Analisando a “Divina Tragédia” de Arkos MC
ESPALHA --->
#Análise #RapBR | Anderson Silva Dias, mais conhecido como Arkos, é MC de Carapicuíba (zona metropolitana de São Paulo). Libriano, com apenas 19 aninhos, o que me chama atenção em suas composições é sua sensibilidade ao descrever suas emoções e as referências, muitas delas históricas, que insere em suas letras, ora amorosas, ora críticas e reflexivas. E isso tudo vem de encontro à sua formação: está finalizando sua graduação em Biomedicina e, apesar de toda dureza e complexidade técnica do curso, nada disso tira sua criatividade e sua delicadeza lírica.
Conheci Arkos através de um amigo em comum, o MC Barão U, e logo que nos conhecemos saímos os três para tomar uma cerveja e, entre comentários e reflexões sobre rap e séries do Netflix, me apresentou seu novo projeto: gravar uma mixtape inspirada nos 7 Pecados Capitais. Desde então nos falamos com alguma regularidade, fui acompanhando todas as suas guias e em 12 de Junho foi apresentado ao mundo seu trampo de estreia “Divina Comédia”.
A mixtape tem 7 faixas que contam com as participações de seus colegas da crew The Pragma Gang (Barão U, Biro e Fequettia – os dois últimos formando a dupla Merakki) e Ghost MC.
CAPA E TÍTULO
“Divina Tragédia” é uma inspiração direta no poema épico “Divina Comédia” de Dante Alighieri no século XIV e que conta a trajetória do próprio Dante no mundo espiritual. Começando no Inferno, ele e seu guia Virgílio atravessam o Purgatório e terminam sua viajem no Paraíso. Uma frase clássica do livro é o portal em frente à entrada do Inferno que diz “Deixai, ò vós que entrais, toda a esperança”. Enquanto no título original, “comédia” é uma referência aos homens “comuns”, ou seja, homens que não eram divindades ou da nobreza; Arkos se apropria da referência usando a palavra “Tragédia”. Dentro da cultura greco-romana, tragédia era o oposto da comédia na medida em que eram textos que, aí sim, falavam sobre a nobreza e/ou sobre as divindades.
Na capa, Arkos aparece com um cigarro aceso, na ponta da cama ao lado de um maço de cigarros, uma garrafa de cerveja, uma caneta e seu caderno de rimas.
Unindo os dois grupos de referências, é possível dizer que a “Divina Tragédia”, ao mesmo tempo em que fala sobre pessoas “de destaque” (seguindo a simbologia greco-romana), fala também sobre os vícios cotidianos. Assim, o MC parece falar muito mais sobre uma realidade humana do que dentro de algum recorte, ainda que os recortes sociais fiquem bem explícitos ao longo das faixas.
FAIXA POR FAIXA
A primeira faixa – “Pós-Baile” – conta com a participação do Merakki. Em beat trapfunk, apresenta sua versão sobre luxúria. De acordo com o dicionário, “comportamento desregrado com relação aos prazeres do sexo; lascívia”. Partindo disso, os três MC’s buscam representar o que seria o pecado da luxúria nos dias de hoje e o fazem contando sobre cenas sexuais embaladas pelo funk e maconha.
“Ragnarok” é a segunda faixa, que conta com a participação de Ghost MC (Paradox 33). Na mitologia nórdica, o Ragnarok seria o fim dos tempos – um evento apocalíptico que provocaria a morte de diversos deuses (incluindo Odin, Thor e Loki) que resultaria no renascimento do universo [aliás, o universo Marvel recria de uma maneira bem interessante essa história no quadrinho “Thor: Ragnarok”]. Na letra, Arkos retrata a si mesmo como um herói sobrevivente da guerra do dia-a-dia, onde o “fim dos tempos” é representado por diversos mensageiros: a PM racista, a falta de empatia das pessoas, políticos corruptos. Ghost entra na faixa falando sobre a cena do rap e apresentando várias punchlines. Partindo da metáfora, pode-se entender que tanta luta e versos ácidos pelos MC’s visa uma reconstrução, um renascimento da cena.
“Espelhos”, terceira faixa, conta com participação do Barão U que começa rimando usando a metáfora de Narciso. Na mitologia greco-romana, Narciso era um herói filho de um Deus com uma Ninfa e despertava paixões tanto por homens quanto por mulheres e, ao rejeitar o amor de outra ninfa, foi amaldiçoado pela deusa Nêmesis a se apaixonar pelo reflexo de sua própria imagem na lagoa, onde deitou-se e definhou até morrer. Tal é o peso da história que na psicanálise, Freud aproveitou a metáfora para criar os conceitos de “narcisismo primário” e “narcisismo secundário “ para definir a relação afetiva que o indivíduo tem consigo mesmo. Na letra, a referência para falar sobre o pecado capital da “soberba”, contando histórias de pessoas egocentradas. No refrão, os MC’S lançam “espelho, espelho meu/ existe alguém mais belo que Eu?/ Se ele quebrar isso fará te mim um ateu?” mostrando o quanto a soberba provoca um auto-endeusamento perverso (também por isso a referência ao “espelho, espelho meu, existe alguém mais bela que eu?” – frase clássica da Rainha Má, vilã do desenho A Branca de Neve). Arkos já entra problematizando a questão da soberba, dizendo explicitamente “humildade e orgulho seguem a mesma trilha/ os dois despertam ira/ os dois são mentira” defendendo que ao mesmo tempo que se endeusar-se gera uma mentira, não há por outro lado uma “humildade real”, um comportamento totalmente desprendido sem que exista um desejo oculto de receber algo com isso. Arkos assim questiona o “altruísmo verdadeiro”.
A quarta faixa “Lágrimas de Freya” conta com a participação de Fequettia (do duo Merakki). Na antiga religião germânica, Freya é a deusa do amor, fertilidade, beleza, riqueza, magia, guerra e morte. Esposa de Odur (deus responsável pelo início do dia e da claridade), muitas lendas giram em torno de seu marido ter desaparecido e, ao procurar por ele, chorava e cada uma de suas lágrimas ao tocar a terra se transformava em ouro. Na letra, a referência é utilizada para questionar o pecado capital da “avareza”, contando sobre situações onde é muito mais recompensador você contar seu sucesso a partir do alcance que você tem na vida das pessoas do que no retorno financeiro de seu trabalho (especialmente no rap) e de como isso tudo se relaciona com a aventura que é largar tudo para viver de rap. Em um sentido geral, pode-se entender que assim como Freya chorava de tristeza e criava ouro, muitos MC’s cantam sobre vivências difíceis para criar não só ouro (retorno financeiro) como inspiração para o público.
Em “Game do Vinícius”, senti uma grande inspiração na faixa “Sk8 do Matheus” de Froid. Já iniciando com “e é bem difícil sustentar meus vícios/ mas é mais difícil não ter um game igual do Vinícius/ Eu to ficando louco quase indo pro hospício/ mas que se foda eu só queria um game igual do Vinícius”. Remontando o pecado da “inveja”, Arkos fala sobre suas experiências enquanto criança e adolescente sobre não ter o videogame, o radinho e o baralho iguais de Vinícius. Fica nítido nas entrelinhas o quanto essas experiências são perpassadas pela desigualdade social vivida pelo MC que sempre teve que ralar mais para ter aquilo que queria, mas mesmo assim se sentia sempre “dois passos atrás” do que de Vinícius. Assim, o MC também coloca em cheque o que é inveja: o quanto invejar algo de alguém é um reflexo do caráter individual de alguém e o quanto é produto de uma estrutura social desigual?
A faixa título da mixtape, “Divina Tragédia” conta também com a participação de Fequettia. Em um beat introspectivo, o MC apresenta seu lado mais interior contando sobre suas motivações nas composições e no rap de maneira geral. Cansado de apenas sobreviver no dia-a-dia, conta que está passando por uma fase de mudança interna, correndo atrás de seus sonhos.
A faixa final, “Agradecimentos[Obrigado]” é onde o MC agrade a todas e todos que de alguma maneira o inspiraram ou o ajudaram em sua trajetória e na gravação dessa mixtape, da maneira como o rap noventista costumava fazer.
BALANÇO GERAL
De maneira geral, o álbum traz uma temática não totalmente inédita, mas muito pouco explorada tanto dentro do rap BR quanto gringo e explora referências de maneira criativa e sensível tanto direta quanto indiretamente. Com uma história que se inicia no sexo do “Pós-Baile”, passa pela ira, soberba, avareza, inveja e finaliza com uma mudança do personagem principal e com agradecimentos; o MC traz um storytelling no modelo literário digno de nota.
Isso tudo se potencializa considerando que essa é a primeira mixtape de Arkos o que chama atenção na medida em que a maioria das primeiras mixtapes de artistas independentes contam de forma direta suas experiências de vida. Fugir do óbvio é algo interessante.
Como ponto negativo, eu particularmente ressaltaria a possibilidade de entrar mais a fundo em algumas metáforas, de se aprofundar ainda mais no pacote de simbologia que cada uma dessas referências utilizadas abre.
Por fim, achei um trabalho bem interessante. Uma mixtape ótima para se ouvir no final da tarde, relaxado e absorvendo todas as emoções e aventuras relatadas.
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