Golden Era e Millennium Hip-Hop, a eterna treta por legitimidade
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Jornalistas e blogueiros falam sobre um debate que ultrapassa gerações
O millennials do hip-hop amam quando um artista do rap expressa em suas rimas que não tem tempo para se preocupar com a história da cultura porque está escrevendo sua própria história. Suas ideias representam o espírito jovem e a atualidade, muitos dirão.
Por outro lado, grande parte dos artistas e do público que curte o rap dos anos 1990 (ou o rap atual que se inspira nos 90) sente o sabor da vingança quando ouvem declarações sobre a falta de compromisso e criatividade dos membros do “millennium hip-hop”.
Quem nunca presenciou discussões calorosas nas redes sociais sobre as diferenças entre a velha e a nova escola, rap e trap, letras politizadas e falta de compromisso?
A real é que cada lado defende o que acredita ser o rap e o hip-hop. Esta treta está na mira de jornalistas e blogueiros de dentro e de fora da cultura de rua. Artigos e reportagens colocam luzes sobre o assunto, que gera diferentes reações.
“Toda geração se imagina mais inteligente do que a anterior e mais sábia do que a que vem depois dela”, disse o escritor George Orwell. Esta frase, atribuída ao autor do livro “1984”, foi citada em 2016 na reportagem sobre rap “Now They Do What They Want”, do jornalista Micah Peters, do site The Ringer.
“No rap, há uma importância colocada no respeito aos mais velhos […] Os jovens levam as coisas para a frente, e os mais velhos exigem reverência, não querem ser esquecidos. Assim continua a luta eterna sobre o que está arruinando o hip-hop”, diz Peters.
Esta discussão – que move a cena e apresenta o conflito entre gerações – é feita de modo intenso nos EUA. Craig Jenkins, do site Vice (EUA), também abordou o tema. No título da reportagem, o autor diz: “Todo mundo é estúpido: Por que os fãs de rap jovens e velhos precisam superar a lacuna de geração do hip-hop.”
Ao olhar para os dois lados do problema, Jenkins termina seu texto com uma análise: “É narcisismo jogar a glória de seus próprios heróis sobre os jovens que não nasceram nas circunstâncias que criaram a cultura que você defende, que estão simplesmente realizando o principal negócio de toda nova geração de criadores: deformar, dobrar, e quebrar o cânone, para fazer o seu próprio.”
O jornalista da Vice acredita que também é narcisismo pensar que você não tem nada a aprender com o passado. Jenkins conclui: “Todos são culpados de insolência juvenil. Todos nós chegamos à cultura tropeçando no escuro. Seria conveniente que todos considerassem essa arrogância nas relações entre linhas de idade, para deixar de lado nossas convicções experienciais e tentar ver o mundo através dos olhos uns dos outros.”
Stic.man, do lendário e politizado grupo Dead Prez, também fala desta ruptura provocada pelas novas gerações, em qualquer época. “Todos os jovens sempre querem descobrir sua própria arte naquele estágio rebelde. São jovens expressando suas esperanças, sonhos, frustrações, aspirações em uma língua rebelde, tentando esculpir sua própria experiência de vida em seus próprios termos”, comenta o rapper no site Atlanta Black Star.
Aqui no Brasil, Kamau e Black Alien abordaram recentemente em seus trabalhos a questão da experiência, maturidade e vivência através do tempo. A participação de Negra Li no single “Vish”, produzido por Devastoprod, mostra uma ligação que muitos dos novos reis do trap não fazem: “Meus ancestrais traficados no Atlântico… E ainda querem a gente pacífico”, canta a rapper.
Nos EUA, país que tem história e economia diferentes daqui, especialistas em rap e jornalistas falam do efeito do tempo na obra dos artistas.
“Ao contrário dos rappers conscientes do passado, o rapper maduro de hoje ressurgiu esclarecido – celebrando o conhecimento de si mesmo com uma ênfase maior na construção como comunidade e capacitando seus ouvintes a melhorar suas próprias condições através de honestidade e orientação. O rapper esclarecido de hoje não apenas tem a influência, a experiência vivida e a plataforma para lançar luz sobre a condição humana, mas também a perspicácia comercial e o poder financeiro para desencadear mudanças reais nas comunidades marginalizadas”, diz Noelle Perkins, jornalista do Hot New Hip-Hop.
Em 2017, a veterana Queen Latifah fez uma crítica ao rap contemporâneo. A rapper disse que estes artistas não abordam os sérios problemas que atualmente afetam a sociedade como sua geração fez. “Eles pegam leve. Tipo, quando as coisas estão acontecendo no mundo, como Donald Trump ou eleições… Essas eram as coisas que a gente detonava”, diz ela. “Eu não estou julgando de nenhuma maneira. Eu só estou dizendo que é sempre bom ter ambos os lados”, conclui a cantora.
A arte feita pelos rappers atuais também tem suas especificidades. Para Danilo Cruz, editor do blog Oganpazan, a atual geração do rap é mais bem informada, melhor elaborada tecnicamente. “Parte dos artistas atuais incorpora melhor pautas importantes, pois possui mais mulheres e LGBTS produzindo. Sobretudo, esta geração é mais diversa”, afirma o blogueiro.
Danilo Cruz diz que sua geração é o agora e que o rap está em sua melhor fase. “O agora é feito de pessoas das antigas e artistas da velha e da nova escola. Por isso mesmo, quem continua produzindo colabora para esse que é o melhor momento do rap no país”, conclui.
Para Noise D, veterano comunicador do Bocada Forte, a essência pode estar sendo diluída.
“A música rap atual evoluiu muito. Mas evoluiu em termos de tecnologia e qualidade técnica. O que vejo hoje é uma grande parcela de artistas promovendo trabalhos de ótima qualidade, mas esquecendo de carregar consigo e em suas músicas os valores que as gerações passadas lutaram tanto para promover e manter“.
O editor do BF também destaca as mudanças de postura e discurso dos artistas. “No passado a gente reclamava da falta de condições, equipamentos e apoio, mas tinha postura e sintonia com a cultura hip hop. Hoje em dia vejo muitos artistas com total suporte esquecendo do porque estão onde estão”, diz.
Ana Rosa, responsável pelo site Noticiário Periférico, relembra debates antigos: “Acho que a mesma treta e conservadorismo que o underground passou pra quebrar o que o gangsta rap foi pra gente da geração 2000, o trap tem enfrentado de alguma forma e, guardado as especificidades, vemos que a tecnologia empoderou muita gente talentosa na geração atual, mas também deu voz a um monte de gente que não tem nada a dizer”, afirma a editora, que é apaixonada pelo rap dos anos 1990 e 2000.
Por outro lado, Ana Rosa também destaca a ousadia da geração atual. “São várias quebras de paradigmas essenciais que essa geração atual não teve medo de meter o pé na porta e quebrar, aprenderam isso com alguém, as pautas acompanharam a sociedade, mas o embate está aí.”
De uma época anterior ao “momento rap” de Rosa, Noise D acredita que outros temas poderiam ser abordados pelos novos rappers. “Não diria que minha geração do rap era ou é melhor que a atual. No entanto, preferia ver os artistas atuais trocando toda a materialidade por mais atitude e postura no seu dia a dia e em sua música“, afirma o veterano do BF.
A editora do Noticiário Periférico aborda as questões de continuidade e a ruptura do rap com serenidade, mas não abandona a chamada Golden Era: “Se a gente entender essas diferenças, consegue entender a importância e dimensão da estrada pavimentada e quem pavimentou, e mantém o caminho bom pra se andar. Nós, os mais antigos, não desrespeitamos as modernizações que vierem. Não existe melhor ou pior de um modo geral. Acho que eu prefiro ouvir os anos 90 porque é uma fonte inesgotável, todos esses anos de pesquisa e sempre ouço coisas novas e revolucionárias, já naquela época.”
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