Opinião: Rap e cinema, a história do som | Por Arthur Moura
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Em setembro de 2000, Emílio Domingos, Bianca Brandão e Luisa Pitanga lançaram um documentário como trabalho final de curso no IFCS – UFRJ sobre a cena do rap em diversos locais do Rio de Janeiro. O filme, um curta de 30 minutos, se chama A Palavra que me Leva Além estórias do hip hop carioca. Numa cena marcante Shackal do grupo Três Pretos passeia pela sua área na Vila Pinheirinho no Complexo do Alemão e observa as disparidades entre o seu bairro e o bairro vizinho observando que quando falta luz as luzes do outro bairro ficam normalmente acesas numa clara distinção social entre os que têm e os que não têm. Emílio me disse que filmaram com uma câmera pesada que pertencia ao departamento, não tinha lá boa resolução, mas de toda forma concretizaram o projeto e assim podemos ter acesso ao passado ainda que em diversos fragmentos montados. O registro mostra eventos como o Hip Hop Santa Marta que rola até hoje com DJs, break dance, MCs, grupos e grafiteiros da cidade. Mostra grupos e MCs como Anfetaminas, Damas do Gueto, Inumanos, Marcelo D2, Def Yuri, Três Pretos e muitos outros. O filme registra eventos como Fundisom na Fundição Progresso organizado por Aori e Gerard Miranda. Gerard tem muita importância pra cena do Rio e João Pessoa por ter organizado o CIC (Centro Interativo de Circo) e de lá ter surgido sementes proficientes para cena do rap. Enfim, mostra uma cena muito potente, saindo dos anos 90, ainda em busca de um projeto próprio que desse vazão às suas manifestações e garantisse a sua sobrevivência. O mercado ainda estava distante, mas nem por isso a cena deixava de crescer e aprimorar suas produções e a se complexificar. O caráter dessa complexidade são as muitas cenas que se formaram principalmente com o advento das rodas de rima anos depois.
Mais tarde, em 2009, Emílio e Cavi Borges lançaram o documentário L.A.P.A, já com uma estrutura material melhor. O filme acompanha alguns personagens do rap carioca, suas dificuldades e dramas também como forma de propor um balanço sobre as coisas. Chapadão, Funkero (àquela época Funk), Aori, Marechal, Black Alien, batalhas, a rua, a sobrevivência; a clássica festa Zoeira que rolou no fim dos anos 90 numa sinuca na Lapa organizado por Elza Cohen agora funciona uma igreja evangélica com um bazar, mostra o filme. Ainda que esses personagens estivessem ali num trabalho sistemático no rap, seja no campo da produção ou organização de eventos, a maioria já gozava de uma certa representatividade na cena e organizavam-se na produção de eventos, formavam seus aparatos ideológicos e infinitos outros agenciamentos a maioria focada no mercado. Em paralelo em 2009 lancei o documentário De Repente: poetas de rua, que filmei de 2005 a 2009 e que registrou basicamente a cena do rap na Lapa através de muitos personagens improvisadores misturando tudo isso com o repente. A cena registrada foi outra, mais underground, diria. No CIC já brotavam alguns frutos importantes para a cena carioca.
Há filmes biográficos como é o caso de Mr. Niterói a Lírica Bereta de Ton Gadioli sobre a vida de Black Alien. Apesar do filme cair numa espécie de idealização do artista é também um registro importante para a cena, já que oferece uma leitura sobre um dos principais MCs do Rio de Janeiro e do Brasil porque não. O filme foi todo feito de forma independente e seu lançamento no DCE da UFF lotou a sala e foi bem significativo para a época.
Em São Paulo, Pedro Gomes lançou Freestyle um estilo de vida (2008) tratando do improviso, da sobrevivência e outros aspectos da cena da cidade. Gomes também lançou em 2014 o curta Marco Zero do Hip Hop contando um pouco da história da cultura nas estações metrô e praças da cidade, das rodas de rima e do break dance. Recentemente, Pedro Fávero lançou o documentário O Rap pelo Rap, um longa-metragem que trata de questões como a mídia, o significado do rap ou o que ele representa para os envolvidos com a cultura, a crítica ao rap por ainda se prender a elementos demasiado obtusos, segundo os rappers, para o momento atual, enfim, questões que envolvem o universo do rap e da sociedade em geral. A ideia de que o rap é um movimento, por exemplo, é refutada no filme, sendo colocada em descrédito por alguns depoentes. O rap é música… mas talvez tenha se tornado música, por isso devemos pesquisar os fundamentos da cultura e seu processo histórico. O ideal, pensamos tal como apresenta Roberto Camargos em seu livro Rap e Política percepções da vida social brasileira, é pensar o rap em sua totalidade: “como música, como composição textual, como um produto e como uma prática de tempo e contexto específicos”.
Para a maioria da cena a ideia de protesto é algo que já se desgastou transformando-se numa espécie de reclamação de caráter negativo. “O discurso de protesto tem que existir sim, mas tem que falar de coisa boa também, sabe. O povo da favela já tá cansado de ouvir as mesmas coisas”, afirma um dos personagens do filme O Rap pelo Rap. Esse discurso é a porta de entrada para legitimar toda forma de mercado e a consequente inserção do rap nesse âmbito despolitizando debates cruciais, como por exemplo a questão da mídia. “Falta a gente industrializar essa coisa de vender a música, de vender o nosso visual ‘streetware’. Aquela coisa de fazer o fim lucrativo gerar em torno de nós mesmos que cultuamos essa cultura Hip Hop. E pra isso acontecer a gente tem que estar a cada dia que passa em todos os meios midiáticos possíveis. Seja ele jornal impresso, revista, a mídia da rede social, eu digo a internet, tecnologia avançada, a mídia televisiva, a mídia radiofônica e o corpo a corpo com as pessoas mais do que nunca faz com que isso venha a se expandir”, diz Sombra. A indústria aparece aí como elemento que pode até mesmo salvar vidas e não o contrário como geralmente é a regra.
Se antes a burguesia via o rap como uma “cultura de bacilos” hoje o próprio rap esforça-se para convencer o outro lado de que também pode contemplar outras classes num discurso mais cordial, conciliador. Essa integração não fazia parte da agenda do rap (e este aspecto podemos notar claramente no livro de Rafael Lopes de Sousa O Movimento Hip Hop a anti-cordialidade da república dos manos e a estética da violência) justamente por ser um estilo musical de origem negra, ou seja “uma prática do canto falado, costume rotineiro dos negros da África ocidental” (Rafael Lopes de Sousa). E de onde vem esse antagonismo? Sobre isso diz Giordano Barbin em Errâncias Racionais: “Oriunda, por um lado, da falência histórica do projeto de integração social e de expansão da cidadania mediante o assalariamento, e, por outro, do esvaziamento da politicidade da relação sociedade civil e Estado, em grande parte convertida na gestão de ‘políticas de segurança’, sobrevivendo à violência privada do ‘mundo do crime’ e à violência pública dos aparelhos de Estado, a gramática política do rap não fala a língua da origem institucional legal, dos movimentos, partidos, eleições, órgãos estatais, tampouco a da sociabilidade violenta em processo de intensificação. Ao contrário, apropria-se de ambas, sem que coincida totalmente com nenhuma delas”.
De 2009 até 2016 filmei o longa-metragem O Som do Tempo, documentário que produzi em parceria com Gabriel Moreno, continuando os registros da cena do rap no Rio de Janeiro. Este filme, com previsão de lançamento para o primeiro semestre de 2017, é também uma produção independente. Foram dezenas de horas filmadas que se resumiu a uma montagem de uma hora e quarenta minutos que fala sobre a história do rap no Rio, as rodas de rima, a questão de gênero, as festas, os beatmakers e produtores, DJs, mercado, a questão do negro e os antagonismos da cena. O que eu e Moreno propomos de certa forma é um filme-síntese, se isso é possível!
As produções cinematográficas independentes mesmo na ausência de grandes mercados não chegam a sucumbir às demandas históricas do capital em transformar tudo que se produz em valor de venda, de acumulação de lucros que na maioria das vezes dispõem de certos elementos que sequer respiram as mesmas necessidades de quem de fato produz qualquer manifestação artística. O cinema é uma grande máquina de negócios. Mas é também uma força revolucionária. O cinema é a linguagem que produz desejos e necessidades ampliando o sentido e a experiência da vida, realidades e perspectivas, mas que se depara diante da barbárie e das impossibilidades de se concretizar na tela suas produções devido a realidade material da maioria dos produtores e diretores, pois de fato o que em última instância se criam nas redes de mercado são realidades perfeitas para o seu consumo transformando o rap num movimento estético destituído do seu valor histórico e contraditório. A produção independente não escapa a esses ventos e quando sente sua brisa convidativa insiste em construir aquilo que muitos chamam mercado independente em detrimento do apoio mútuo. Esse mercado independente transformou os MCs em empresários desejosos de fazer parte do jogo e da dinâmica de poder do capital. Então todo aquele que se depara em construir narrativas está imerso ao mar revolto das ondas do controle empresarial, sedativos aos olhos da arte singular. O cinema que estamos construindo no rap ainda forma seus alicerces, mas já deu contribuições importantes para não se perder de vista a memória da cultura, fator imprescindível para qualquer avanço e debate sobre e a sociedade em geral.
*Arthur Moura é cineasta,
graduado em História pela
Universidade Federal Fluminense,
mestrando em Educação pela
Universidade Estadual do
Rio de Janeiro.
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