Opinião: A alienação dos elementos do hip hop | Por Arthur Moura
ESPALHA --->
Engana-se aquele que pensa que não há organização na cultura hip hop. As organizações, de caráter amplo e heterogêneo, funcionam como células que impulsionam sob diversos ângulos e forças distintas a direção e os valores que formam a cultura. Ao mesmo tempo isso que denominamos cultura é uma das muitas organizações e expressões que compõe a sociedade. A cultura ao mesmo tempo que produz é produzida, forjada de acordo com a mente daqueles que a pensam e do tempo e lugar que habitam. Essas células são os estúdios de produção e gravação, os eventos e organizações, sound systems, crews e grupos de rap. Todas essas forças e elementos devem ser olhados de muito perto e relacionados entre si.
A partir da organização, grupos, canais de comunicação e estúdios se formaram e os eventos ganharam vida. No Rio de Janeiro, grandes eventos marcaram a cultura. O Prêmio Hutuz, Hip Hop Santa Marta, eventos na CDD (Cidade de Deus), CIC (Centro Interativo de Circo, neste caso o núcleo de vários eventos), Fundisom, Batalha do Real, Liga dos MCs, são alguns dos eventos organizados, principalmente por elementos da cena (ainda não vamos entrar aqui num debate acerca do caráter desses eventos). Boa parte dos eventos preservou, cada qual a sua forma, a interação entre elementos da cultura hip hop. No CIC, por exemplo, que rolava na Fundição Progresso, tinha aula de break, graffiti, etc. No entanto, observa-se que aos poucos os elementos da cultura hip hop distanciaram-se no sentido de buscar cada qual a sua independência, algumas vezes institucionalizando-se. É preciso observar os efeitos dessa separação.
O que preponderou do início dos anos 2000 até o presente momento foi o espetáculo das batalhas. As batalhas têm um papel muito mais complexo nos eventos e na cena de uma forma geral. Elas são espaços de formação que requerem o contato e a vivência direta nas ruas, em rodas de freestyle, desafios e apresentações. Grande parte dos MCs que se destacaram no Rio de Janeiro no início passou por alguma batalha. Funkero, Beleza, Gil, Zé Bolin, MV Hemp, Aori, Negra Rê, Bebel du Gueto, Dom Negrone, Dropê Mais Sinistro, Nissin e muitos outros são apenas alguns exemplos. E o mais importante, cada MC representa a sua área mostrando na diversidade a força do rap na cidade. Essa diversidade foi possível graças à organização, já que com o advento das rodas e a ocupação dos espaços públicos houve um crescimento da cena. Esses espaços de formação têm por função principal multiplicar a quantidade de MCs na cena, assim como oferecer locais de lazer para os jovens, crianças e adultos.
A batalha também serve para diferenciar os iniciantes dos veteranos. O máximo que um MC antigo pode vir a ser nas batalhas é jurado ou apresentador. No geral a simples presença de algum MC muito representativo da cena já cumpre função importante no evento. Essa presença física,ao mesmo tempo que busca desconstruir a ideia de ídolo e fã, tornando ambas as presenças orgânicas e relativamente próximas, também afirma uma distância pelo uso que se faz da imagem do MC que geralmente é fetichizada (elemento necessário ao próprio funcionamento do capitalismo) ou dos ritos que participam essas figuras marcantes. São figuras de prestígio.
No entanto, não há como negar o desgaste das batalhas no espaço-tempo. O uso competitivo estimulou a formação de MCs igualmente competitivos e adequados à ordem do capital. Quando nos perguntamos “o que houve com o hip hop? Por que o rap tornou-se tão fútil e ligeiro?”, devemos ter em mente as contradições históricas que estão em jogo. Isso indica para algo apontado lá atrás que foi a consequente separação dos elementos, um dos problemas centrais a ser analisado.
A supervalorização do MC gerou o estranhamento deste elemento aos demais, a partir do momento que transformou-se em líder, empreendedor, ídolo e formador de opinião. Sua relevância se dá agora muito mais às demandas de mercado secundarizando ou superficializando o seu papel na cultura e na sociedade. O MC virou uma espécie de pelego, elemento que faz a ponte entre o capital e a cultura. Mas tudo isso se deu e se dá a partir de uma relação e um processo social. Separar os elementos da cultura permitiu a entrada mais fácil por forças de mercado. O viés empreendedor, característica geral dos grupos de rap e de boa parte dos MCs, canaliza essa competitividade ao mercado estimulando a propaganda desses valores em letras e discursos, ideologias e mercadorias. Aproveitou-se o que há de vendável na revolta apontando a direção aos mercados, transformando o rap numa mercadoria, em fetiche e identidade.
Temos observado certas práticas, por parte de alguns MCs, no que diz respeito a uma condição que almejam, mas nem por isso usufruem de fato, que é postar fotos ou fazer vídeos com uma certa quantidade de dinheiro na mão ostentando uma diferença com os demais. Esse desejo de fazer parte de certas relações de poder, qual seja o game, inverte todo o campo de relação social. A natureza do fetichismo social, como bem coloca Reinaldo Carcanholo em Capital: essência e aparência,
“como forma de objetividade social é ocultar/obnubilar a raiz social das coisas, isto é, ‘negar’ – no plano da consciência social – o próprio homem que trabalha. Uma sociedade fetichizada – como a sociedade burguesa – tende a ocultar o fundamento ontológico do ser social capitalista: o trabalho humano e a forma social estranhada que o constitui (a relação-capital)”.
Como uma espécie de representante da cena, o MC é o elemento mais utilizado para fazer propaganda de consumo para grandes empresas, cerveja, bancos, cosméticos, roupas, etc. Emicida, Tássia Reis, Karol Conka, MV Bill, Marcelo D2, muitos e muitos outros vendem suas imagens para grandes corporações, estabelecendo uma relação de consumo e espetáculo e isso não lhes parece ser uma contradição e sim uma espécie de vantagem. Não é mais uma contradição envolver-se ou produzir propaganda para os capitalistas, pois claramente não há mais o interesse na luta anti-capitalista por parte da hegemonia. Isso fez com que a construção de um certo discurso reformista ou progressista substituísse o que antes seria impossível comportar tal revolta nos limites da social democracia e dos rígidos e seletivos parâmetros da democracia burguesa e sua jurisdição punitiva aos pobres. Em paralelo a isso tudo, há o lugar do público e do MC cada qual portando função definida na cena refletindo consequentemente nas organizações e na forma como elas se dão. O público é o consumidor, aquele que faz a economia girar.
Abaixo, MV Bill em comercial de TV para a marca Nextel
O MC, que lá atrás fazia freestyle nas ruas, pouco sabia sobre a vida, mas já agia no instinto da sobrevivência, regra dos ambientes com escassez, e que depois venceu as principais batalhas, geralmente negro e pobre, revoltado contra o sistema, que passou a se destacar na cena, ganhar respeito e prestígio, público e dinheiro, destacou-se como empreendedor; fez milagre com pouco, trazendo os principais aliados junto, formando verdadeiras empresas, são agora homens de negócio. Cantam a opressão na medida que a vendem, supervalorizam suas imagens que passam a ser marcas, portanto, passível de consumo e por fim dispõe à cena, mas também aos bancos ou qualquer tipo de mercadoria à venda. Estes são os MCs na sociedade fetichista. Essa primeira reflexão nos coloca o desafio de construir possíveis saídas. Uma delas, com o prejuízo do estranhamento entre os elementos da cultura, é reconstruir essa relação no sentido de se fortalecer e reintegrar a cultura às contradições de classe politizando as identidades não as deixando à deriva no mar pós-moderno.
*Arthur Moura é cineasta,
graduado em História pela
Universidade Federal Fluminense,
mestrando em Educação pela
Universidade Estadual do
Rio de Janeiro.
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