BOCADA FORTE | O Rap brasileiro em tempos de mudança
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Para quem leva a sério a Cultura de Rua, falar sobre Rap e Hip Hop nos dias atuais é uma atividade que envolve uma série de fatores e complexidades. Para quem não leva, sempre tem um bom release ali em sua caixa de entrada que resume tudo entre o disco mais aguardado, o lançamento histórico, o recorte do recorte e o artista mais inovador do universo. “Deixando a profundidade de lado”, sigamos a ideia por aqui.
Como registrado por Felipe Oliveira Campos, no livro “Rap, Cultura e Política” (2020), o novo status do Rap – que se desenvolveu a partir dos anos 2000 – traz a estética de superação empreendedora ligada ao conceito de ancestralidade negra e aponta o impacto das tecnologias digitais alinhadas à mudança no gerenciamento das carreiras artísticas.
Sabemos que parte da caminhada para a nova condição do rap (tema estudado pela filósofa Daniela Vieira dos Santos) foi feita durante os governos do presidente Lula (2003 até 2006, e de 2007 até 2011) e da presidenta Dilma (2011 até 2016). O cenário socioeconômico proporcionado pelas políticas públicas do Partido dos Trabalhadores causou mudanças na vida das pessoas das periferias, mas, apesar do maior crédito e acesso aos bens de consumo, a ascensão econômica de parte dos artistas do rap não foi algo que aconteceu tão rápido.
“De 2002 a 2010 passamos por uma crise profunda […] Eu vi o rap subir de novo de 2010 pra frente. Nesses últimos quatro anos foi o grande lance. Cresceu mais do que nos últimos vinte anos que antecederam”, afirma Mano Brown em entrevista à Revista Cult (2014). O rapper também acredita que a ascensão do canto falado se deu graças à visão profissional que estava sendo instaurada na época.
Acompanhando o Hip Hop e a mudança no cenário, reportagem do Bocada Forte, publicada em abril de 2011, mostrou a movimentação de MCs e DJs na divulgação dos seus trabalhos. Outras sementes eram plantadas e alguns artistas também tentavam colher os frutos de uma nova forma de encarar e fazer o Rap. O estilo “self-made-man”, além de fazer parte das letras dos MCs, também foi para as ruas.
“O mercado alternativo é um lugar onde o artista deixa de esperar que as moedas caiam sobre seu chapéu, para virar um empreendedor. É onde você sente que a arte é viva e crua sem influência, sem atravessadores. É direto do agricultor, para a mesa do consumidor”, afirmou Cesar Hostil – o artista atualmente comanda a gravadora independente QGHostil.
A reportagem também registrou as dificuldades do baiano MC Correria, que hoje é CEO na gravadora independente Divisão de Lucro. Durante a divulgação e venda do seu disco no centro de São Paulo, o artista entrou em conflito com seguranças e lojistas da Galeria 24 de Maio.
Dois anos após o lançamento da mixtape “Pra quem já Mordeu um Cachorro por Comida, até que eu Cheguei Longe…”, do rapper Emicida, Correria era mais um exemplo de mudança no mercado: um jovem com seus vinte e poucos anos gravando, duplicando e vendendo seus CDs numa cidade que tinha a Galeria 24 de Maio como referência no comércio de discos de Rap e o programa Espaço Rap, da rádio 105 FM, como o programa de maior audiência na divulgação do canto falado. O MC seguia por outros caminhos.
Já Nouve, outro rapper baiano que lançou à época o EP “Respirando Arte”, mostrou seu trampo na rua e fez articulações com lojistas. “Eu faço o esquema de vendas nos shows, alguns amigos estão fortalecendo na revenda também como: Loja mar Vermelho, em Salvador, Loja Colex Oficial, em São Paulo, o MC e produtor Cabes, em Curitiba, e Durap, organizador da Batalha da Escadaria, no Recife”, disse. A maior dificuldade do rapper era não conseguir enviar o material para muitos lugares.
A reportagem fechou com o cearense Don L falando sobre as etapas do processo de reconhecimento do artista nessa nova forma que estava em desenvolvimento: “depois dos CDs e o som estourado, vem a imprensa. Depois da imprensa, você arruma uma equipe boa para fazer sua assessoria e os shows aparecem. Muitos dos nossos shows foram contratados pelos próprios contatos da rapa que vendia o CD em outras regiões”.
Ainda de acordo com o livro “Rap, Cultura e Política”, diferentemente do que era propagado no Rap militante dos anos 1990, o movimento dos jovens artistas periféricos é feito de outra maneira, “os significados de trabalho e organização não se referem respectivamente à formação de classe e política na forma de movimento social reivindicatório por direitos de cidadania. O sentido que esses termos passam a assumir é o da forma-empresa.”
Outro livro que aborda as transformações no Rap brasileiro é o “Se Liga No Som” (2015), de Ricardo Teperman, lançado um ano depois que a plataforma Spotify desembarcou no Brasil. O autor afirma que esse pensamento empreendedor é uma característica da atual geração de rappers. “Há uma relação descomplexada com a ideia de mercado, a autopromoção e a grande mídia”, conclui.
Mais de vinte anos depois, sua recente condição e posição de destaque na cena musical brasileira apresentam mudanças estéticas e nos discursos dos artistas que, em muitas vezes, impõem ingredientes e fórmulas para que, no mínimo, o artista tenha aceitação no cenário e, no máximo, conquiste o sucesso, incluindo vendas de shows, views, likes, plays nas plataformas digitais e viralização de seus conteúdos produzidos nas redes sociais.
Blogs, sites, páginas e perfis nas redes sociais das chamadas mídias de Rap reproduzem e repercutem diariamente uma parcela da movimentação dos artistas e produtores da mais jovem geração do Rap brasileiro.
Além da ascensão econômica evidente em uma parcela do Rap brasileiro, também é notória a presença de mais mulheres e integrantes da comunidade LGBTQIA+ na cena, que mescla agora gêneros como trap, drill, funk, grime e, com uma menor intensidade, o boom bap. A aproximação do Rap com estes gêneros mais populares, seja na temática ou nos timbres, ampliou o público do que antes era mais conhecido como canto falado e trouxe mais adeptos com suas influências coletivas e pessoais para uma nova era do Rap nacional.
O que esta era representa? Quais são seus temas, inquietações, continuidades e rupturas?
Continuidades e rupturas…Falaremos sobre essas paradas no próximo texto. O livro “Hip Hop a Lápis” (2005), de Toni C., será um dos nossos guias. O acervo do Bocada Forte também.
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