Abdias do Nascimento, um século de luta negra
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Entrevista publicada no BF na semana da Consciência Negra, em 18 de novembro de 2010. Abdias do Nascimento faleceu no dia 24 de maio de 2011, aos 97 anos.
Letras e a atuação social do movimento “ajudam jovens negros a elevar o conceito que têm de si mesmos e de sua comunidade”, diz o ativista de 96 anos, que esteve junto de todas as grandes lutas negras nacionais e internacionais no século XX.
Ao longo de seus 96 anos, Abdias do Nascimento participou de inúmeras passagens importantes das lutas negras do século XX, não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos e na África. Nos anos de 1930 e 1940, ajudou a criar a pioneira FNB (Frente Negra Brasileira). Escritor, ator e artista plástico, teve papel fundamental para a afirmação da cultura de origem africana, como na fundação do Teatro Experimental do Negro, em 1944.
Foi preso pela ditadura Vargas e perseguido após o golpe militar de 1964. Exilado durante 13 anos, nos anos de 1960 e 1970 estabeleceu importante ponte entre o movimento negro brasileiro e as lutas negras internacionais, num momento chave, seja nos EUA, no auge da efervescência do Black Power, ou da África, com a descolonização de vários países. Na redemocratização dos anos 1980, voltou ao país e ajudou a organizar o MNU (Movimento Negro Unificado), fundado em 1978. Foi eleito deputado federal e, depois, chegou a senador pelo PDT, sempre defendendo projetos em benefício da população negra.
Na entrevista a seguir*, respondida através do e-mail por sua esposa, Elisa Larkin Nascimento, com quem fundou o Ipeafro (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros) em 1981, e subscrita por ele, Abdias chama a atenção para a importância de o movimento hip-hop atentar não só para os líderes negros internacionais, como Malcolm X e Martin Luther King, mas também à história do movimento negro no Brasil, para fazer jus à condição de herdeiro dessas lutas.
Bocada Forte (BF): Qual é a importância do Dia Nacional da Consciência Negra?
Abdias do Nascimento: Quando a demanda de se instituir o Dia Nacional da Consciência Negra no dia 20 de novembro surgiu, na década de 1970, eu já costumava dizer que a Lei Áurea não passava de uma mentira cívica. Sua comemoração todo ano fazia parte do coro de auto-elogio que a elite escravocrata fazia em louvor a si mesma no intuito de convencer-se e à população negra desse esbulho conhecido como “democracia racial”.
Por isso o movimento negro caracterizou o dia 13 de maio como dia de reflexão sobre a realidade do racismo no Brasil. O dia 20 de novembro simboliza a resistência dos africanos contra a escravatura. Durante o período colonial, em todo o território nacional, havia quilombos e outras formas de resistência que, em seu conjunto, desestabilizaram a economia mercantil e levaram à abolição da escravatura. Esse é o verdadeiro sentido da luta abolicionista, cujos protagonistas eram os próprios negros. Eles se aliavam a outras forças, mas muitas vezes foram traídos por seus aliados. Mais tarde, entretanto, a visão eurocêntrica da história ergueria os aliados como supostos atores e heróis da Abolição.
A comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra em 20 de novembro tem como objetivo corrigir esse registro histórico e reafirmar a necessidade de continuarmos, nós, os negros, protagonizando a luta contra o racismo que ainda impera neste país.
BF: Como o senhor avalia a questão da “democracia racial” no Brasil de hoje?
Abdias do Nascimento: O racismo no Brasil se caracteriza pela covardia. Ele não se assume, e por isso não tem culpa nem autocrítica. Costumam descrevê-lo como sutil, mas isto é um equívoco. Ele não é nada sutil, pelo contrário, para quem não quer se iludir ele fica escancarado ao olhar mais casual e superficial. O olhar aprofundado só confirma a primeira impressão: os negros estão mesmo nos patamares inferiores, ocupam a base da pirâmide social, e lá sofrem discriminação e rebaixamento de sua auto-estima em razão da cor. No topo da riqueza eles são rechaçados com uma violência que faz doer. Quando não discrimina o negro, a elite dominante o festeja com um paternalismo hipócrita ao passo que apropria e ganha lucros sobre suas criações culturais sem respeitar ou remunerar com dignidade a sua produção.
Os estudos aprofundados dos órgãos oficiais e acadêmicos de pesquisa demonstram desigualdades raciais persistentes que acompanham o desenvolvimento econômico ao longo do século XX e início do XXI com uma fidelidade incrível: à medida que cresce a renda, a educação, o acesso aos bens de consumo, enfim, à medida que aumentam os benefícios econômicos da sociedade em desenvolvimento, a desigualdade racial continua firme.
BF: Qual a importância que o senhor credita ao hip-hop, no Brasil, para o movimento negro e para a população negra em geral? É um movimento herdeiro das lutas que pioneiros como o sr. travaram?
Abdias do Nascimento: Considero o hip-hop um movimento muito importante, sobretudo no aspecto da autoestima, pois as letras de muitas músicas e a atuação social de muitos de seus integrantes ajudam os jovens negros e as jovens negras a elevar o conceito que têm de si mesmos e de sua comunidade.
Entretanto, creio que os protagonistas do hip-hop tenham pouco acesso aos referenciais históricos das lutas anteriores, e nesse sentido sua condição de herdeiros seja um pouco simbólica. Por exemplo, me parece que eles conhecem mais a história do movimento negro nos Estados Unidos, o discurso de Malcolm X e Martin Luther King, e os referenciais do reggae da Jamaica que os fatos e os discursos do movimento negro no Brasil dos séculos XX e XXI. Pode ser que eu esteja equivocado, espero que sim!
BF: Depois de séculos de lutas, hoje vemos uma juventude negra que está conseguindo chegar às universidades, ter mais oportunidades econômicas, formando uma elite intelectual negra. Que conselhos o sr. daria a essa juventude?
Abdias do Nascimento: O Estatuto de Igualdade Racial e todos os outros dispositivos legais, programas governamentais e instituições ou órgãos de governo dedicados às políticas públicas de igualdade racial, por exemplo, são conquistas concretas, frutos da atuação política do movimento negro. Nenhum deles foi uma bênção ou dádiva dos governantes ou políticos, muito ao contrário.
Por exemplo, as mulheres e os homens negros que atuam na área da saúde conseguiram implantar o Programa Nacional de Saúde Integrada da População Negra. Foi o movimento negro que conseguiu implantar programas como esse. Há um universo enorme de ações, iniciativas e instituições em todas as áreas – saúde, cultura, direito, educação, negócios, políticas públicas, organização comunitária – que o movimento negro vem construindo em todo o país, impondo sua presença contra obstáculos enormes.
O conselho que dou para essa juventude é estudar, aprender, conhecer e se preparar para então se engajar: agir, criar, interagir e participar da construção das coisas. Cada um tem seu talento e sua área de interesse. O importante é se colocar a serviço do avanço e dedicar-lhe as suas energias.
Hoje há muito mais sensibilidade para a questão racial nos setores de esquerda do que havia antes. Precisamos nos qualificar, dominar criticamente o discurso hegemônico, mas criar também nosso próprio discurso afirmativo, construtivo, para além da lamentação. Precisamos, sobretudo, nos organizar.
BF: Pensando o caso de Cuba, em específico, como o sr. considera o fato de que um governo dito socialista, num país de população negra tão expressiva, aparentemente não mostra avanços na participação política dos negros?
Abdias do Nascimento: A ideologia racial cubana é irmã gêmea da “democracia racial” brasileira. O ideal da “Cor Cubana” acompanha a constante referência ilusória à suposta cordialidade latina. A sociedade dominante cultiva uma hierarquia social da cor baseada nos valores da supremacia branca. Ao mesmo tempo, a elite majoritariamente branca que ocupa o poder oficializa o auto-elogio de sua suposta generosidade histórica para com os escravizados e os descendentes africanos.
A dinâmica entre o sonho e a realidade do socialismo dá um tom distinto ao questionamento do sistema no que diz respeito à questão racial. Entretanto, não há como negar que os negros não estão presentes no poder político do regime cubano em número proporcional à sua participação na população.
Hoje a demanda por uma abertura democrática do regime não é o discurso só de uma minoria elitista, branca, incrustada em Miami e aliada aos interesses do bloqueio. Há uma oposição de origem humilde, composta em parte por negros e mestiços que apontam processos de exclusão e de desigualdades raciais. Não podemos mais rechaçar essa oposição como um bando de criminosos cuja traição se basearia em mentiras fabricadas pela direita fascistóide.
BF: O Brasil assistiu, nos últimos anos, ao crescimento do movimento negro rural, particularmente o movimento quilombola. Qual a importância da questão da terra para o movimento negro, hoje?
Abdias do Nascimento: Como fruto da mobilização política do movimento negro, a Constituição de 1988 estabeleceu o direito à titulação das terras das comunidades chamadas “remanescentes de quilombos”. O grande argumento para negar o direito de uma comunidade é alegar que ela não tem ou não provou que tem antecedentes históricos que a qualifiquem como remanescente de quilombo.
O processo tem sido muito lento. Alguns anos atrás, a Fundação Palmares publicou um levantamento em que identificou a existência de mais de três mil comunidades quilombolas em todo o país, ressalvando que certamente não conseguiu realizar um levantamento exaustivo ou definitivo. A questão da titulação esbarra, evidentemente, em poderosos interesses contrariados que, no contexto rural, ainda exercem a violência como forma de se impor.
Vale observar, também, que é negra a grande maioria dos sem-terra, hoje organizados e conduzindo uma luta que tem sido definida como um dos mais importantes fenômenos sociais e políticos do século XXI. A importância da terra está fundamentalmente ligada ao fato de que as cidades estão inchadas, inviabilizadas, e não dão conta de oferecer condições de vida dignas à população que já as habita, tendo grande parte dela migrado do interior.
A produção agrícola baseada em unidades pequenas, familiares ou comunitárias é a única solução para o campo e ela precisa, hoje, de subsídios e políticas de Estado para se viabilizar. As comunidades quilombolas fazem parte integral dessa solução e precisam de subsídios específicos e de políticas específicas para o seu desenvolvimento como unidades comunitárias rurais.
*Colaboraram: Joana Moncau, Rafael Gomes e Gabriela Moncau.
**Este texto teve sua versão em espanhol publicada no Desinformemonos.org
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