Entrevista | ‘Os revolucionários deixaram a militância e o ativismo para sobreviver’, Rinea BV
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O Rap BR, desde a sua primeira geração, vem colecionando grandes artistas que acabam ficando esquecidos, com pouca visibilidade. Alguns – a maioria – acabam até desistindo de continuar uma carreira. Se era difícil nos 80 e 90, hoje está ainda pior. Boa parte do público é manipulado por impulsionamentos, conteúdos patrocinados e ainda acredita que está por dentro de tudo que está acontecendo.
Enquanto isso – por trás da concentração de views, seguidores e compartilhamentos -, talentos autênticos, legítimos, que pelos mais variados motivos não utilizam essas ferramentas, pelo menos não da mesma forma que as grandes estrelas, acabam sendo deixados de lado.
Desde que comecei a escrever sobre Rap, nunca me deixei levar pelo que o mercado tenta nos empurrar. Com isso, através do Bocada Forte, consegui escrever sobre uma infinidade de artistas em início de carreira, nacionais e internacionais. Esta foi a minha forma de contribuir com legítimos talentos das quebradas. As vezes assistia um show, via um grupo novo, achava bom e já fazia contato ali mesmo. Pegava uma demo e em alguns dias o conteúdo falando sobre o grupo estava publicado no BF. Nos primeiros anos de 2000 fiz uma entrevista – publicada no BF em março de 2005 – com um desses artistas de talento diferenciado, Rinea BV. Já o conhecia do trabalho com o Ponto Crucial e algum tempo depois com o Racionais, na época do disco ‘Sobrevivendo no Inferno’.
Não o conhecia pessoalmente, mas sabia da trajetória. O encontrei na zona sul de São Paulo. Nesta época ele havia finalizado um projeto com Branco P9. Um CD de Rap com r&b, que é a especialidade dele. Com o Ponto Crucial, grupo que ainda tinha na formação DJ Gigio e Janaína, este era o foco: Rap, r&b, música pra pista. O Ponto teve contrato com a Sony e lançaram apenas um álbum, com o título ‘Ponto Crucial’ (1994). “Distração” era a música de trabalho. Foi um sucesso. O vídeo contou com a participação da atriz Camila Pitanga ainda em início de carreira.Seu álbum com o Branco foi intitulado ‘Hora do Show’. Não chegou a ser lançado na época e só este ano foram disponibilizadas 10 faixas nas plataformas digitais. O CDR que peguei com ele em 2005 tem 12 faixas e algumas delas continuam inéditas, pois boa parte não está entre essas 10 lançadas agora.
Fiquei com esse CD todo esse tempo, copiei as músicas para o celular e sem mentira nenhuma, escuto pelo menos uma música todos os dias. Algumas produções não estão iguais, acho as do CDR melhores do que as que foram disponibilizadas. É um disco com músicas que podem ser tocadas em qualquer lugar. É Rap de raiz, representado nas rimas do Branco, que é um dos melhores rimadores do país, com a leveza do vocal do Rinea.
Rinaldo é cria da Bela Vista, por isso o BV em seu nome artístico. Já falei aqui no BF sobre a Bela Vista e o bairro do Bixiga, pois o Região Abissal, uma das principais influências de Rinea, também surgiu ali. O Bixiga é a periferia no centro e é o local de um Quilombo Urbano, a Escola de Samba Vai-Vai, uma paixão do mano da BV e outra grande influência na sua carreira musical. Fiz uma nova entrevista com Rinea. Ele falou novamente sobre esse antigo/novo projeto, as suas influências, a volta do Ponto Crucial, a cena atual do Rap, política e muito mais. Confira!
Bocada Forte (BF): O seu disco com o Branco, chegou a ser lançado na época?
Rinea: Não! Em 2004 eu me converti ao cristianismo e abandonei o projeto, só retomando 15 anos depois.
BF: Eu tenho um CDR que peguei com você na época, tem mais faixas do que as que foram colocadas nas plataformas, nem sei dizer quais, pois não tem o título das músicas, mas são umas 12 músicas. O que aconteceu com as faixas que não foram lançadas? Ou elas já foram lançadas em outros projetos?
Rinea: Estas faixas, que não foram lançadas, estão com o Branco P9, em outra oportunidade serão lançadas.
BF: Esse seu disco com o Branco, eu particularmente escuto pelo menos uma das músicas todos os dias, sem mentira e sem ser puxa-saco. Pra mim é um disco de Rap, com muito R&B, pra pensar, pra dançar, pra refletir e que pode ser tocado em qualquer lugar, pra qualquer público. Você fizeram com essa intenção, você pensa a música com esse objetivo?
Rinea: Boa pergunta. Eu vou confessar pra você uma coisa, eu sou muito pop (risos)!! Fui radicalmente influenciado pelos refrões pegajosos da Black Music dos anos 70, 80, de Michael Jackson à Secos e Molhados, passando por Martinho da Vila, Vando, Benito de Paula e o mestre dos mestres, Nate Dogg (in memorian), entre outros! Foi um projeto meio desencanado, eu e o Branco queríamos mais liberdade, queríamos testar nossa capacidade criativa R&B e G-Funk, e fizemos algo audacioso pra época, mas as intempéries da vida nos levaram a tomar algumas decisões boas e algumas nem tão boas assim.
BF: Você já teve a oportunidade de ter um trabalho junto a uma grande gravadora e também já trabalhou com o Racionais, coisas grandes. Com a sua experiência, tem algo que você acha mais difícil hoje do que naquela época ou algo que seja mais fácil hoje do que naquela época?
Rinea: Sem dúvidas, Racionais foi uma experiência incrível! Tinha vindo de um rompimento com a multinacional Sony Music, fomos levados por Arnaldo Sacomanni, que também foi um tremendo aprendizado! As dificuldades de hoje estão relacionadas ao imediatismo e na busca incessante por views e likes, sabemos que quem não consegue um bom desempenho nas redes sociais e mídias digitais dificilmente conseguirá se manter no mainstream. Antigamente era mais difícil, ao mesmo tempo existia algo mágico e desafiador, ter que derrubar algumas barreiras, ir e comprar discos instrumentais na galeria 24 de maio, chegamos a fazer loops em fitas cassetes em um gravador de rolo. Hoje os moleques tem a internet, facilidades pra se comprar um sequencer MPC da AKAY e montar um home studio, mas creio que o progresso veio e muitos rappers não conseguiram acompanhar a velocidade das ideias, dos flows, dos samples, dos timbres e principalmente da emancipação artística. Os tempos são outros, as pessoas estão em constante estado de mudança, tanto comportamental, como no modo de ver o mundo.
BF: Quando o Ponto Crucial estava em evidência, o R&B estava em alta, era um momento propício para vocês. Como você vê hoje o espaço para o tipo de música que você faz?
Rinea: Vejo com um pouco de receio e temor!! Não podemos jamais perder a essência, acho que estamos em um caminho sem volta, mas existe muita gente boa resistindo e fazendo acontecer, mas ainda é pouco. Precisamos passar por uma reciclagem, repaginar, transformar para subsistir, e mesmo assim a concorrência, que chega a ser quase que predatória, te joga no mar do ostracismo. Competir com um jovem trapper, que tem 1 milhão de seguidores e os vídeos destes artistas novos em 1 semana alcançam quase meio milhão de views e likes, difícil não? E a cada dia aparece um novo trapper, que compete com outro trapper, não há quem tenha fôlego e dinheiro pra chegar perto de números surreais , pois o que contabiliza hoje em dia são números.
Com a extinção de alguns bailes blacks, perdemos muito eventos e shows, perdemos músicos talentosos e com isto o R&B sofreu uma pequena mutação para ser aceito e inserido no mercado de mídias digitais, e ao gosto dos novos consumidores. A mesma mutação que sofreu o pagode e o sertanejo para sobreviver neste mercado altamente competitivo.
https://www.youtube.com/watch?v=8UUvWBylFSQ
BF: Quais são seus projetos atuais, fale sobre esse retorno do Ponto Crucial?
Rinea: Após 15 anos, estamos disponibilizando as músicas feitas em 2003/2004, mixadas e masterizadas em 2005 e produzidas por Dheco Wanluh, (que era do grupo Jigaboo, junto com PMC e Suave). Estou compondo algumas músicas inéditas para lançar um EP solo no ano que vem. Estamos lançando ainda em 2019 um EP do Ponto Crucial com 7 faixas e no finalzinho do ano lançaremos um álbum completo do Ponto Crucial, com músicas comerciais e uma regravação da música “Vídeo clipe”, com novos arranjos e nova roupagem!!
BF: O que você vê como pontos positivos e negativos, em relação ao momento atual do país, que estão influenciando a música e o comportamento dos artistas?
Rinea: Não quero ser pessimista no tocante a este ponto, infelizmente tudo está relacionado a cultura e a forma que o brasileiro foi ensinado. A cultura de um povo diz muito sobre seu comportamento e atitudes. Artisticamente falando, estamos muito aquém do que éramos a 30 anos atrás, um clamor distorcido está saindo das ruas, somos reféns das nossas miseráveis escolhas, politicas, pessoais, quer seja no âmbito artístico, quer seja no âmbito do entretenimento, os revolucionários (não digo todos, mas a sua grande parcela) deixaram a militância e o ativismo para sobreviver, e ninguém consegue mudar nem os móveis da sua casa de lugar sozinho, sem a ajuda de terceiros, quanto mais influenciar os jovens desta nova geração!
É necessário repensar algumas decisões e dialogar, trazer o povo a uma profunda reflexão, e entender que decisões nos momentos de desespero sempre causam impactos negativos. Entendo, por uma lado, que a polarização e o discurso do ódio trouxeram incertezas e inseguranças, quem chegou aonde está não quer mais sair, né? Mas mantenho a fé e a esperança de que conseguiremos a estabilidade emocional e esta má fase irá passar.
BF: Você tem o BV no nome e com certeza uma relação com o samba. O quanto a Bela Vista influenciou em sua formação musical?
Rinea: Influência total! O samba me trouxe o entendimento de tempo, compasso, batida e bpm. Desde sempre frequentei a quadra da Vai-Vai, pois sou nascido e criado no Bixiga, mas tem dois momentos especiais que mudaram minha vida para sempre. O primeiro foi quando ouvi na rádio o samba enredo de 1977, da minha escola, e decidi ali que iria ser ritmista. Outro momento foi em 1987, quando ouvi um grupo chamado Região Abissal, que eram meus amigos de infância, e se não me engano o primeiro grupo de Rap a tocar com banda.
BF: O Racionais está fazendo 30 anos, o que você pode dizer sobre o grupo em si, a importância, influência pra você e pra música em geral?
Rinea: Engajamento, me ensinaram que se você tem o dom de atuar, escrever, compor, cantar e coisa e tal, você deve concentrar a sua energia naquilo que você se considera bom!! A métrica da escrita e da poesia do Racionais me levaram a entender que o rap é muito mais que levadas e flows.
BF: Na sua última entrevista pro BF, em 2005, você falou sobre ser resgatado, que estava perdido no litoral paulista e agradeceu alguns nomes – Dexter, Dico, Branco, Alvos da Lei e Sistema Negro. DJ Dico fez algumas produções pra você, com o Branco foi feita a parceria pra um disco e com os outros nomes, foi feita alguma parceria ou tem planos?
Rinea: Me lembro de ter recebido um recado do Dexter me convidando pra fazer um som com ele, nesta época ele estava preso na Praia Grande e gravamos lá no presidio a música “Seja Mais Você”, do álbum ‘Preso Sim, Exilado não!’, e foi uma experiência fora do comum! Após o trabalho com o Branco P9, a nossa parceria se estendeu em vários trabalhos e atualmente estamos na banca Click Clack Cartel e o grupo Poesia de Asfalto, dos meus manos Deley, Karrank, Jhou Verdim, Kleitão, Jibola, Xingu e Kauê. Com o DJ Dico fizemos o álbum de estreia da cantora Drykka Rizzo, fiz alguns sons com o nosso querido amigo Nego Abraão (in memorian), mas algumas participações com alguns rappers e foi só.
BF: Deixa seu salve, os contatos, onde as pessoas podem saber mais e fazer contato com você?
Rinea: Quero agradecer a todos e a todas que curtem meu trabalho e que me acompanham nestes 31 anos de Rap Nacional, aos meus mentores e meus parceiros que sempre estiveram comigo nesta caminhada. Pra aqueles que desejam conhecer mais do meu trabalho:
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E-mail: rinaldo.emilio@gmail.com
[+] Leia a entrevista feita com Rinea em 2005
Ouça o álbum ‘Hora do Show’
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