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“Criminalização criou mercado ilegal e paralelo do aborto no Brasil”, diz Silmara Conchão

“Criminalização criou mercado ilegal e paralelo do aborto no Brasil”, diz Silmara Conchão

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José Eduardo Bernardes

A disputa entre ondas conservadoras e progressistas esbarra em todos os aspectos sociais. Mais recentemente, os avanços e retrocessos em relação ao aborto no mundo revelaram suas facetas mais antagônicas. Enquanto a América Latina comemora a legalização em países como Colômbia e Argentina, o Brasil foi duramente atacado com o caso de uma menina de 11 anos, induzida por uma juíza a manter uma gravidez decorrente de um estupro. Nos Estados Unidos, a revisão pela Suprema Corte de uma decisão que descriminalizava o aborto levou diversos estados a uma nova onda de retrocessos sobre o procedimento.

Dias depois do caso da menina de Santa Catarina, um jornalista e uma influenciadora digital revelaram dados sigilosos de uma atriz que sofreu um estupro e entregou o bebê fruto da violência para adoção. Para Silmara Conchão, que foi secretária de Política para Mulheres de Santo André entre 2013 e 2016, “a ordem catolicista e evangélica [do Brasil], coloca embaixo do tapete essa questão.”

“Os direitos sexuais e reprodutivos não são tratados como direitos, ainda há um tabu sobre a sexualidade, está relacionado ao proibido, ao pecado. A gente tem que tirar desse lugar sujo e colocar no campo dos direitos humanos efetivamente.”

Conchão teve papel decisivo na construção de políticas para as mulheres no Grande ABC paulista. Entre os projetos da sua gestão, está a criação de um programa de atendimento a mulheres vítimas de violência sexual, inclusive de aborto legal, e a efetivação desse programa em um hospital local de referência, o Hospital da Mulher. Em 2017, a socióloga recebeu a Medalha Ruth Cardoso, em homenagem aos seus esforços pela saúde das mulheres.

“Foi um trabalho muito grande, onde a gente reforçou o SUS (Sistema Único de Saúde) enquanto uma política de estado para efetivamos a formação com os funcionários da área da saúde, os funcionários de carreira, porque governos vêm, governos vão e é importante que os funcionários que estão lá tenham essa formação, esse entendimento, para fazer garantir os direitos das mulheres, das meninas em situação de violência sexual”, afirma.

Convidada desta semana no BDF Entrevista, Conchão acredita que uma virada nas políticas para mulheres no Brasil está totalmente ligada às eleições deste ano: “É importante elegermos uma bancada forte, porque a bancada hoje, de oposição ao Bolsonaro, está desde 2019 segurando para que o governo conservador não faça modificações nessas normas técnicas, nessas leis que nós já conquistamos”, explica.

A socióloga lembra que há um “mercado paralelo, ilegal, sustentado por uma criminalização que deveria ser tratada como algo fundamental para a gente melhorar o índice de saúde pública das mulheres aqui no Brasil”.

“Porque, para as mulheres que têm dinheiro, que têm recursos financeiros, o aborto é legalizado no nosso país. É hipocrisia a gente não discutir isso. Eu nem entro na discussão do contra ou a favor. Eu acho que a gente tem que tratar a realidade enquanto problema de saúde pública no nosso país”, completa.

O Judiciário, por onde tramitam diversas ações que contestam a dificuldade de mulheres em acessar os direitos ao aborto legal, também é decisivo para a efetivação dessas políticas. Uma ação que defende a descriminalização o aborto de gestações até a 12ª semana, apresentada pelo PSOL em 2017, ainda tramita no Supremo Tribunal Federal (STF).

Até agora, somente o voto de três ministros dos seis necessários para aprovar a medida, são conhecidos: Rosa Weber, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin, já que votaram favoravelmente, em matéria similar, de 2016, ao aborto nessas condições.

“O Poder Judiciário tem um papel fundamental para a gente avançar nessa pauta. Existe uma compreensão dos brasileiros e das brasileiras que as mulheres têm o direito a recorrer nos casos previstos em lei. Agora, a questão da descriminalização do aborto é um debate que a gente teria que enfrentar por conta da necessidade de mudança de cultura, dessa cultura do estupro, que eu estou sempre batendo na tecla”, completa.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Você foi secretária de Política para as Mulheres de Santo André e desenvolveu uma política de atendimento às mulheres vítimas de violência sexual, na cidade do Grande ABC de São Paulo. Como o atendimento público especializado pode fazer a diferença em um momento tão crítico como esse?

Silmara Conchão: Esse trabalho em rede é fundamental para a gente organizar o enfrentamento, a proteção e a promoção da saúde das mulheres e das meninas que buscam ajuda nos espaços públicos.

Esse trabalho não começou, na verdade, na época da Secretaria. Ele começou em Santo André, em 2002, quando a gente tinha a assessoria dos direitos da mulher e o programa de saúde da mulher. E dentro do SUS, a gente começou a discutir a importância do trabalho em rede, formar redes de atenção na área da saúde em Santo André, até que foi criada a Resavas, a Rede de Saúde para Atenção às Violências e Abuso Sexual de Santo André.

Em 2005, eu passo a coordenar esta rede, mas só eu 2006, 2007 e 2008 eu consegui organizar o serviço de abortamento em casos de violência sexual aqui no município de Santo André porque, até então, a gente encaminhava as mulheres para São Paulo, no hospital Jabaquara, que era a nossa referência naquele momento, e também para o Perola Byington, nossa grande referência estadual e, naquele momento, referência do SUS.

A gente ainda tinha a ginecologia que funcionava no Centro Hospitalar, em Santo André, organizamos os serviços de abortamento no Centro e quando inaugurou, em 2008 o Hospital da Mulher, que é uma grande referência nacional, de atenção integral à saúde da mulher em situação de violência sexual, a gente transfere todo o serviço para lá.

Foi um trabalho muito grande, onde a gente reforçou o SUS enquanto uma política de estado para efetivamos a formação com os funcionários da área da saúde, os funcionários de carreira, porque governos vêm, governos vão e é importante que os funcionários que estão lá tenham essa formação, esse entendimento, para fazer garantir os direitos das mulheres, das meninas em situação de violência sexual.

Nós implementamos a notificação compulsória da violência contra as meninas e as mulheres, que é muito importante para efeito de informação. Ela não está relacionada à ocorrência policial. Essa notificação serve para a gente trabalhar com dados da realidade, com o perfil do agressor, com o mapa da violência na cidade, na região.

Chamamos outros setores de políticas públicas, como a educação. Porque ela é a porta de entrada, não só a saúde, mas a segurança pública também, para que a gente tenha uma cidade efetivamente segura para as mulheres.

Na onda da exposição absurda que uma atriz sofreu recentemente e também do caso da menina de 11 anos que foi induzida a não realizar um aborto legal, apareceram nas redes sociais uma série de relatos sobre mulheres que buscaram auxílio em delegacias da mulher ou em centros médicos especializados e que foram completamente negligenciadas e desassistidas. Qual é o impacto de mais uma violência na vida dessas mulheres, que estão buscando ajuda? 

O impacto é na insegurança das mulheres em buscar ajuda neste momento. Impacta na solidão das mulheres em um momento extremamente de dor e sensível na história delas, que marca de maneira traumática a vida dessas mulheres. O impacto direto é na morte materna das mulheres, no aumento da gravidez indesejada.

Isso é muito grave na vida de uma mulher e de uma criança que nasce fruto de uma relação de violência e de injustiça marcante. Esse impacto também fortalece a clandestinidade no procedimento do aborto, uma rede paralela de atenção ao aborto. Tem pessoas que ganham muito com essa questão da criminalização do aborto no nosso país.

A gente está falando de um mercado paralelo, ilegal, sustentado por uma criminalização que deveria ser tratada como algo fundamental para a gente melhorar o índice de saúde pública das mulheres aqui no Brasil. É uma iniquidade em saúde. Nós estamos infringindo uma lei federal, já que um dos princípios do SUS é a equidade aos serviços de saúde.

Porque, para as mulheres que têm dinheiro, que têm recursos financeiros, o aborto é legalizado no nosso país. É hipocrisia a gente não discutir isso. Eu nem entro na discussão do contra ou a favor. Eu acho que a gente tem que tratar a realidade enquanto problema de saúde pública no nosso país.

A gente sabe que as mulheres religiosas fazem, que a criminalização do aborto não impede que as mulheres o façam. Só que quem paga o preço alto são as mulheres pobres, as mulheres jovens e as mulheres da periferia, as mulheres pretas, que arriscam a vida quando procuram um procedimento clandestino.

Se a gente não discutir essa questão na adolescência, que é uma fase de desenvolvimento social, sexual, de grande descoberta do corpo, se a gente não tiver um trabalho efetivo de educação sexual, a gente não consegue também prevenir as IST/AIDS, não consegue prevenir a gravidez indesejada.

É importante que essas adolescentes, essas mulheres, tenham acesso adequado às informações sobre os seus direitos, sobre os métodos de prevenção e ensinar também os rapazes a respeitar as moças, os meninos, a respeitarem as meninas, para que a gente trate também de uma sociedade que está doente, pela discriminação de gênero, que fortalece uma cultura do estupro e culpabiliza as mulheres quando isso acontece.

A gente sabe também que esses casos que você citou, eles ganharam notoriedade, mas outros casos aparecem. E veja o quanto o movimento de mulheres é importante, o movimento feminista, as promotoras legais populares, o Centro de Apoio à Mulher em Situação de Violência, o quanto esses espaços. Porque eles lidam com uma realidade que é muito maior que essa que aparece na televisão, na mídia, nas redes sociais.

O Ministério da Saúde estima que o que chega ao serviço público, às delegacias, não corresponde a 10% da realidade, porque as mulheres ainda carregam a questão do peso moral, peso legal, onde a paternidade é absolvida completamente. A gente percebe que o que sobe ao palco é a figura da vítima. Ela é revelada, investigada e sai de cena o criminoso, estuprador. Ele é absolvido, esquecido nesse processo.

E como você falou, muitas mulheres não notificam os abusos porque grande parte desses abusadores são pessoas próximas, do convívio familiar. Números dão conta de que 70% dos casos são de pessoas do convívio dessas mulheres. 

Por isso a notificação é importante. Aqui, em Santo André, a gente conseguiu fazer o mapa da violência sexual. A gente sabia os horários mais arriscados, os locais, conseguia discutir com a questão da iluminação na cidade, alertar a população com campanhas direcionadas para esses espaços mais arriscados para as mulheres.

Então, a notificação da saúde é muito importante, mas a gente não chamava, ao menos ali não era o nosso papel, de fazer boletim policial. Nosso papel é de atender a saúde da mulher e promover informação sobre a violência contra a mulher na cidade através da área da vigilância epidemiológica, para chamar a responsabilidade de outros setores da prefeitura, do estado e promover políticas públicas assertivas

Porque vivemos essa onda de avanços e retrocessos, em um espaço tão curto de tempo? Vale lembrar que a Nova Zelândia aprova o aborto em 2020. Em dezembro do mesmo ano, a Argentina aprova o aborto legal, após intensa pressão social das mulheres, que tiveram um papel decisivo. No começo de 2022, a Colômbia também faz esse movimento e nas últimas semanas, a gente vê essa onda de retrocessos gigantesca. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte revogando uma lei que dava amparo federal ao aborto, e uma série de casos tenebrosos no Brasil. O que desencadeia todos esses eventos juntos?

Olha, a gente está vendo um grande retrocesso no comando de grandes nações como o Brasil de Bolsonaro e os Estados Unidos com [Donald] Trump. A gente vê que esse desafio não é só aqui no nosso país, mas ele é mundial. A gente está vivendo uma onda conservadora, uma verdadeira batalha ideológica.

O Trump indicou 3 juízes conservadores para a Suprema Corte antes de sair. E agora a gente tem isso como exemplo aqui no Brasil, o quanto é importante este ano de eleição, elegermos uma bancada forte, porque a bancada hoje, de oposição ao Bolsonaro, está desde 2019 segurando para que o governo conservador não faça modificações nessas normas técnicas, nessas leis que nós já conquistamos

Precisamos avançar, não só manter o que nós temos hoje conquistado, que é a pauta da garantia do serviço ao aborto legal. Temos que avançar para a descriminalização do aborto no nosso país, como foram os outros países que você acabou de citar, incluindo o Uruguai também.

Em Portugal, quando também descriminalizou, acho que faz mais de 10 anos, mas foi com um plebiscito. E 10 anos antes de descriminalizar o aborto, as pessoas se manifestavam contrárias a descriminalização. Eles chegaram à conclusão que tinham que falar mais sobre isso.

Portugal passou a debater depois desse plebiscito que perdeu, passou a falar publicamente e 10 anos depois, colocaram um novo plebiscito onde foi descriminalizado o aborto. Os países que já descriminalizaram não tem fila de aborto. Tem um programa colado, de campanhas de prevenção à violência sexual, de prevenção à gravidez indesejada, de prevenção à IST/AIDS, tem um programa de planejamento familiar muito efetivo.

Nós temos o SUS, e a gente pode aprimorar nossas ações, nossas campanhas de promoção, prevenção à violência sexual, para que as mulheres não precisem tomar essa decisão tão difícil, tão solitária e tão dolorida.

A nossa ordem catolicista, evangélica, coloca embaixo do tapete essa questão. Porque os direitos sexuais e reprodutivos não são tratados como direitos, ainda há um tabu sobre a sexualidade, está relacionado ao proibido, ao pecado. A gente tem que tirar desse lugar sujo e colocar no campo dos direitos humanos efetivamente.

Aproveitando esse ponto, além do que prevê a legislação brasileira para abortos legais, que são em casos de anencefalia, em casos de estupro e risco de vida à mãe, você acredita que há espaço para o tipo de interpretação realizada pela juíza do Rio Grande do Sul, que negou atendimento à menina de 11 anos? Qual é a frequência desse tipo de abuso da lei contra as mulheres?

A juíza, ela infringiu os dois aspectos onde o aborto legal é possível no nosso país: um é o da gravidez decorrente do estupro; e outro que é o risco de morte da mulher. Não cabe interpretações, é totalmente contra o amparo legal que essa menina tem, e que a mãe ali junto com ela buscou efetivar. A gente pode classificar a atitude da juíza como um abuso de poder, perpetrado por interesses políticos e religiosos de setores do estado.

Isso também acontece muito comumente com médicos. Tivemos uma situação aqui no ABC alguns anos atrás, com um médico em São Bernardo do Campo. A mulher entrou no hospital em São Bernardo, em situação de aborto induzido, com um sangramento muito forte. O médico algemou esta mulher na cama do hospital e chamou a polícia.

Os médicos podem também não querer fazer o procedimento. Existe, no código de ética médica, a Objeção de Consciência, mas nestes casos, tem que ter outro médico para dar um encaminhamento. Não pode apenas recusar o procedimento, quando há risco de morte.

O quão distante o Brasil está, nesse momento, de uma legalização do aborto? Há diversas ações no STF questionando as limitações do acesso ao aborto no Brasil e levantamentos dão conta de que somente três ministros [Rosa Weber, Edson Fachin e Luiz Roberto Barroso] votariam a favor de uma legalização do aborto. 

Com certeza, o Poder Judiciário tem um papel fundamental para a gente avançar nessa pauta. Existe uma compreensão dos brasileiros e das brasileiras que as mulheres têm o direito a recorrer nos casos previstos em lei. Agora, a questão da descriminalização do aborto é um debate que a gente teria que enfrentar por conta da necessidade de mudança de cultura, dessa cultura do estupro, que eu estou sempre batendo na tecla dela.

A gente precisa, sim, de um judiciário forte, de uma bancada que não esteja alinhada com os setores religiosos evangélicos, que esteja alinhada com o estado laico, com a nossa Constituição. A gente tem um Estatuto do Nascituro, ou Bolsa Estupro, de autoria de um deputado da bancada religiosa do Congresso, que desde 2007 estão tentando fazer andar na casa.

Esse projeto de lei dispõe sobre a proteção integral do nascituro – a [ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos] Damares [Alves] tentou trazer de volta esse debate – que diz que se uma mulher engravidar após o estupro, ela será incentivada a manter a gestação, pois prevê o pagamento de um benefício. A criança tem direito a uma pensão alimentícia equivalente a um salário mínimo, até que complete 18 anos. Isso, se for identificado o genitor, ou seja, o criminoso passa a ser genitor, do convívio da mulher, dessa criança.

E aí a gente sempre cai na vala de onde começa a vida. E esse discurso é tão perigoso, porque se a gente for tratar a questão da dimensão ética dessa discussão, a gente está falando de semanas do desenvolvimento do feto, a gente está falando de células recém fecundadas e isso não pode significar mais do a vida de seres humanos, mais do que uma criança, que tem sonho, que tem vida, que tem desejo, que tem sentimentos, que tem convívio social.

Edição: Thalita Pires

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