Entrevista | Com a palavra: Dexter
ESPALHA --->
As penitenciárias sempre foram consideradas depósitos de gente. Apesar do discurso de recuperação do preso, a punição e o afastamento sempre foi prioridade do Estado e aceito sem questionamento por grande parte da sociedade. Sendo assim, tudo que ocorre do lado de dentro das muralhas tem que ser ocultado.
Quanto menos se sabe da vida do presidiário, mais fácil será sua dominação. O cotidiano carcerário, nas relações entre detentos e funcionários que não têm noção do que é cidadania, acaba por causar abusos e crimes num espaço longe das câmeras de TV. Somente rebeliões e massacres chegam aos ouvidos de grande parte da sociedade.
O sofrimento da família, as estratégias de sobrevivência dos presos em meio a formação de facções e a corrupção policial, para que esse sistema apodrecido funcione, precisam ser omitidos. O Rap nacional deu voz ao preso e, através do trabalho de artistas como Dexter, muitos jovens passaram a conhecer o que por muito tempo ficou escondido. Outro estilo musical poderia fazer algo semelhante? Creio que sim, mas não com a mesma intensidade.
No dia 4 de janeiro de 2009, num domingo ensolarado, Dexter, em período de indulto (“saidinha”), concedeu entrevista ao Bocada Forte durante almoço com amigos e a família, no bairro da Casa Verde.
Trajetória e música
“Até agora eu me sinto um vencedor, mas eu tenho mais planos. Me considero um cara batalhador, perseverante, sou lutador, um guerreiro. Gravei 3 CDs, me mantive vivo na prisão, parei de usar droga lá dentro, graças a Deus. Conheci minha esposa, essa mulher maravilhosa que me acompanha há quase 7 anos. Se for olhar as coisas dessa forma, sou um cara vitorioso, mas eu entendo que tenho muita coisa pra conquistar. É bom saber que mesmo de lá de dentro da prisão, a gente conquistou o respeito da rapaziada com as músicas e tal. Minha música é isso mesmo, falar de sofrimento e da realidade, não consigo fazer ficção. Preciso falar a realidade mesmo, acho que é assim que a gente convence.”
A música tem que estar no sangue mesmo irmão. Lá dentro eu não posso ouvir som, com exceção de uma cadeia que eu passei, ali eu tive condição de ouvir música
O apoio das pessoas do lado de fora
“Todo ser humano precisa dessas paradas, todas as pessoas precisam de apoio. Na questão jurídica eu tive que correr pra conquistar, nada vem de graça. No longo do percurso apareceram algumas pessoas querendo ajudar, mas acabou ficando só na intenção. Algumas me ajudaram em várias coisas, outras receberam pra me auxiliar, mas aí, eu já não posso considerar ajuda, foi um serviço prestado. O apoio afetivo e psicológico veio da minha família, do Claudinho, do Mano Brown. O apoio também veio dos irmãos que sempre mandam um salve pra mim, isso tem relevância, um salve já ajuda muito.”
Composição artística atrás das grades
“A música tem que estar no sangue mesmo irmão. Lá dentro eu não posso ouvir som, com exceção de uma cadeia que eu passei, ali eu tive condição de ouvir música. Foi justamente a cadeia que eu fiz o disco ‘Exilado Sim. Preso Não’. Meu Rap é assim: eu vou escrevendo, vou fazendo minhas levadas. Na hora de produzir eu ouço a base e tento encaixar minha letra no som. Não sou um cara que fica vendo a temática dos outros rappers. Eu não sei fazer Rap assim, simplesmente escrevo, ouço a base. Tem horas que escrevo já imaginando certo instrumental. Quando chega a hora de gravar, já era, vou e coloco a voz. Não sou um cara de fazer laboratório, sabe? Mesmo porque, eu não tenho esse espaço. Onde eu me encontro, não tenho esse espaço pra fazer pesquisa, nem a 105 FM eu escuto. Dependendo de onde eu fico, não pega a 105. Sou mais coração mesmo, vou que vou. É a vontade, é o sangue mesmo.”
Ouça o disco ‘Exilado Sim. Preso Não’
https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_nM_N2kw5nNa14u1BINMi4oyPvK7NGX09I
Todo cara que ser herói na quebrada, mas quando você escuta o verdadeiro Rap, você pensa: ser herói desse jeito não é pra mim não
Sobre os rappers que preferem retratar apenas o lado violento da periferia
“Talvez isso aconteça porque eles não estiveram presos, porém, mesmo quando eu estava fora dos presídios, eu já fazia música falando de esperança e fé. Eu acho que o Rap é uma música que veio pra mudar. O Rap mudou a minha vida, realmente salvou a minha vida. Todo jovem que foi e é envolvido com o Rap, estou falando de Brown, GOG, Bill, estou falando de quem faz Rap agora. Falo de quem teve sua vida mudada pelo Rap. Se não fosse o Rap, o que muitos deles seriam? O que o Dexter seria se não fosse o Rap?
Se eu tenho isso como exemplo, eu preciso falar disso mesmo. Qual o intuito da minha música? Pra mim, é salvar as pessoas também… Ou da droga, ou da rua, não sei. A ideia é ajudar positivamente. Eu vejo rappers com músicas que infelizmente não contribuem positivamente com a juventude carente, sem educação e cultura. A música fala na alma. Se o cara tem uma tendência a trilhar um caminho mais fácil que é imposto pra ele. Uma música com conteúdo negativo pode influenciar a decisão do cara… Entendeu?
Todo cara que ser herói na quebrada, mas quando você escuta o verdadeiro Rap, você pensa: ser herói desse jeito não é pra mim não. Minhas letras mostram que sou um cara comum, apenas um ser humano. É bom ver que sou importante pras pessoas por isso. Minha música sempre vai falar disso, meu som é esperança, é fé.”
O funk pra mim é um atrativo, entretenimento. Não menosprezo, cada um faz a sua cara, só que eu prefiro continuar com a minha cultura
O Rap e o pancadão nas quebradas
“Tudo que é atrativo, é mais fácil de corromper. O Rap não é só um atrativo, o Rap é uma cultura. Perdemos um pouco do espaço que tínhamos com a juventude, pois o Rap trata de uma realidade dura. Ao passar do tempo, as pessoas já não querem mais ouvir falar dessa realidade, mas é necessário falar. O Rap não morreu, a cultura não está morta, isso é importante. É o seguinte, a peneira sempre vai existir, os ouvintes serão mais seletivos. É óbvio, com o passar do tempo, certos discursos cansam. Eu acho que se a gente perdeu alguma coisa, foi mínima, pois a cultura está viva. O Rap fala lá no nordeste, também lá no sul, de maneira forte. A gente não está ligado. Muita gente mede as coisas por São Paulo, aqui podemos estar passando por uma crise, mas acho que temos que analisar como um todo, olhar o Rap no Brasil.
O funk pra mim é um atrativo, entretenimento. Não menosprezo, cada um faz a sua cara, só que eu prefiro continuar com a minha cultura. A moda passa, o que é raiz não passa. Você pode alisar seu cabelo, você pode sair da favela, mas você nunca vai deixar de ser preto. Você não pode se enganar. O Rap continua forte, é claro que muita coisa mudou, são 20 anos de Hip-Hop. Talvez a gente tenha perdido o tempo das coisas, mas vai melhorar. O Rap não está morto.”
Chegou a hora de tomar o que a gente tem condições através do nosso trabalho, sem perder o foco. O Rap é uma indústria que bota comida na minha casa e na de muitos. Está na hora da gente buscar o que é nosso
Profissionalização e dinheiro
“Temos que profissionalizar o Rap! Colocar a rapaziada pra fazer show. Fazer letras inteligentes. Quem sobreviveu até hoje, vai continuar na cena e vai lucrar. Pra você sobreviver nessa batalha tem que ser forte, mas são poucos. Tem uma rapaziada vindo com outra pegada. Esses não vão passar mesmo, sem levar as coisas a sério e sem trabalhar duro, só farão música, mas não vão sobreviver. Eu estava falando com o Brown, nós estamos até preocupados. Porém, nós vamos continuar fazendo Rap, temos que continuar firme e forte. Temos que organizar shows nervosos, pela cultura, pelo movimento e por dinheiro também. Ninguém vive de amor, está na hora de meter o dinheiro no bolso. Como eu vou pagar meu aluguel? Como eu terei minha casa própria? O país é capitalista! Os gringos estão em outro patamar por que? Porque os caras foram pra cima mesmo, conquistaram espaço e dinheiro. Run DMC fez contrato com a Adidas, uma empresa alemã, numa época em que o Rap estava apenas começando aqui no Brasil. A Nike está procurando algumas coisas, eles querem negociar. Por que não se aliar?
Tem algumas questões dentro da empresa Nike que são complicadas. A gente tem que analisar esses pontos. As pessoas questionam uma transação do Rap com a Nike no Brasil, afirmam que ideologicamente não seria possível. Dizem que os caras utilizam trabalho sub-humano e infantil em países asiáticos onde a constituição é falha e permite este tipo de coisa. Então vamos discutir isso, vamos arrumar nossa casa primeiro. Como eu posso querer arrumar a casa dos outros se a minha casa é uma bagunça. É o seguinte, o negócio que a gente vai fazer com a Nike não é pra gente ficar rico, é pra empregar o que agente está ganhando dentro da cultura e reverter ações para a favela, para a periferia. Vou adiantando, eu estou dentro desse projeto, não tenho um trabalho ainda, mas já estou nessa negociação com a Nike. Chegou a hora de a gente dar o bum no nosso Rap. Precisamos reformular as ideias. Os irmãos do Rap e da favela sempre usaram tênis da Nike, na periferia os jovens matavam para ter um Nike no pé. Nunca recebemos um centavo dessa empresa. Chegou a hora de tomar o que a gente tem condições através do nosso trabalho, sem perder o foco. O Rap é uma indústria que bota comida na minha casa e na de muitos. Está na hora da gente buscar o que é nosso. Negociar é uma fita, se vender é outra. Dentro dessa negociação podemos colocar nossa concepção, uma contrapartida social pode entrar numa cláusula de contrato. Não podemos perder esse foco, tipo: ´Vocês querem o Dexter… É o seguinte façam centros tecnológicos em tal comunidade.´”
Ouça o disco ‘Flor de Lótus’
Futebol e Rap
“A ligação entre Rap e futebol deveria se muito maior. Muita gente do esporte gringo vai em show de Rap. A ligação tem que ser maior que as palavras aqui no Brasil. A gente deveria ter uma integração legal entre futebol e Rap. Fico aqui pensando, falta consciência pros caras do futebol, temos que procurar e se relacionar com jogadores que são “pé no chão”. O Ronaldinho conversa com o Jackson, o Denílson é meu amigo, O Brown fala com a rapaziada do Santos. Temos que viver mais juntos. O Rap é pesado, poucos querem ter uma ligação com o Rap, muitos querem tapar o sol com a peneira e fazem o que o novo mundo da elite exige. Mas os jogadores são jovens, se dedicam totalmente ao futebol, param de estudar. É difícil desenvolver uma consciência desse jeito. Temos que nos conhecer, trocar ideias. As ideias mudam, é a revolução através das palavras.”
Você tem que saber quem é, tem que saber como agir. Vivo entre o certo e o errado, fui prejudicado em alguns momentos, ajudado em outros, tenho que ter jogo de cintura
Convivência no presídio
“Em qualquer repartição você vai contar com algumas pessoas, algumas tem inveja de você. Posso contar com pessoas firmeza que convive comigo. É claro que se você fizer um Rap, ser um escritor, as pessoas passam a admirar você. No caso dos agentes penitenciários, é importante ter educação, respeitar e tratar bem as pessoas. O agente não está lá porque quer, quem sabe ele não teve condições de estudar para ser outro profissional. Ele faz a cara dele eu faço a minha. Teve Agente que já falou que eu mereço estar na rua, que sou um cara educado e que não dou trabalho pra eles lá dentro. Você tem que saber quem é, tem que saber como agir. Vivo entre o certo e o errado, fui prejudicado em alguns momentos, ajudado em outros, tenho que ter jogo de cintura. Dois dos meus três projetos foram gravados dentro da prisão.”
Jovens das classes média e alta correndo pelo Rap
“É natural, a música é boa. A música da juventude é o Rap. Muito cara da classe média e da classe rica se identifica com o Rap. Se os caras pudessem falar com a gente, eles colavam. Eles admiram o nosso som. Eles vão curtir e fazer o Rap também. Vão andar como a gente anda, se vestir como a gente se veste. Nossa vida é muito mais loca que a deles, o dinheiro na nossa vida falta, mas nós não vivemos enclausurados com medo.
Cada um faz o Rap que acha que deve fazer, mas tem que fazer bem feito. O Rap é a música da liberdade. Se a idéia deles vai me convencer ou não, isso eu que vou decidir. O Rap pode falar de qualquer coisa. Quem sou eu pra censurar? Só que tem que ter atitude. Tem gente que acredita que Rap é mudança, outros dizem que Rap é atrativo e entretenimento. Eu acredito que Rap é mudança, então farei meu Rap dessa forma.”
Planos futuros e andamento do processo
“Estou com nove músicas prontas para o meu próximo CD, estou preparando um livro. Quero fazer shows. Muito se ouviu falar do Dexter, mas pouco se viu. Também tenho um trabalho voltado ao presídio, não posso esquecer disso. Meu processo está sendo agilizado, estamos finalizando, graças a Deus ganhei uma carga na cadeia, dei uma saidinha agora e, se até março eu não sair em regime aberto, pelo menos terei mais uma saidinha. Tem um lance mais complicado, temos que entrar com um pedido para baixar mais o tempo de cadeia, mas estamos indo bem, estamos conseguindo montar esse quebra-cabeça.”
Assista ao vídeo da música“Oitavo Anjo” ao vivo
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