 18 anos que não eram para estar lá, no entanto, na rua, não tiveram espaço e nem oportunidade para apresentar seus talentos a ninguém.
Será que se nas periferias tivessem centros culturais, espaços de cultura, lazer, esporte, bibliotecas, esses moleques estariam se envolvendo com o crime? Será que se a sociedade fosse menos racista, menos preconceituosa, essas crianças teriam outras alternativas em suas vidas?
Em uma dessas visitas encontrei um menor que é meu amigo. Me viu e veio me abraçar. Disse que ‘caiu numa errada’ e foi parar lá. Depois de uma rápida conversa, pois os monitores estavam de olho, ele disse que estava arrependido e que não voltaria mais para lá. Após um mês, esse menino saiu. Foi até a minha casa, onde tivemos uma longa conversa. Foi um momento muito importante, para mim e para ele. Ambos estávamos aprendendo visões diferentes sobre o mundo. No final, ele disse assim: “- Netão, quero te acompanhar nos rap, mano”. Eu disse, demorô! Vamos lá! Passaram duas semanas e ele havia sumido. Passaram 5 semanas e nada. Sumiu mesmo, ninguém mais havia visto esse menino pelo bairro em que morava. O tempo passou e depois de alguns meses retornei a mesma Fundação Casa. Mesma rotina, a molecada com a cabeça raspada, com os braços para trás sem poder olhar na cara de ninguém. Quando todos terminaram de se sentar, olhei para o lado direito e reencontrei esse meu amigo de cabeça baixa, não querendo olhar para mim, com vergonha. Fui até ele e perguntei o porque tinha voltado para aquele lugar. Eis a resposta que me deu: “- Ah, mano, cê tá ligado, né, parça, o mundão é loco, eu juro procê que saí umas 3 ou 4 vezes pra procurar um trampo, mas todo mundo batia a porta na minha cara. Me injuriei. Os moleque da minha vila ganhando um trocado no tráfico, saindo com as menininha, pagando de moto e os caraio, e eu aqui moscando?! Nem fodendo! Fui vender droga de novo pra ver se virava. E num virou nada. Caí de novo nessa porra. Fui mó burro, mano”. No final de sua fala, ele já estava chorando. Fiquei sem reação, sem ter o que falar àquele jovem. Única coisa que meio à mente foi… Quantos e quantos estão lá por este mesmo motivo? Quantos não queriam mesmo sair desta vida e viver de outra maneira? Será que se nas periferias tivessem centros culturais, espaços de cultura, lazer, esporte, bibliotecas, esses moleques estariam se envolvendo com o crime? Será que se a sociedade fosse menos racista, menos preconceituosa, essas crianças teriam outras alternativas em suas vidas? Sei lá… Só sei que fica fácil demais julgá-los quando o efeito causa medo. Agora, quem é que tem coragem de combater a causa? É isso que eu penso, mano.
Bocada Forte: Fale um pouco do seu grupo, das letras e dos trabalhos que realizados até o momento.
Netão: Meu grupo, Influência Positiva, existe há 9 anos. Desde 2006. Temos um CD físico nas ruas, lançado há 2 anos, chamado Metamorfose, onde reunimos as músicas gravadas de 2006 a 2013. Costumo dizer que é um ‘catadão’, pois filtramos as músicas que havíamos gravado durante este período e, após uma filtragem, decidimos quais entrariam no disco. O Influência é formado por 3 integrantes: eu (Netão), Ednaldo (Bigode) e Rodrigo (Rzika). Mas atualmente estou levando o nome do grupo sozinho, já que os companheiros estão em outros corres pessoais. Desde o início de 2014, estamos em estúdio produzindo o disco de nosso projeto de músicas sobre Direitos Humanos. O nome é Projeto B.A.S.E (Buscando Alternativa Saindo da Exclusão), que conterá 10 músicas temáticas, que abordam a escravidão no Brasil e suas consequências, o sistema prisional brasileiro, o genocídio da população negra e periférica, a Palestina, entre outras. Está faltando apenas uma música – que terá a participação da Yzalú – para fecharmos o CD, que também conta com a participação de Mohamed Antar, rapper da Palestina que veio à São Paulo gravar uma música com nós: Periferia, a Nossa Faixa de Gaza. Além deste projeto, estou em estúdio gravando músicas do meu primeiro solo e também trabalhando no novo disco do Influência Positiva, que sairá com o tema ‘A Missão Continua’.
*Entrevista por Nilton Francisco de Oliveira, DJ Neew, publicada originalmente no dia 8/12/2015 no portal Bocada Forte
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