‘A gente não vive a realidade dos artistas e seus patrocínios’, diz Felipe Mascari
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Na segunda entrevista do especial sobre a mídia do Hip Hop, conversamos com Felipe Mascari, do canal Rap TV, projeto iniciado em 2013 e que conquistou reconhecimento na cena por meio de suas entrevistas e reportagens com temas que vão ao encontro do público do Rap brasileiro.
“[Em 2013] não tínhamos equipamento nenhum. Eu usava uma câmera cybershot, de casa para filmar e o Zurk pegava uma filmadora emprestada do trabalho. Era tudo bem precário. Até 2014, quando a gente foi selecionado pelo Programa VAI, na gestão Haddad, e conseguimos profissionalizar as gravações”, relembra Mascari.
Seguindo o lema “faça você mesmo” e sem grandes recursos, a atitude e iniciativa do jornalista é um exemplo para a nova geração da mídia alternativa. Felipe Mascari também falou sobre o atual cenário e o descaso de alguns artistas em relação ao trabalho do RapTV. Leia abaixo:
Bocada Forte: Você tinha outro projeto antes do RapTV? Como foi seu primeiro envolvimento com a mídia alternativa?
Felipe Mascari: Não tinha. Tudo começou com o RAP TV como criador de conteúdo, mas antes era só leitor mesmo. Acompanhava as mídias voltadas à cena, mas só isso.
BF: Quais mídias te inspiraram e por que começou no audiovisual ao invés de blogar?
Mascari: Quando comecei com o RAP TV não havia muita coisa do audiovisual, era tudo mais voltado ao texto. Eu e o Kaique Zurk, que criou comigo a parada, sempre olhávamos mais para o que rolava lá fora e trazer para cá. Por exemplo, o Sampleando é totalmente inspirado no Rhythm Roulette, da Mass Appeal. Os trampos da Complex também inspiraram a gente, mas sempre tentando trazer uma cara mais nossa.
Falando um pouco de Brasil e as mídias daqui, eu sempre curti três portais: Vai Ser Rimando, que era muito grande na época, o Noticiário Periférico e o Bocada Forte. Era a principal fonte de inspiração para entender como rodava a engrenagem daqui. Aliás, vale a acrescentar a Revista Rap Nacional!
BF: Legal. Mas você já dominava a técnica? Tinham equipamentos? Manjavam de streaming e redes sociais?
Mascari: Não. O canal surge no final de 2013, quando eu tava no primeiro ano da faculdade de jornalismo. Então, eu sempre tentei trazer o que tava aprendendo, elaboração de pauta, método de pesquisa sobre os artistas. O canal era uma espécie de aprendizado também.
Na época, a gente contava com o Miguel na equipe, que era um baita fotógrafo. Então, ele ajudou a gente demais para entender as técnicas de vídeo, enquadramento e tudo mais.
Não tínhamos equipamento nenhum. Eu usava uma câmera cybershot de casa para filmar e o Zurk pegava uma filmadora emprestada do trabalho. Era tudo bem precário. Até 2014, quando a gente foi selecionado pelo Programa VAI, na gestão Haddad, e conseguimos profissionalizar as gravações.
Sobre rede social e streaming, nós nunca manjamos. Por isso, até 2019, quando mais pessoas começaram a colaborar conosco, a gente conseguiu despontar em algumas redes, como Twitter e Instagram. Mesmo há alguns anos no Youtube, ainda quebramos a cabeça para entender a plataforma.
BF: Tempos atrás, numa live de uma artista de reggae, houve um comentário de que a mídia alternativa é muito “release” e “assessoria de imprensa” e pouco jornalismo. O que acha disso?
Mascari: É um assunto muito complicado, que passa por um problema estrutural enorme. O jornalista de mídia alternativa, na maioria das vezes, tem outra ocupação que paga as contas de casa. Dentro disso, o portal que ele sustenta não consegue ter toda a atenção necessária. Então, os releases e o trabalho de assessoria de imprensa são extremamente importantes para que ajude nesse trabalho.
Vamos à cena do Rap nacional. São milhares de artistas no país inteiro. Como nós vamos dar conta de toda a demanda, sem o mínimo de direcionamento ou informação? Lógico, ninguém precisa ser refém de release, mas eles são importantes no trabalho, para criar pautas e poder se aprofundar melhor no lançamento. Eu mesmo, num veículo audiovisual e que não trabalha texto, peço os releases para conseguir direcionar as entrevistas.
(…) a gente não vive a realidade dos artistas e seus patrocínios, que não olham do mesmo jeito para os veículos. Isso sem falar que é a burocracia para conseguir algumas entrevistas com MCs que desdenham do nosso trabalho. São poucos, mas tem
BF: Quais são as principais dificuldades que vocês enfrentam e superam na produção de conteúdo do Rap TV?
Mascari: A dificuldade passa por diversos problemas, desde estrutura até o lado financeiro. Várias vezes precisamos de alguma manutenção de equipamento e não tem de onde tirar o dinheiro. O YouTube paga pouquíssimo e a fonte de renda viraram os anúncios em redes sociais, que começamos há pouco tempo, e estão ajudando um pouco. Porém, a gente não vive a realidade dos artistas e seus patrocínios, que não olham do mesmo jeito para os veículos. Isso sem falar que é a burocracia para conseguir algumas entrevistas com MCs que desdenham do nosso trabalho. São poucos, mas tem.
Mas mesmo assim, nós nos superamos, não deixamos de criar conteúdo semanal. A gente não tira um Real e estamos todos os dias nos dedicando, buscando trazer coisas novas, entrevistados exclusivos. Não dá pra parar, né?
BF: Você não acha que a mídia do Hip Hop poderia repercutir mais o conteúdo que vocês produzem? Se os MCs desdenham, o compartilhamento, divulgação e análise do que fazem não ajudaria o Rap TV a ajudar a cena blogueira também?
Mascari: Cara, eu acho que seria importante demais isso. Eu já tentei colocar nosso conteúdo no RND, mas eu mesmo escrevia os textos e publicava lá. No Vai Ser Rimando também saia coisa nossa lá, mas foi bem no começo de tudo. É algo que sempre queríamos que acontecesse, mas nunca rolou com frequência.
Modéstia parte, mas sai muita entrevista boa e que valeriam um texto, umas aspas nos sites e etc. Nós começamos a produzir uns releases, recentemente, mas a maioria dos textos saíram em veículos comerciais ou sites de fofoca. Também não sei se é do interesse da galera compartilhar nosso conteúdo.
A realidade dos veículos é a mesma, são poucos braços dando conta de uma demanda enorme. Quanto mais rolar uma aproximação, mais gente vai ser abraçada
BF: Acha possível uma nova tentativa de aproximação com os blogs/sites independentes para firmar parcerias fortes?
Mascari: Esses dias, enquanto gravamos um dos nossos podcasts, pensei nisso. Acho que é importante demais a aproximação de alguns veículos. Como eu disse antes, nós temos um problema estrutural e, às vezes, unir forças pode ser bom para todos. Se um trata mais das “hard news” do Rap e outro traz mais análises, poderia rolar uma parceria que beneficiaria os dois.
BF: Sim. Existe um problema estrutural com os blogs também, principalmente em relação ao audiovisual. Vemos Folha, BBC, Globo, entre outros grandes veículos, fazendo parcerias, mas corremos desarticulados e sozinhos. Como vê tudo isso, principalmente com os artistas precisando menos dos veículos, pois alguns têm contato com um número grande de seguidores?
Mascari: Seria benéfico para todo mundo, tanto para os criadores de conteúdo, quanto para os artistas. Seria possível ampliar o método de produção e, a partir disso, ajudaria artistas emergentes que precisam desses espaços. A realidade dos veículos é a mesma, são poucos braços dando conta de uma demanda enorme. Quanto mais rolar uma aproximação, mais gente vai ser abraçada. E ainda seria possível quebrar as hegemonias que rolam por parte de grandes mídias voltadas ao entretenimento, que estão se apropriando da pauta do Rap, por exemplo.
BF: Falando do conteúdo do Rap TV, quais as entrevistas que vocês mais gostaram? Elas são necessariamente as que mais têm visualizações?
Mascari: Cara, por incrível que pareça, não. São raras as entrevistas que a gente saiu insatisfeito, porque a maioria dos artistas são solícitos conosco e rende bacana. Mas por exemplo, eu amo as entrevistas com Vandal, Emicida e Marcelo D2, e são entrevistas que ficaram na casa de 30 mil visualizações. São entrevistas ótimas que não têm a mesma repercussão do que trocar ideia com alguém da Recayd, por exemplo.
Tudo isso é reflexo do público. O Youtube conversa muito com a nova geração e ela quer ver suas referências da atualidade. É um problema que a gente tem que lidar.
A cultura do trap também é, em maioria, feita por pessoas mais novas, no Brasil. É um moleque da quebrada que encontrou sua forma de expressar e que não tem acesso à política ainda. Cobrar politização de quem quer colocar comida em casa é uma visão um pouco elitista também
BF: No Rap TV Cast mais recente, vocês abordaram o Trap. Não noticiar a produção atual é fechar um canal de comunicação com a juventude? É deixar de tentar entender a geração atual?
Mascari: Com certeza. Os portais que deixam de falar de trap estão dando um tiro no próprio pé. Negar a ascensão e importância desse movimento já é errada por si só, por tudo que o gênero tem representado e proporcionado para uma geração. Além disso, deixar de noticiar, se afastar disso, é ruim para o próprio site, que perde a chance de trazer um novo público, renovar a leitura e outros aspectos. Só estão perdendo espaço para outras mídias que já trabalham com esse segmento.
BF: A geração Trap é acusada de superficialismo e despolitização do Hip Hop. O que tem a dizer sobre isso? É uma generalização? Em outras épocas foi diferente?
Mascari: Na minha visão, esse carimbo que colocam sobre o trap reforça uma visão desnecessária sobre artistas, que em sua maioria são pretos. Cantar autoestima não é superficial. A crítica ao trap é a mesma feita sobre o funk, que tem papel fundamental na cultura brasileira.
Tem outro ponto, mano. A cultura do trap também é, em maioria, feita por pessoas mais novas, no Brasil. É um moleque da quebrada que encontrou sua forma de expressar e que não tem acesso à política ainda. Cobrar politização de quem quer colocar comida em casa é uma visão um pouco elitista também. Acho complicado essa cobrança que rola sobre essa cena.
BF: Voltando ao Rap TV, como elaboram as pautas? Vocês inserem em suas reuniões temas como racismo, homofobia, combate ao fascismo? A politização de certos temas pode atrair haters e afastar seguidores. Como lidam com isso
Mascari: A elaboração passa por uma pesquisa sobre o artista. A maioria das vezes, eu mesmo que faço. Vou atrás do que a pessoa já falou para evitar repetição e tento sair do óbvio do que se espera perguntar. Isso inclui falar sobre todas as pautas sociais, falando sobre racismo e machismo, até falar sobre políticas do governo federal.
Em alguns casos rola uma crítica, a galera reclama sobre misturar arte e política, mas é uma molecada que não entendeu nada, não sabe a cultura que faz parte. É desinformação pura. Mas como a gente disse nas eleições de 2018: quem é a favor desse fascismo, não queremos como público.
BF: Estamos em meio a uma pandemia, com consequências drásticas para os brasileiros, principalmente os mais pobres. Acredita que a mídia alternativa também sofreu um grande impacto, por ser feita por trabalhadores que agora precisam lidar com o coronavírus e as novas neuroses que foram criadas neste nosso novo estilo de vida?
Mascari: Com certeza. Isso reforça o que o disse antes: nós não vivemos dos portais independentes, mas dos nossos trabalhos de 40 horas semanais. Sem trampar, a gente não vai ter mais tempo para produzir, pelo contrário, o foco vai ser em levantar um dinheiro com mais urgência. Ou seja, fica mais difícil ainda me produzir conteúdo.
Por sorte, particularmente, eu consegui manter minha ocupação no home office e estou conseguindo criar mais coisas para o canal. Porém, sei que é um caso isolado. Não é todo mundo que consegue se manter nesse período e isso faz com que as mídias independentes corram mais risco, abrindo mais espaço para os veículos hegemônicos.
BF: Acha que a situação está pior para os artistas? Aqueles que não tem lives patrocinadas…
Mascari: Pra caramba. Eu tenho acompanhado vários relatos de artistas que estão sofrendo com essa pandemia. Não são todos que têm lives, patrocínios, suporte para manter a carreira sem shows. Isso resulta em um monte de problemas. Há quem diga que o streaming paga conta, mas está longe disso. É igual o auxílio emergencial, mais parece uma esmola.
Se o artista não tem dinheiro, ele não vai conseguir pagar conta e muito menos pagar um estúdio, uma mixagem, um beat. Não vai lançar coisa nova, não vai conseguir receber das plataformas e vai ficar num ciclo mais precário. Eu vejo com preocupação demais esse impacto da pandemia sobre a nossa cena.
Os meus votos de esperança são para que a relação entre veículos se estreitem, role mais um fortalecimento conjunto
BF: Acredita que as coisas serão melhores quando isso passar?
Mascari: Para quem? Artistas ou mídia?
BF: Artistas e mídia alternativa.
Mascari: Mano, sinceramente, acho que pouca coisa vai mudar. Talvez, com a pandemia, a relação artista e fã possa melhorar, porque se estreitou durante o isolamento. A partir disso, os shows podem atrair mais gente e tudo mais. Para as mídias, quem conseguir pegar o vácuo da quarentena, onde foi possível alcançar mais gente, vai ser positivo. Os meus votos de esperança são para que a relação entre veículos se estreitem, role mais um fortalecimento conjunto.
Quem conseguiu ficar em casa com a vida relativamente normal, que possa ter refletido sobre o momento e trazer coisas boas para o trampo, saber canalizar esse momento para produzir arte ou bons conteúdos.
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