Omnira: ‘Somos um grupo resiliente, causamos incômodo e não vamos parar mesmo com vários motivos contra nós’
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Entrevista originalmente publicada no dia 27 de junho de 2018
Na metade do mês de junho, mais precisamente no dia 17/6/2018, o grupo paulistano Omnira (formado pelas MC’s Juliana Sete, Janaína D’Nótria e Paty Treze e pelo DJ Neew – também colaborador do Bocada Forte) lançou seu novo clipe “7×1” com participação da MC Luiza Rampazzo (do grupo 38 Mil Manos). A data, inclusive, foi decisiva: a estréia da seleção brasileira na Copa do Mundo.
Em uma música bem emocionante, as MC’s falam sobre tudo aquilo que a população oprimida no Brasil vive subjetivamente e objetivamente. Falando sobre situações desde a exploração infantil até a discriminação religiosa, as MC’s a todo momento apontam os impactos materiais e psicológicos dessas vivências em uma abordagem história, social e poética.
Em uma entrevista exclusiva para o Bocada Forte, conversamos com o Omnira e com a Luíza Rampazzo sobre a construção das letras, as referências do videoclipe, o beat e sobre os impactos do rap militante (principalmente tendo como foco a população negra e periférica) nesse momento atual de conservadorismo dentro do rap e da cultura Hip Hop. Confira abaixo o clipe “7×1” e a entrevista:
Bocada Forte: Como surgiu a ideia do “7×1”?
Janaína D’Notria: Somos atentas aos infortúnios e mazelas do nosso povo. A ideia surgiu após uma reunião e algumas letras que já tínhamos em mente retratando alguns acontecimentos políticos, históricos e sociais do Brasil. Esse momento de Copa foi propício na medida em que as pessoas não são “patriotas” pelos motivos reais. Fizemos essa junção com a nossa mana Luiza Rampazzo que também tem muito a dizer. Fizemos esse protesto durante esse cenário de futebol, ofuscando as eleições e os problemas sociais que vivemos.
BF: De onde veio a ideia de chamar a Luiza Rampazzo para somar no som?
Paty Treze: Conhecemos a Luiza já tem um tempo. Uma pessoa que gostamos e admiramos o trabalho. E nesse tempo em que a conhecemos já tínhamos ideia de podermos trabalhar algum som juntos, tanto que já temos uma colaboração porém não lançada. E quando saiu a letra do “7×1” e tínhamos também essa vontade de poder soltar um trabalho juntas e aproveitamos o momento. Luiza é pesada demais nas idéias acabou que tudo ornou,nossas ideias batem então por quê não juntá-las?
“Nós resistimos todos os dias: lutamos contra o racismo, machismo e homofobia embutidos na arte – o que é totalmente contraditório em um movimento criado para dar voz às minorias, aceitar e abraçar quem nos odeia”
BF: Ainda sobre a letra, vocês soltaram vários versos bem intensos e realistas sobre nossas lutas e nosso cotidiano de uma forma geral. Me chamaram atenção os versos “Se eu tô bem? Eu só tô indo” da Juh, o “A quem interessar nos proteja” da Jana e o “Sete dias da semana, sangue e suor” da Paty. Cada uma, a sua maneira, retrata bem o sentimento de nós, que sofremos alguma opressão, no sentido de trabalharmos pra caralho, darmos o nossos melhor e mesmo assim estaremos passando vários venenos no dia a dia, sem alguém que de fato nos proteja. Vocês poderiam comentar mais sobre isso?
Juliana Sete: Eu falo muito da empatia na minha música porque o brasil tem uma fama no exterior e aqui mesmo as pessoas gostam de pontuar que somos calorosos, empáticos e generosos, quando na verdade não. Aliás, pode até ser que sim, mas bem seletiva. Eu inicio essa frase dizendo que se uma andorinha não faz verão os tucanos racham o bico. Exatamente explanando isso de cada um por si e ainda almejando revolução.
DJ Neew: Pensei que quando você falou dos “tucanos racham bico” era referência ao partido tucano [PSDB] que governa o Estado de São Paulo a 3 décadas.
Juliana: É referência sim. Mas a gente fica apático por que uma andorinha só não faz verão (não muda nada) enquanto isso os tucanos (PSDB) estão no poder do Estado e Federal nos fudendo.
Janaína: Essa frase, “A quem interessar nos proteja”, coloquei no sentido de sermos colonizados, explorados em vários âmbitos: físico, mental, emocional e religioso. A ideia de que um líder ou uma divindade se interesse e nos guarde do mal.
Paty Treze: “Sete dias da semana, sangue e suor” – Pagamos veneno, essa é a realidade de muitos que vivem aqui. O sistema tira o nosso couro todos os dias, sem folga, sem trégua, apenas tiram. Lutamos pra sobreviver a isso 365 dias, sangramos e suamos pra cacete e ainda nunca é o suficiente.
BF: Aproveitando que a Luiza está aqui uma das linhas pesadas que você lança é a “pensa que nosso crime foi sair pobre dessas placentas”. E também mostra essa realidade de que a gente tá sempre no veneno por coisas das quais não temos a menor responsabilidade sobre (ser negro, ser mulher, ser pobre, ser LGBT, enfim). Você poderia comentar um pouco sobre isso?
Luíza Rampazzo: Eu acho que a intenção desse verso é claramente essa. Quem ouve já consegue identificar que as minorias já nascem com um alvo na testa, como se fosse mais uma parte do corpo. E o fato do povo periférico ser periférico por si só já nos torna um problema.
BF: DJ Neew chega sempre pesadão nos beats. Poderia contar como foi a criação do beat e a produção musical do “7×1”?
DJ Neew: O instrumental original vinha apenas com percussão afro ainda na pegada dos beats do álbum “Grito de Liberdade”, os batuques são um trecho da música “Kiriê” da cantora Georgette. Como a letra da música era algo mais pesado acrescentei um trecho da música “Charade” do Henry Mancini pra dar um ar de dramaticidade e combinar com a ideia da letra que elas desenvolveram.
BF: Sobre o clipe um dos conjuntos de cena são com vocês quatro usando a camiseta da seleção de maneiras diferentes. A Juliana aparece com ela no pescoço com alguém sempre a puxando remetendo a um enforcamento de certa maneira. Janaína aparece com ela tapando os olhos. Luíza aparece vestindo ela tapando todo o rosto. E Paty usa ela tapando a boca. Qual a simbologia por detrás disso?
Luíza: A minha simbologia é o crime desse lado de cá da ponte. Onde não usamos ternos e gravatas. Um trecho que ficou muito latente pra mim nessa parte é um do Sant em que ele diz: “Odeio meu país, amo minha terra. Não confunda meu desejo de paz, com ausência de guerra”. E o bagulho é guerra pra ter paz! Enquanto eu gravava o take, as pessoas olhavam assustadas de dentro de seus carros e até mesmo nos ônibus. Isso que sou mulher e branca, tendo consciência dos meus privilégios. Sinto que se fosse um homem negro gravando o mesmo take, no mesmo local, a abordagem já teria sido completamente diferente. E pra quem quis pensar mais a fundo, gostei de deixar essa reflexão nas entrelinhas. O crime é um medo latente e diário onde é envolto por milhares de camadas sociais. Eu tenho uma formação onde estudei um pouco de criminologia e quis me aprofundar. Como é devastadora a forma em que o meio em que se vive influencia no ser. E nada mais intrínseco que isso que fala por si só.
Juliana: A minha parte tem uma mão segurando a camiseta,referenciando a como essa orquestra toda nossa sufoca diariamente.
Janaína: Simboliza a cegueira, como é fácil sermos manipulados e manobrados quando cegados pelo Estado. Não enxergamos os acontecimentos reais da nossa sociedade, então veneramos um futebol, uma FIFA que não nos enriquecem em nada, líderes políticos e religiosos que nos levam de monte no carrinho de mão, presas fáceis…
Paty: Tapam nossas bocas e por muitas vezes isso é aceito. Tem muita coisa acontecendo, é a história do pão e circo. Brasileiros esquecem as coisas muito, muito facilmente. Nos dão o entretenimento em meio a uma porrada de coisas acontecendo e as pessoas já se calam e nem percebem.
BF: Nas cenas que vocês gravaram dentro de um espaço abandonado vocês aparecem com um batom que me remeteu à maquiagem do Coringa do Heath Ledger em “Batman Cavaleiro das Trevas”. Que é um personagem que ocupa um papel de disseminador do caos. Isso me faz pensar em como vocês se apropriaram dessa referência. É algo no sentido de retratar esse caos que vivemos no dia a dia? Ou um papel de balançar é escancarar o sistema opressor onde vivemos mas que, ao mesmo tempo, acabamos por muitas vezes aceitando de uma maneira passiva? Como vocês enxergam isso?
Juliana: Eu vejo como somos ao mesmo tempo palhaços e ao mesmo tempo sombrios na questão de disseminação do caos mesmo como você disse. A gente quis trazer uma referência de horror de deformidade. De nada padrão de beleza como um clipe beyonciano sabe? Mesclada às cenas de semi nudes que remete a um pouco disso também.
DJ Neew: Alias, Juliana você aparece de lingerie justamente na parte da música que diz “e as crianças? Devolvam a infância delas”. Foi alguma referência ou tô brisando?
Juliana: Eu tive a infância marcada e interrompida por um abuso sexual que já divulguei em outro momento em uma música. Eu fui sexualizada muito cedo. E sim isso pode ser lido como referência também.
Luíza: Exatamente a transmissão do caos e da bagunça, daquela que é criada principalmente dentro da gente e que começa a refletir, digamos, como nossa insanidade. Todo dia é um “7×1” diferente. É o que mais condiz com a vida que cada um de nós levamos e até onde achamos que vamos aguentar. O sistema adoece nossa mente todo dia.
“Quem ouve já consegue identificar que as minorias já nascem com um alvo na testa, como se fosse mais uma parte do corpo. E o fato do povo periférico ser periférico por si só já nos torna um problema.”
BF: Sobre os seminudes, como foi a ideia de colocar essas cenas no clipe? Para mim passou uma mensagem de luta, de “desnudar” a realidade é/ou de enfrentar as situações do dia a dia “de peito aberto”. Como vocês pensaram isso?
Luíza: O nosso corpo tem que começar a ser visto com mais respeito e como ele é. Nossas maiores lutas, estão nas linhas da “7×1” então a nossa exigência de respeito quanto nossa liberdade, não poderia deixar de estar latente, mesmo que de forma subjetiva.
Paty: Nossos corpos também são luta e resistência – desde sempre vistos de uma forma negativa,a questão é que eles são livres e em meio uma letra cheia de protesto também trazemos isso pra protestar.
BF: Hoje a gente enxerga o rap em um movimento de conservadorismo: cada vez mais branco, burguês, cristão e, desde sempre, bastante masculino/cisgênero e heterossexual. Na visão de vocês, qual papel de um grupo como Omnira com 3 minas pretas e um mano preto que, com nome de origem Yorubá, resgatam a história e relatam o cotidiano do povo preto e periférico?
Janaína: O Hip Hop tem cor, tem origem e história negra. Todos precisam entender e saber seu lugar de fala. Nunca seremos contra pessoas brancas no rap, mas exigimos o respeito e conhecimento da nossa cultura para fazer parte dela de verdade. Nós resistimos todos os dias: lutamos contra o racismo, machismo e homofobia embutidos na arte – o que é totalmente contraditório em um movimento criado para dar voz às minorias, aceitar e abraçar quem nos odeia – mas como você citou, Arthur, somos um grupo resiliente. Causamos incômodo e não vamos parar mesmo com vários motivos contra nós.
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