Opinião: Repensar a crítica no hip hop | Por Arthur Moura
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Pensemos a crítica na cultura Hip Hop… Uma questão importante a ser discutida e pensada pelos camaradas do rap e por nós que fazemos parte da cultura hip hop. Aqui vai uma brevíssima contribuição.
Eu discuti muito isso (a crítica) no meu trabalho de dissertação de mestrado que concluí ano passado na FFP-UERJ, onde trabalhei com a questão da mercantilização do rap. Como o rap no Rio e SP principalmente se tornou uma mercadoria? Como podemos entender esse processo? Qual foi a função dos agentes da cultura nesse processo? E que era considerado crítica e o que agora tornou-se esse conceito? Na ausência de um esforço crítico aliado ao método histórico o que se compromete, segundo o historiador Marc Bloch, são “as grandes tentativas de interpretação”.
O que eu percebo é que a galera confunde as coisas dizendo coisas como ‘você está se portando como um juiz’, quando na verdade a crítica é parte de um esforço de compreensão da realidade
A crítica, portanto, serve não para neutralizar a emancipação, mas sim potencializar as ações através da superação de contradições que emperram o avanço da luta social e da coletivização dos espaços. O “crítico” não é o juiz que julga, mas aquele que compreende e interpreta. O que eu percebo é que a galera confunde as coisas dizendo coisas como “você está se portando como um juiz”, quando na verdade a crítica é parte de um esforço de compreensão da realidade. Mas tem a crítica radical desestabiliza, que incomoda e gera desagrados. Por isso, o rap tornou-se pouco a pouco acrítico, abandonando alguns pressupostos básicos.
Primeiramente é preciso repensar o conceito de crítica, pois ela foi sorrateiramente relegada ao campo negativo na cultura hip hop, principalmente por rappers do Rio de Janeiro e São Paulo, sendo por isso vista como recalque e elemento a ser evitado para a boa condução do campo das amizades que formam redes de poder longe de pretensões éticas ou formam uma ética a partir de valores de mercado.
Isso tudo faz com que a cultura se referencie por elementos individuais e não coletivos enfraquecendo o seu espírito. Consome-se determinado artista e não determinado grupo. Os grupos fragmentaram-se muitas vezes tendo seus componentes incorporados aos sistemas de mercado forjando a sua própria alienação. Nisso as abordagens dos temas caíram de qualidade já que o âmbito da política se fez valer em nível do privado, blindado desde seu lugar a um elemento inofensivo à ordem.
Por isso para que a crítica possa existir nesses conformes ela tem que se manifestar como forma-mercadoria. É o que podemos chamar de crítica recuada. Esta é uma crítica que já está presente no senso comum. Para constatar isso, basta ver, por exemplo, a enxurrada de videoclipes que aproveitou as revoltas de junho de 2013 e que agora se mostram em suas posições igualmente acríticas e por vezes reacionárias e antiéticas.
A crítica deve priorizar o conjunto dos elementos e não um artista em especial, pois este apenas reproduz em pequena escala (mas que nem por isso deixa de produzir efeitos) o conjunto de valores que por nós deve ser repensado e combatido. Devemos pensar a crítica em nível de sociedade. Produzir uma crítica ao hip hop é por isso uma tarefa coletiva.
É preciso produzir modificações reais no proceder, que recoloquem os fundamentos da cultura como força motriz das lutas sociais das quais o rap vem se distanciando e para isso devemos resgatar o que de fato vem a ser o compromisso no hip hop
A crítica neste caso serve para reorientar a cultura hip hop. Não basta somente situar o hip hop em meio ao conjunto de contradições produzidos pela incessante luta entre as classes antagônicas. É preciso produzir modificações reais no proceder, que recoloquem os fundamentos da cultura como força motriz das lutas sociais das quais o rap vem se distanciando e para isso devemos resgatar o que de fato vem a ser o compromisso no hip hop. O compromisso, conceito muito utilizado por quase todos que compõe a cultura hip hop, é um compromisso social, orgânico, transformador, subversivo. É o compromisso que nos assegura que a ruptura é não só possível, mas desejável e imprescindível de realizar-se como prática.
A prática transformadora, popular e revolucionária é o verdadeiro compromisso do hip hop. A leitura crítica obviamente diverge do compromisso com os negócios e empresas, com a ascensão social e suas ordens de prestígio e poder, do compromisso consigo mesmo ou no máximo com o seu próprio grupo ou quando muito como um puro mecanismo retórico. O compromisso é com a continuidade da luta e para essa continuidade ser possível é necessária uma análise que nos ofereça uma leitura do estado atual de coisas, para que possamos nos situar no campo, neste caso a cultura hip hop.
O compromisso é não só com a construção de novos referenciais e valores, mas também com a rejeição e destruição dos que aí estão como o machismo, o fetichismo da mercadoria
O compromisso se faz perante sua capacidade ou não em enfrentar contradições que impossibilitam a sua liberdade criativa e de organização. O compromisso, portanto, é com a crítica social e com o novo proceder resultado do enfrentamento com tais questões. O compromisso é não só com a construção de novos referenciais e valores, mas também com a rejeição e destruição dos que aí estão, como o machismo (um dos principais mecanismos de domínio na cultura hip hop muito acobertado e dissimulado na relação entre os próprios artistas), o fetichismo da mercadoria, etc.
O compromisso é a favor da popularização dos elementos da cultura e não com a construção e ultra-valorização de líderes, sejam eles MCs ou não, que em última instância se apresentam como “formadores de opinião”.
Bom, o compromisso com o mercado fez com que a crítica passasse a ser algo muito mal visto pela galera. É notável. A crítica muitas vezes é confundida pelas motivações de disputas internas que se dão no interior da cultura, que geram por exemplo as chamadas diss, que nada tem a ver com crítica. Isso fez com que o rap se encerrasse no espetáculo midiático e dos prestígios que surgem aqui e ali e que demandam certas conciliações também.
Aí se criou a figura do “falador”, ou seja, do indesejado. “Me deixa aqui, deixa eu ganhar o meu dinheiro, sai pra lá…” coisas do tipo. Bom, acho que é por aí…
*Arthur Moura é cineasta,
graduado em História pela
Universidade Federal Fluminense,
mestrando em Educação pela
Universidade Estadual do
Rio de Janeiro.
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