Exclusivo | Nelson Triunfo: ‘Sempre fui underground, sem fazer concessões nem pagar jabá’
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Ele é considerado um dos pais da Cultura Hip-Hop brasileira e é reverenciado de forma quase unânime pelos principais representantes do gênero – de Thaide e GOG a Dexter e KL Jay, mas também de Milton Nascimento e Toninho Horta a Marcelo Yuka e Gilberto Gil. Em mais de 40 anos de trajetória artística, já dançou com Tim Maia, Tony Tornado, Sandra de Sá e muitos outros ícones da música negra tupiniquim e até foi condecorado por James Brown e aplaudido por Jimmy Bo Horne.
Participou de inúmeros programas televisivos ao longo de décadas, incluindo de programas infantis a reality shows, do sofá de Jô Soares ao palco de Faustão ou até Rodrigo Faro. Misturou hip-hop com samba na abertura da novela “Partido Alto” (1984), fez peças de teatro, tem participações no cinema nacional (filmes “A Marvada Carne”, de 1984, e “Uma onda no ar”, de 2002), ganhou os títulos de Cidadão Paulistano e de comendador da Ordem do Mérito Cultural – a maior condecoração cultural em âmbito nacional.
Aos 63 anos de idade (completados em outubro), o pernambucano Nelson Gonçalves Campos Filho, mais conhecido como Nelson Triunfo, continua com mais disposição do que muitos jovens. Consagrado por sua dança e pioneirismo no hip-hop, inclusive no uso da cultura de rua como instrumento social e de educação alternativa, agora ele dá mais ênfase à sua porção de músico e compositor.
Para falar sobre passado, presente e futuro, Nelson Triunfo conversou com o Bocada Forte na entrevista exclusiva que você confere abaixo.
Bocada Forte: Nelsão, você se notabilizou por sua dança, inclusive como um dos pioneiros na divulgação do breaking, mesmo ser ser um b.boy na real concepção da palavra. Mas agora você investe mais na carreira musical. O que esse novo momento representa para você?
Nelson Triunfo: Acredito que esse seja um divisor de águas em minha carreira. Até então eu era mais conhecido pela dança e vinha num compromisso muito forte com o trabalho social, por meio de oficinas, palestras e outros projetos mais “didáticos”, e também pelos mais de 15 anos em que me dediquei à Casa de Hip-Hop de Diadema, da qual fui um dos fundadores, e que se tornou referência internacional. Não vou abandonar a dança nem os trabalhos sociais, mas já estou com 60 anos e já não posso dançar com o mesmo pique de antes. Então sinto que estou mais livre para mostrar essa outra face que pouca gente conhece, de músico, compositor… algo que sempre esteve na minha veia – desde a adolescência, toco violão, sanfona e percussão e tenho centenas de composições que agora estou tirando da gaveta. De agora em diante quero continuar viajando pelo Brasil, mas com este meu novo CD, ao lado da maravilhosa banda Sertão Black. Esse Nelsão músico esteve em banho-maria por décadas, esperando o momento certo de chegar ao grande público, e sinto que esse momento é agora. Aliás, estou chegando com minha trilogia, que é formada pelo meu disco, mas também pela minha biografia (“Nelson Triunfo: Do Sertão ao Hip-Hop”) e pelo meu filme (o documentário “Triunfo”), que tem várias entrevistas com personalidades da cultura negra brasileira e até cenas filmadas em Berlim e Nova York.
Bocada Forte: Mas você já tinha apresentado alguns trabalhos musicais que passaram meio despercebidos…
Nelson Triunfo: Sim… Em 1977, gravei com Miguel de Deus no álbum “Black Soul Brothers”, que na época foi pouco compreendido e hoje é tido como algo cult e vale centenas de dólares na mão de colecionadores. Também já fiz participações com diversos artistas, inclusive Thaide & DJ Hum (“Desafio no rap embolada, do álbum “Assim Caminha a Humanidade”, que também traz a participação do músico Chico César). E em 1990 cheguei a lançar pela TNT Records o LP “Se Liga Meu”, ao lado de meu grupo Funk & Cia, mas infelizmente esse disco foi pouco trabalhado e pouca gente entendeu na época… e não deixa de ser um trabalho memorável. Mas agora sinto que estou 100% livre para mostrar quem é o músico Nelson Triunfo.
Bocada Forte: Nessa sua trajetória artística de várias décadas, que vai “do soul ao hip-hop”, como diz o próprio nome do seu CD, você se arrepende de algo ou faria algo de forma diferente?
Nelson Triunfo: Não sei se arrependimento é a palavra. Não me arrependo de nada, mas hoje percebo que ao longo da minha carreira eu me doei demais para os outros e acabei me esquecendo de mim mesmo em alguns momentos. Talvez hoje, mais maduro, eu pensaria um pouco mais em mim, mas sem egoísmo. Humildade demais acaba sendo covardia, acaba prejudicando o humilde. Só que me orgulho de ter trabalhado bastante o lado social, sem o caráter de assistencialismo, mas de querer promover a mudança dos cidadãos, a conscientização. Eu me joguei nessa luta com unhas e dentes e vou continuar esse trabalho, não tem como separar o Nelsão dessa responsabilidade que é transmitir um legado para outras pessoas e gerações. Mas reconheço que eu poderia ter cuidado mais de mim em vez de pensar primeiro nos outros. Tive que apanhar pra aprender…
Bocada Forte: Você conquistou um status e reconhecimento de ídolo, mestre, ícone… De onde você ainda encontra motivação para prosseguir fazendo o que faz? Que missão você ainda acha que tem a cumprir? O que ainda o motiva a continuar?
Nelson Triunfo: Man… Sempre fui underground, sem fazer concessões nem pagar jabá. Eu amo a cultura, eu vivo ela 24 horas por dia e não sei se conseguiria viver sem isso. Eu me comparo a um jogador de futebol que, depois que se aposenta, fica no vazio… Não sei me separar da música, da dança, do contato olho-no-olho com outras pessoas que também amam e vivem a arte. Acho que eu me sentiria como um peixe fora d’água se não pudesse mais fazer o que faço. Amo dançar, cantar, fazer shows, e principalmente conhecer pessoas novas, lugares diferentes, chegar em um lugar novo e ser reconhecido pelo que fiz e faço, independente de cachê. Ver o brilho no olho dos moleques e saber que ajudei a transformar a vida de muita gente, e que ainda posso continuar fazendo isso, é um baita combustível. Isso não tem preço, tem algo muito mais importante chamado valor.
Bocada Forte: E como você vê o tímido reconhecimento da atual geração “do hip-hop” não só a você, mas a outros pioneiros da cultura? O que espera dessa geração?
Nelson Triunfo: Cara… no meu caso, espero que despertem atenção para essa minha trilogia (disco, livro e filme). Não é metendo marra, mas sei da minha importância, assim como outras pessoas que contribuíram pro início de tudo. Espero que as pessoas possam curtir, entender, se divertir e nos ter como referências. Também peço aos brothers do hip-hop que ajudem a fortalecer essa corrente, porque é fácil dar repercussão para coisas banais e negativas, mas parece que poucos se interessam em propagar o que é bom, positivo, construtivo. Muita gente me chama de mestre, me elogia em entrevistas e me dá tapinhas nas costas. Mas só tapinha nas costas não me alimenta e não alimenta a cultura. Qualquer lixo e rebolação faz sucesso, parece que quase ninguém se importa mais com o que realmente é importante: a mensagem, a consciência, o legado. Espero que, conhecendo a minha história e a história de outros guerreiros, vejam que nada foi fácil, e que toda essa luta de décadas sirva de exemplo pras novas gerações… Vejam que enfrentei vários obstáculos, vários preconceitos… Apanhei e até fui preso, no fim da ditadura militar, pelo simples fato de ter um cabelo black e querer dançar na rua, que é um espaço público, e insisti tanto com essa cultura que acabei ganhando o título de Cidadão Paulistano e a comenda da Ordem do Mérito Cultural, e isso não é pra qualquer um. Hoje há muito mais espaço pras nossas manifestações, mas parece que poucos valorizam toda a luta que foi conquistar esse respeito.
Bocada Forte: E por que você acha que poucos valorizam? O que acontece com essa tal nova geração? É uma geração perdida?
Nelson Triunfo: Perdida não, porque sempre há salvação. Mas acredito que essa geração nascida e criada com computadores pensa que tudo é fácil, que tudo se resolve com um clique no mouse. Valorizam muito coisas superficiais como uma curtida ou uma compartilhada na internet, e se esquecem do olho no olho, do pé no chão, do pé na rua. Mas também vejo que a atual geração é vítima do ensino de má qualidade, faltou um trabalho de base. Por isso mesmo valorizo muito o trabalho social. E também acho que há culpa nos ícones do momento, naqueles que estão em evidência no momento e não fazem questão de dar exemplo, de incentivar o conhecimento, a leitura, a valorização da essência, das raízes… Os “mestres” do momento poderiam dar mais valor a isso tudo, mas não o fazem na hora da ação. Precisam ir além do discurso.
Bocada Forte: Será por isso que o “funk ostentação” tem tanto ibope junto aos jovens de periferia? A seu ver, o que está acontecendo?
Nelson Triunfo: Volto a dizer, é uma geração superficial, criada por computadores. E também tem a TV vendendo merda adoidado e todo mundo abraçando. Isso criou um adversário no meio dos nossos iguais. É fácil conseguir voto pro Tiririca, é fácil ensinar besteiras e palavrões pra molecada, porque quando se trata de besteira todo mundo curte, comenta, acha engraçado… e os mais novos acabam achando que isso é o certo, que isso é exemplo. A fuleiragem, a ostentação e a pornografia dão mais audiência que a ideia certa, a mensagem consciente. Isso é uma armadilha criada pela própria periferia e quem sofre as consequências é a própria periferia.
Bocada Forte: Nelsão… Pra finalizar, fale um pouco sobre este álbum, “Do Soul ao Hip-Hop”, cujo repertório as pessoas poderão conferir neste seu novo show com a banda Sertão Black. O que podemos esperar desse disco e desse show?
Nelson Triunfo: O CD vai sair em duas versões. No momento temos uma versão acústica com sete faixas, gravadas com a maravilhosa banda Nhocuné Soul. Mas a versão final do meu álbum vai ter 13 faixas, sendo que essas outras seis são mais eletrônicas, mais hip-hop mesmo. Quem ouvir o CD ou acompanhar o show pode esperar uma música verdadeira e positiva, feita de coração, e sem rótulos – que tem influências que vão de Luiz Gonzaga a James Brown. É música de mensagem, sem baixaria nem fuleiragem.
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