Crônica Mendes
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Entre uma pausa e outra na divulgação do disco “Até Onde o Coração Pode Chegar”, seu trabalho solo, CRÔNICA MENDES conversou com o Bocada Forte. O rapper falou sobre seu CD, homofobia e religião, entre outros assuntos.
Bocada Forte: É difícil se posicionar num tempo em que os mais novos no rap estão deslumbrados com as recentes tendências e discursos do rap dos EUA, e os mais velhos perdidos entre um novo público e um novo jeito de se fazer rap?
Crônica Mendes: Cara, eu procuro me atualizar o tempo todo em tudo aquilo que eu faço. Desde meu rap, a minha poesia, a minha vida. Não uso o mesmo tênis que usava há 15 anos, nem falo as mesmas gírias, mas sempre tem algo que fica e é aperfeiçoado e mantém aquela vibe saudosista, mas em essência eu busco sempre manter as raízes bem profundas nas origens, os galhos podem ser mais versáteis, mas a raiz tem que ser firme. Existe sim um jeito novo de se fazer rap, novos samplers, programas de produção, novos temas também, levadas, timbres e por aí vai, mas isso não significa que é melhor ou pior do que fazíamos antigamente, pois antigamente e hoje também tem muita coisa ruim sendo feita e muita coisa boa. O poder de ouvir ou de mudar de estação sempre pertencerá ao público, este sim é quem decide o que vai crescer na audiência popular.
Bocada Forte: Em relação aos instrumentais, você se sentiu pressionado a diversificar ou apenas deixou vazar estilos, referências e beats que estavam ‘represados’? Fale um pouco sobre a produção do disco.
Crônica Mendes: O disco levou cerca de dois anos para chegar no resultado que foi pras ruas. Sou um cara bombardeado pela música mundial, das nossas, eu amo a música brega, a jovem guarda, o rock do anos 80 e tal. Quando fui construir meu disco eu apenas selecionei os temas que queria falar e os samples foram encontrados juntos com as letras, pois eu não componho e depois coloco a voz em cima de qualquer base apresentada num estúdio. Ou eu escrevo em cima de um sample, ou escrevo já sabendo a melodia que vou querer, e a batida também. Claro que quando chego no estúdio também sofro influência do produtor, pois não faço nada sozinho, confio em quem trabalho. O disco leva a assinatura do maestro DJ Raffa, quem conhece sabe o talento e personalidade deste monstro da nossa música. Quando decidi fazer o disco com ele, estava com uma ideia pro disco e ele agigantou tudo o que eu pensava. Na minha opinião, ele transformou um disco nota 10 em nota mil. A versatilidade do disco foi natural, creio que o artista é isso, versátil, plural, assim como a periferia é. Eu não queria fazer um disco semelhante ao que já tinha feito com meu grupo (A Família), eu queria ir mais além, queria dar continuidade, e não fazer um trabalho mais do mesmo, o resultado taí.
Bocada Forte: Na música “Castelo de Madeira”, se não me engano, tem um sample de batera do Massive Attack, na “Domingo de Chuva”, o loop é do Portishead. Você gosta de trip hop? O que anda ouvindo atualmente?
Crônica Mendes: Sim, sim. Na música “Brinquedo Assassino” também tem sample do Portishead. Gosto de trazer essas influências para dentro da música rap, creio que se ficarmos só ouvindo rap, não faremos nada de novo, vamos ficar nos repetindo o tempo todo. Gosto de trip hop e, além dos que já citamos, tem também a UNKLE, Morcheeba, entre outros que ouço, mas deixo no cofre (risos). Atualmente sigo ouvindo Kayne West, muito trip hop, Lorde, Pharrell Williams, Daft Punk, Pink Floyd, R.E.M, Belchior, Drake, Eminem, Flobots, Mos Def, Cypress Hill. Estou como sempre ouvindo muita música e sempre sem me importar com os estilos.
Bocada Forte: Como está a produção musical do rap atualmente?
Crônica Mendes: Na minha ótica vejo um futuro bom, mas precisamos nos atentar não só nas batidas, as melodias são importantes também. O bacana da produção musical é o estudo, é a busca de influências de fora do hip-hop. Brigamos muito, isso até hoje, para que o rap nacional seja tratado como música, então nós que o fazemos devemos ser os primeiros a tratá-lo como tal.
Bocada Forte: Sempre que peço para um artista apontar quais são os MCs, DJs e grupos que merecem atenção, ele apresenta seus amigos. Poderia falar sobre os artistas que acha relevantes e que não estão em seu círculo amizade?
Crônica Mendes: Além dos grupos que fazem isso, tem muitos veículos que só noticiam os mesmos do tal ciclo de amizade também, além daqueles que só falam dos ponta de lança, né!? Sempre recebo músicas pela internet através do Facebook, e-mail e redes sociais, e sempre tem música boa precisando de atenção. Taí um exemplo que é o Frick ZN, Conexão Paulista, Função Original, AFAL, Inspirados, DJ Da Goma, Perbony, Pertnaz, Versão Original, DJ Dona, Markão Aborígene, Frois. Irmão é muita gente na luta buscando seu lugar ao sol.
Bocada Forte: Você fala das agruras e belezas das periferias do ponto de vista de um ser consciente, se afastando do discurso que tem o crime como referência, seja para o bem ou para o mal. O crime ainda seduz parte da juventude periférica? O que o rap já fez e pode fazer para mudar essa realidade?
Crônica Mendes: O sucesso do crime se dá pelo descaso do Estado para com nossa gente, não vou dizer que o crime é o culpado de todo mau nas periferias, não estou aqui defendendo o crime também, mas vejamos, a periferia está sempre na linha de fogo, um vitorioso de quebra é orgulho para uma quebrada inteira, por que crescer num lugar excomungado, esquecido pelo Estado, e ainda sim vencer, é um tapa na cara de toda essa sociedade hipócrita. Este discurso parece antigo, mas é muito atual, estão exterminando nossa gente nas periferias de São Paulo, isso por que estamos crescendo, escrevendo nossa história, estamos aprendendo a debater e buscar com o que é nosso, estamos aprendendo a lutar pelos nossos sonhos, e isso incomoda muita gente. O rap está junto com essa luta, e há quem diga o contrário, mas não se engane, o rap continua vivo dentro das periferias ao lado do povo, tem muito rap sofrendo junto com o povo também, lutando, embalando reivindicações. O rap deve informar nossa gente, nossa juventude, mas com ausência do Estado, e o pior, não só ausência mas lutando contra nós, a luta fica mais intensa, mas gostamos desta luta desde criança.
Bocada Forte: Na música “Tinindo” você diz: “meu rap é de combate”. Você combate o que? Com os caminhos que o rap está seguindo, seu combate também se dá dentro do hip-hop?
Crônica Mendes: Não combato irmãos de palco, isso jamais, não vou fortalecer o inimigo. Meu rap é combate contra a violência que atira contra a gente, contra o mau político, o mau policial, não combato artista porque o povo não precisa de artista como líder, o povo deve ser sua própria liderança, não deve aceitar rédeas de ninguém. O hip-hop é um instrumento de transformação pro bem, mesmo que essa transformação passe pela guerra.
Bocade Forte: Qual sua opinião sobre a mensagem do pancadão misógino e o funk ostentação? São manifestações populares, mas qual o tamanho da dose de contribuição para a manutenção da desigualdade estes sons representam?
Crônica Mendes: O Brasil é um país multi-cultural, o Brasil é periferia. O rap já cantou os sonhos de toda uma geração, e hoje estes estilos que você citou cantam a ambição. Claro que a periferia quer ter dinheiro, carro, joias, mas e o caminho pra isso qual é? Na minha opinião eles só trabalham o lado ruim da ambição humana. Acho deselegante a forma que eles tratam a mulher, assim como o axé fazia, mas o pior é ver mulheres se divertindo com isso, então não adianta eu me preocupar com isso se elas não estão nem aí, digo isso sem generalizar. Sempre vamos ter inimigos, o rap tem este karma, não importa de onde venham estes inimigos, mas é triste saber que alguns vem de dentro das periferias, parece até natural. Uma das coisas que pouco se fala neste tema, é que existem funks bom também, pesquisem a APAFUNK do Rio de Janeiro, eles fazem um trabalho incrível. Volto a dizer – o poder de colocar alguém lá em cima é do público, ele escolhe quem vai ouvir, ele tem o poder, não podemos aceitar aquela tática nazista de que uma mentira contada mil vezes acaba se tornando verdade. Não podemos aceitar isso.
Bocada Forte: E os rolezinhos? Tem uma opinião formada ou em formação?
Crônica Mendes: Faço meus roles desde sempre, ninguém nunca politizou isso, e olha que nunca fomos poucos, mas sempre ficamos de olho nos infiltrados. O que este rolezinho dito hoje parece uma válvula de escape pra movimentos serem pautados, ora parece legítimo, mas em todo caso o direito de ir e vir das pessoas deve ser respeitado. Sou contra a repressão policial em toda estância.
Bocada Forte: O rap poderia ser mais contundente no combate a homofobia?
Crônica Mendes: Claro, taí um tema a ser abordado nas letras, quero fazer uma sobre isso. Sou a favor de toda forma de amar. O rap luta contra o preconceito, então não podemos ser preconceituosos, nem com o pancadão, que no caso a minha preocupação não é com o estilo, e sim coma forma que eles tratam as ambições das pessoas. Falar da homofobia é preciso, o rap é um braço forte na informação do nosso povo, e precisamos abrir este debate, e detalhe: pra isso precisamos entender melhor o sentimento, a pessoa, e acima de tudo aprender a respeitar as diferenças. E no meio disso tudo, periferia, tem as igrejas, os radicais, a intolerância, é bem complicado mas é preciso abraçar esta causa.
Bocada Forte: O que acha da influência das religiões cristãs nas decisões do Congresso Nacional?
Crônica Mendes: As religiões sempre comandaram o Brasil, desde a época do senhor feudal, passando pelo senhor Sarney e agora com felicianos. É tipo assim – quem detém o temor do povo pilota a situação. Acho ruim misturar política com religião, essa história de ter um deus mandando lá no céu e outros aqui na terra é bem capitalista. Se você não agir conforme o pastor disse, o padre, o ministro, o bispo, o apóstolo, você vai pro inferno. Poxa, quem não tem medo de ir pro inferno? (risos). Aí você junta este medo do povo com o mando dos religiosos que pilotam a política no país, pronto você manobra a mente de quem está amordaçado por este tipo de “fé”, fé torta, com isso você ganha o direito de mandar e com aval do supremo, com perdão do trocadilho.
Bocada Forte: Existe a possibilidade de ouvirmos um disco do Crônica Mendes que não tenha a temática política em seu DNA?
Crônica Mendes: Um disco não, mas algumas músicas sim. Isso você já pode conferir no meu álbum “Até onde o coração pode chegar”. Não escolho a temática política, ela é algo natural que surge quando estou compondo. Fruto do que leio, das conversas que tenho com pessoas, do que vivo, dos lugares onde vou. Eu canto, componho sobre a periferia em todos os seus estados, desde o emocional ao critico, do entretenimento a revolta. Volto a dizer o artista tem que ser versátil, e nós do rap somos artistas sim, fazemos arte, uma das mais belas artes. Temos que estar nas periferias, nas favelas sim, mas também temos que estar nos grandes centros, nas grandes casas de shows, mas isso tudo deve acontecer como extensão e não como abandono, não é regra, é o que eu penso.
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