Análise de “Quebrada Queer” ao olhos (e ouvidos) de outra queer
ESPALHA --->
#RapBR #OrgulhoLGBT | Agora em junho comemoramos o mês do Orgulho LGBTI+ onde celebramos não apenas o fato de nós termos sobrevivido ao sistema até hoje, mas de repensarmos nossa própria militância.
E que grata surpresa não foi no começo dessa semana me deparar com o “Quebrada Queer“, a primeira cypher gay do Brasil e da América Latina feita por LGBT’s. Em apenas 6 minutos de som, Guigo, Murillo Zyess, Harlley, Lucas Boombeat e Tchello Gomez jogam na cara uma série de verdades sobre as LGBT’s no rap (e no Brasil) que estavam entaladas na garganta. Assim o texto de hoje tem como objetivo observar mais atentamente quais são os principais temas trazidos na cypher e a importância deles não apenas para o movimento LGBTI+, mas para o próprio movimento Hip Hop.
Antes de começar, gostaria de compartilhar que assim que me deparei com o link para o som já logo parei o que estava fazendo para prestar total atenção nesse trabalho. E a sensação após ter ouvido “Quebrada Queer“, sendo também queer, foi muito intensa. Me emocionei bastante e após algum tempo, falando sobre esse som com amigas, percebi que a cypher se conectou com as minhas vivências e experiências enquanto gay no Hip Hop: que os 5 MC’s conseguiram dizer tudo o que eu mesma gostaria de ter dito a muito tempo mas que não disse por ter medo de represálias. E conseguiram colocar para fora um por um, cada sapo que nós LGBT’s engolimos diariamente na vida e, por vezes, também no rap. Mas vamos à análise!
Antes de tudo vamos falar sobre o título da cypher: Queer é o termo que usamos na militância LGBTI+ para falar sobre todas as pessoas que não seguem o modelo heterossexual e/ou do binarismo de gênero. Ou seja: pessoas que não se relacionam apenas com outras do gênero oposto ou cuja identidade de gênero não cabe perfeitamente nas definições de “Homem” e “Mulher”. Assim o termo Queer abarca não apenas as Gays, Lésbicas, Bissexuais e Travestis/pessoas Transgênero, mas também heterossexuais que não obedecem exatamente ao que se é esperado de seu gênero (como homens afeminados ou mulheres masculinizadas). Queer é praticamente o bonde todo das travesti, viado, sapatão, genderfluid, trans não-binárias, afeminadas todo mundo junta e misturada.
Abrindo a cypher, Guigo traz dois temas importantíssimos para nós que somos LGBTI+, já começando seus versos dizendo: “Não atura, fecha a firma/ Bonde das femininas/ Que vem de strike à pose/ Direto das Revistas“. E com isso o MC não fala apenas sobre ser gay, mas sobre ser afeminada e influenciada pela cultura pop. E esse trecho nos faz pensar sobre aquilo que chamamos na militância de Passabilidade, ou seja, o quanto uma determinada LGBTI+ é lida ou não como sendo LGBTI+. E essa discussão é importante porque quando a sociedade aceita LGBTI+ normalmente são pessoas COM passabilidade: a gay e a lésbica que não dão muita pinta, a travesti totalmente feminina ou o homem trans totalmente masculino, enfim, pessoas passáveis. E o que Guigo está dizendo é que quem está chegando para botar o terror é o “bonde das femininas”, ou seja, o bonde dos homens gays sem passabilidade, afeminadas e, por conta disso, mais rejeitadas pela sociedade, porém agora com a possibilidade de agora se expressarem.
O segundo grande tema que traz em sua parte diz respeito às pessoas trans: “Alice Guel gritou mandando um ‘Deus é Travesti’/ Segura o queixo/ Que esse trecho é feito pra engolir/ Mas se o efeito causou medo é hora de fugir“. “Deus é Travesti” é um som da MC Alice Guel (ela própria travesti), parte de seu álbum “Alice no País que Mais Mata Travesti“. Aproveitando essa referência, Guigo aproveita seu espaço para lembrar ao mundo que as travestis e pessoas trans são as que mais sofrem dentro da sigla LGBTI+ e ao mesmo tempo que elas estão ocupando espaços e se fazendo ouvir bem afrontosas.
A parte do Murillo Zyes também já chega pesadíssima falando sobre uma série de dificuldades que vivemos no dia-a-dia e também sobre o homofobia que vivemos no próprio cenário rap, mas já anuncia que cada vez mais vamos ser problema na vida de muita gente e que fazemos questão de ocupar nossos espaços de direito, inclusive na cultura Hip Hop.
Por um lado, Murillo fala sobre todos os conflitos e sentimentos de solidão que nós LGBTI+ vivemos, principalmente quando nos assumimos, mas também do quanto esse sofrimento nos transforma em guerreiros, e aproveita para cutucar a delicada questão da Intolerância Religiosa principalmente através de fiéis de religiões cristãs que reproduzem discursos de ódio contra nós: “Vida cinzenta seguida de um longo inverno/ Muito bem preenchida somente com amor materno/ Entrando em paz com todos meus sentimentos internos/ Desvio de alguns crentes que dizem que vou pro inferno/ É que um leão por dia me fez um guerreiro“. Por outro lado, o MC diz que nada disso o impedirá de seguir seu caminho e sua carreira “Subestimado desde meu primeiro verso/ Eles disfarçam bem/ São tipo lobo em pele de cordeiro/ Mas to atento pra opressor eu não disperso (…) MC’s de verdade não desejam/ Sociedade sem diversidade“.
E finaliza relembrando as LGBTI+ que vieram antes dele: “Vai ter bicha no rap sim/ E eu nem sou o pioneiro/ (…) Nóis tá aqui por cada bicha com a vida interrompida/ Por causa do homofobia, ódio, intolerância/ Resistimos no dia a dia pra poder chegar/ O dia que prevaleça respeito, igualdade e esperança”.
Harlley aproveita sua parte na cypher para tocar em temas delicados: a relação com a família e o “sair do armário” (se assumir LGBTI+) – “Cê trombou com as bicha errada e agora vai ter que escutar/ Esse é só o primeiro desabafo que tá entrando pra história/ E com certeza meu pai não ia se orgulhar/ E mesmo assim eu vou falar/ (…) Mesmo ameaçado serei cada vez mais viado/ Quebrando armários, extermínio à normatividade”.
E dentro disso, também coloca uma perspectiva sobre seu papel no rap – que não é o de confrontar os héteros/cisgêneros que sempre irão julgá-lo (“Não há rola nesse mundo que nos proíba de ocupar/ Não há mano nessa cena que tente nos silenciar (…)/ Eles vão me julgar/ Sempre vão me julgar/ Mas nas minhas crises nenhum deles vai me abraçar“). Harlley defende que seu papel no rap é o de representar outras LGBTI+ (“As mona unida pro combate olha no que deu“) especialmente para as LGBTI+ negras (“Revolução, bicha preta se amando de verdade”).
E é importante fazer uma pontuação sobre a importância de nos lembrarmos das LGBTI+ Negras. Por mais que nós sejamos oprimidas diariamente seja pela homofobia, seja pela transfobia, infelizmente existem posicionamentos racistas e preconceituosos com pessoas pobres mesmo dentro do movimento LGBTI+. E assim como as mulheres negras, muitos LGBTI+ negros tem dificuldades na hora de acharem parceiros(as) românticos(as) com quem possam se relacionar – muitas vezes sendo considerados apenas por terem a neca grande – o que tem gerado entre outras coisas a Solidão do Homem Negro Gay. Então Harlley aproveita sua parte da cypher para nos lembrar de olharmos para esses recortes de classe e cor/raça dentro do nossa própria comunidade LGBTI+.
Na penúltima parte de “Quebrada Queer“, o MC Lucas Boombeat inicia dizendo sobre a dificuldade que é colocar tanto sofrimento em versos: “De onde eu vim, é fome, medo de ficar na mesma/ Não caber na própria casa sai pro mundo/ E não cabe no mundo/ Não cabe em verso cada tapa, momentos, fraqueza/ Muitos anos de revolta desse jogo sujo“. E aproveita para relembrar a quantidade de caras héteros (dentro e fora do rap) que foram homofóbicos e intencionalmente ou não causaram sofrimento em LGBTI+, mas que passaram pano para eles “Anos passaram panos, passaram pros seus vacilo/ Momento propício, raro e claro e não espere elogio”.
Também trazendo a temática de ser bicha preta, aproveita para criticar as White People Problems – “problemas de pessoas brancas”: uma ironia que brinca com pessoas brancas, principalmente de classes média e alta normalmente heterossexuais e cisgêneros que muitas vezes dizem sofrer muito na vida, o que é chama atenção na comparação com o sofrimento de pessoas negras, pessoas pobres e/ou pessoas LGBTI+ – “Estamos no mapa e não somos a caça/ De cara com a morte/ Seus bando de white people problems/ Cês não me comovem (…)/ Eu quero é que se foda“.
Por fim, Lucas Boombeat aproveita para dizer que não precisa que ninguém fale por ele: “Minha vida sou eu que canto/ Nossa vivência quem sabe é nóis/ (…) Ninguém me dá voz, eu já tenho voz“.
Tchelo Gomez finaliza a cypher praticamento colocando o dedo na ferida, rodando e jogando sal em cima. Com rimas ácidas, fala tudo que o incomoda e joga na cara, começando com críticas a homofóbicos que procuram sexo gay “Então bota pra fuder/ Cê quer meter gostoso/ Mas se enruste atrás do altar“. E essa rima é muito pertinente na medida em que grande parte das LGBTI+ já foram abordadas por homens hétero casados e religiosos que procuram um “sexo sigiloso”, “sem compromisso”. São homens que no dia-a-dia tem posturas homofóbicas e que reforçam estereótipos de gênero, mas que quando ninguém vê, procuram sexo com outros homens e/ou travestis. Tudo isso por conta de uma tradição também religiosa e cristã que considera as LGBTI+ pecadoras – já pensou quanto sofrimento seria evitado se essas religiões ao invés de reproduzirem discursos de ódio, acolhessem as LGBTI+?
Na sequência ironiza com amigos de colégio que o rejeitavam por ser diferente, mas que hoje o elogiam por seu sucesso profissional: “Na escola ceis zoavam/ Hoje ceis batem palma/ (…) Só vendo as bill/ Crescendo, estourando a mil/ E ocupando esse Brasil/ Ué, cade você? Sumiu”.
No fim problematiza a Cura Gay, um projeto de lei que buscava autorizar “tratamentos psicológicos” para “curar” LGBTI+. Apesar de desde sempre o Conselho Federal de Psicologia (CFP) dizer que não é possível “curar” uma sexualidade ou identidade de gênero – inclusive pelo fato de de nenhuma das duas coisas ser uma doença mental – muitos membros da bancada evangélica no Congresso Nacional tentaram quebrar uma das cláusulas do CFP que explicitamente proibia esse tipo de “tratamento”. Tchelo também aproveita para lembrar que ser LGBTI+ não é só dar close de bunita na buatchy não – é sinônimo de luta, inclusive de sobrevivência muitas vezes: “Amor não é doença, é cura/ Não é só close, é luta/ Então, vê se me escuta/ Aceita, atura ou surta“.
Fica até difícil acrescentar algo logo após tanto tiro, porrada e bomba dessas bichas maravilhosas e afrontosíssimas. Críticas à homofobia religiosa, discussões sobre sair do armário e sobre ser LGBTI+ negro – nada disso escapou à cypher. Mas, principalmente MUITA auto-afirmação e muita postura de fortalecimento entre nós mesmas.
Para mim, além de tudo que foi dito por eles, essa autoafirmação é essencial. Eu mesma, e acredito que a maioria das LGBTI+, já se sentiu obrigada a ser simpática, sociável, e tentou não mostrar muito que era diferente porque “ah, a pessoa já me aceita sendo diferente, não preciso botar o pé na lama”. E esse é um sentimento errado! E nós sabemos disso, mas ao mesmo tempo temos dificuldade de ir contra ele. Seja porque precisamos lidar com nossos familiares, com colegas de trabalho ou faculdade – nós sempre acabamos não saindo completamente do armário por medo de sermos rejeitadas se formos 100% nós mesmas. E isso também no rap, onde temos dificuldades de nos assumir por medo de sofrer retaliações (ou até mesmo agressões).
E frente a isso, a grande mensagem dos 5 MC’s do “Quebrada Queer” na minha interpretação pessoal é exatamente essa: “Aceite-se sendo quem você é, não tenha receio sendo você mesma, não busque aprovação de quem te odeia – fortaleça-se, corra pelo seu e corra pelas suas”.
Na minha perspectiva, o peso do “Quebrada Queer” não é apenas mostrar para o cenário hip hop que nós existimos e estamos aqui também produzindo conteúdos de qualidade. É um grito de liberdade, uma convocatória para que as LGBTI+ saiam das sombras, se assumam e não tenham medo de se expressar. E, para o movimento LGBTI+ é uma tentativa de aproximação com pessoas que normalmente sentem receio ou pouca motivação de colar no hip hop – seja pelos discursos por vezes preconceituosas, seja por muitos discursos que também por vezes não encontram eco em nossas experiências de vida. Enfim: é uma tentativa de criar pontes entre o Hip Hop e as LGBTI+ .
De resto, deixo meu agradecimento a esses 5 MC’s e toda a equipe envolvida na produção da música e do clipe e torço para que muitos resultados positivos para todas e todos (monas, minas, manas e manos) saiam disso!
2 comments