Corres da Pandemia #01 | Rapper Japão se divide entre carreira artística e ações sociais
ESPALHA --->
“Não adianta dizer ‘Deus acima de tudo’ e colocar o povo abaixo da linha de miséria” (Júlio Lancellotti)
Diante de uma pandemia sem precedentes na história recente e um (des)governo desastroso, que só fez aumentarem o desemprego e a inflação, o resultado não poderia ser outro. O Brasil voltou a figurar no Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) e o noticiário recente tem mostrado o desespero de famílias que mal conseguem se alimentar com carcaça de frango, sopa de osso, fragmentos de arroz ou até restos garimpados no lixo.
Esse aumento do número de miseráveis e a inoperância das autoridades políticas ante tal cenário desolador têm motivado artistas, ativistas e outras lideranças a intensificar as ações sociais a fim de tentar amenizar os efeitos dessa crise. Empatia e solidariedade, aliás, são valores que sempre nortearam as ações de muitos agentes da cultura hip-hop.
Nesta reportagem especial “Corres da pandemia”, dividida em três partes, o Bocada Forte apresenta algumas dessas ações sociais emergenciais. Esta série se inicia com o rapper Japão (Viela 17), da Ceilândia (DF).
Japão (Viela 17) se divide entre carreira artística e ações sociais
Apesar de a pandemia da Covid-19 ter reduzido drasticamente a agenda de muitos agentes culturais, os dias se tornaram mais curtos para Japão, do grupo Viela 17. Explica-se: apesar de os shows terem sido interrompidos por meses, o rapper de Ceilândia (DF) não conseguiu ficar inerte ao constatar o aumento no número de famílias desamparadas ou em situação de miserabilidade. E decidiu partir para a ação, promovendo campanhas de arrecadação e distribuição de alimentos, medicamentos e outras demandas periféricas.
Desde então, são numerosos os pedidos de ajuda que o fundador do Viela 17 recebe quase diariamente, que vão de cestas básicas e roupas a medicamentos, passando por auxílio em tratamentos de saúde ou mesmo condições de moradia. Além de empregar recursos do próprio bolso, Japão vem utilizando suas redes sociais para arrecadar doações e tentar atender a todas as demandas que recebe.
Sobre os pedidos que recebe, Japão diz: “Os que mais me tocam são os de auxílio a funerais. Foram muitas perdas de modo inesperado, e muitas famílias sem reserva financeira recorrem a pedidos desesperados para proporcionar um pouco de dignidade no momento final de um ente querido”, emociona-se.
Com uma carreira consolidada desde a formação do grupo Viela 17 – no ano 2000 -, além das campanhas assistenciais, desde o início da pandemia Japão também incentiva e se engaja ativamente em outros movimentos, como A Marcha das Mulheres Indígenas. O rapper ainda consegue conciliar essa mobilização com o curso de Gestão Jurídica – ingressou na faculdade com o intuito de auxiliar sua esposa e advogada Daniela Mara, que atua na área previdenciária – e a própria carreira artística, que tem sido administrada basicamente pela internet.
Seu mais recente lançamento foi o do videoclipe de “Herança do medo”, single que tinha sido apresentado em outubro – com produção de DJ Raffa e participação especial de seu irmão, o padre Nei Nelson, e do DJ Dog Daia. Como tema central, a canção dedicada às vítimas da Covid-19 aborda justamente a pandemia e seus efeitos às periferias brasileiras, fazendo uma crítica social à desastrosa atuação do governo federal – mas sem deixar de trazer uma mensagem de esperança e fé.
https://www.youtube.com/watch?v=QAJJtW5Pnmc
Em um raro momento livre, Japão conversou com o Bocada Forte para falar sobre as ações solidárias que vêm sendo realizadas e o atual contexto de crescente miserabilidade na Ceilândia e nas quebradas de todo o Brasil.
Bocada Forte (BF): Como surgiu a ideia da arrecadação de alimentos? Desde quando você realiza esse tipo de ação?
Japão: Aprendi com minha mãe a fazer campanhas de arrecadação e distribuição de cestas básicas. Na infância, a nossa vida, assim como a de milhões de brasileiros, não foi fácil. Então, aprendi que onde se tem, se partilha. Todo final de ano, de forma singela, distribuímos alimentos e roupas em nossa comunidade. Esse trabalho foi iniciado na década de 1990, na expansão do setor O.
BF: Enfrentando questões que deveriam ser resolvidas por políticas sociais, quais são as dificuldades que você tem encontrando?
Japão: Além de tentar suprir as necessidades diárias do nosso povo, é preciso lembrá-lo que não devemos apostar todas as fichas em órgãos governamentais. Muitos deles são responsáveis pelo caos enfrentado, e poucos se dispõem a fazer algo.
BF: Como os pedidos de ajuda chegam até você?
Japão: Hoje, além de tentar levar um pouco de dignidade entregando alimentos, recebo pedidos de todos os tipos: cadeiras de rodas, camas hospitalares, medicamentos, auxílio para aluguel ou para pagar contas de água e luz… E o mais doloroso, auxílio para fazer algum funeral. Esses pedidos chegam por meio das minhas redes sociais e também pelo meu telefone pessoal, que disponibilizei desde o início da campanha.
BF: Sobre a distribuição das cestas básicas, é realizado algum cadastro? Quantas famílias estão sendo beneficiadas?
Japão: Temos uma lista de todas famílias que assisto mensalmente, selecionando as mais necessitadas e com comorbidades. Cadastrei pelo menos 650 famílias que atendo mensalmente desde março de 2021. São cerca de 3.300 pessoas por mês.
BF: Na sua opinião, poderiam existir mais projetos como este, desenvolvidos por outros artistas da cena? Se sim, o que impede que mais pessoas sigam este exemplo?
Japão: Na minha humilde opinião, eu acho que esse tipo de trabalho requer esforço de toda a sociedade civil, mas não posso opinar sobre quem deveria fazer ou não. O meu envolvimento é algo pessoal, que foi ensinado por minha mãe, Dona Ercilia. Cada um tem seus motivos para reagir. Existem vários artistas, por exemplo, que ajudam sem a necessidade de se expor. Uma coisa é certa: em todo o Brasil, hoje, existem várias frentes que estão nessa luta. Muitos botando a cara e outros, de forma anônima.
BF: Como pessoas interessadas em ajudar podem colaborar com o projeto?
Japão: Meus trabalhos são uma ação coletiva entre amigos(as). Por essas redes, consigo expor as demandas e organizar as doações, pois cada caso é um caso. Os meios de arrecadação são entregas de alimentos e roupas em locais determinados e contribuições via Pix , em que disponibilizo para depósito em uma conta exclusiva para doações.
BF: Quem são os(as) parceiros(as) que auxiliam nas arrecadações e distribuições?
Japão: Meus parceiros e parceiras são seguidores de minhas redes e amigos que têm instituições que, sempre que podem, ajudam o próximo, como R.U.A.S, Barba e Cufa-DF. Para as distribuições, conto com a família Nafros, coordenada pela Nair e o Thyaka, esposo dela.
BF: Referência no rap brasileiro, você tem levado esperança a várias famílias. O que você gostaria de dizer para essas pessoas, neste momento tão difícil em que nosso país se encontra?
Japão: Meu trabalho é feito com muito empenho e atenção. Infelizmente, não consigo atender toda a demanda existente, mas pelo menos dessas 649 famílias eu não descuido, são cerca de 3.300 pessoas. O que digo a eles é que tento fazer o melhor para atendê-los e entendo perfeitamente o desespero, não as julgo por nada.
BF: Você acredita que a humanidade tenha aprendido algo com essa pandemia?
Japão: Acredito que essas famílias não tiveram espaço para pensar ou repensar questões humanitárias. O desespero toma conta de milhões de famílias em todo o mundo. Não sou um cara pessimista, mas conservo meu lado realista e posso dizer: sofreremos muito ainda, o baque econômico cobrará um preço alto para quem está na base da pirâmide. Só peço que não tenham medo, enfrentem a batalha e confio que, em breve, sairemos vitoriosos.
Quer contribuir com o projeto?
Pix (e-mail): japãoviela17@gmail.com
Acompanhe o trabalho artístico e as ações sociais de Japão (Viela 17)
Instagram: https://www.instagram.com/japaoviela17/
YouTube: https://youtube.com/c/Viela17OficialCEI
Confira a ideia que trocamos com Japão em julho/2020
2 comments