Sinceridade, inovação e reflexão | Murillo Zyess fala sobre seu novo álbum, ‘Subconsciente’
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Por Arthur Venturi Vasen
Fotos vxldinei
#RapBR #RapLGBT | Da ira à descontração, Murillo Zyess expõe com uma sinceridade própria a intimidade de sua mente e coração em seu novo álbum – “Subconsciente”. O MC paulistano, agora com 26 anos, apresenta um disco versátil onde não poupa canetadas ásperas contra a LGBTfobia, o machismo e o racismo, mas também temas que vão do amor ao sexo e a valorização da música como instrumento de salvação.
“Subconsciente” foi lançado na primeira semana de julho de 2020 e é o terceiro trabalho do MC, dando sequência ao seu EP solo “No Recinto” (2018) e álbum “S.E.R.” (2019), esse último através do coletivo que integra, Quebrada Queer.
Em entrevista exclusiva, Murillo aborda com franqueza detalhes sobre a construção de seu álbum e das vivências que inspiração cada uma de suas faixas. O MC analisa, ainda, os impactos da cypher “Quebrada Queer” (2018) em sua carreira e no movimento Hip Hop, e fala sobre produções suas que estão por vir.
A entrevista foi realizada em 15/07/2020 e está disponível também no formato podcast AQUI.
A CONSTRUÇÃO DE “SUBCONSCIENTE”
“Subconsciente” foi lançado em julho de 2020, em meio ao isolamento social em função da pandemia de Covid-19. Apesar do imprevisto, o álbum já estava em processo de finalização quando a quarentena no Brasil teve início: “Consegui terminar as gravações antes de começar o isolamento social. Ele [o álbum] estava mais em processo de mixagem e masterização. Já tinha feito as fotos de divulgação, então não tinha porque segurar. Sabia também que não ia conseguir (risos). Estava muito ansioso, tinha muito anseio para que as pessoas conhecessem esse trabalho novo”, diz o artista.
Sem deixar a militância de lado, é possível perceber desde a primeira audição que o álbum traz para o primeiro plano sentimentos e vivências de Murillo que já estavam presentes em trabalhos anteriores, mas em menor proporção: “Quis inovar em tudo, praticamente: em sonoridade, temas, visual, tudo. Já tinha abordado alguns temas em “No Recinto“, que ampliei no Quebrada Queer, então não quis trazer uma mesma estética e temática nesse trampo. Esse álbum é muito do meu cotidiano, do meu dia-a-dia, são coisas muito presentes e atuais.
Quis explorar novos caminhos. Ainda falando da minha realidade, questionando coisas que questionei nos trampos anteriores, mas fazendo isso de outras formas. Falo muito sobre insegurança, mas também flerto com uma segurança que projeto em mim para ter. Falo também sobre meu lazer, sobre coisas que me entretém e me divertem, sobre os rolês que faço e explorei essa pegada mais descontraída, celebrativa. Falo sobre flertes e sedução, mas também sobre romance e sobre medos”.
O próprio título, “Subconsciente”, faz referência ao processo de construção do álbum onde o MC permitiu-se voltar ao passado e explorar ainda mais suas habilidades artísticas. “Todas as referências eu trouxe de resgates de memórias da minha adolescência, de minhas referências musicais, estéticas, de identidade. Resgatei tudo isso e trouxe para meu momento atual. Tudo isso foi acontecendo de forma subconsciente. Explorei muito minha capacidade artística. Ousei cantar mais, criar melodias diferentes. Quero ousar ainda mais no visual com coreografia – porque sinto que o trabalho pede isso e é algo muito meu, de coisas que absorvi na adolescência e não desenvolvi ainda. Quero uma identidade visual mais desenvolvida e mais composta, mais artística. Tudo isso foi sendo desenvolvido no meu subconsciente”.
NOVOS ANTAGONISTAS
Ainda que o único foco do álbum não seja a militância, Murillo traz versos agressivos: “essa característica foi uma das coisas que eu pensei em deixar nos projetos anteriores, mas acabou fluindo nas primeiras faixas mais naturalmente e eu acatei até por ser minha realidade, minha sinceridade, minha honestidade com a minha arte”.
E para além das opressões comumente relatadas, surgem críticas ao meio artístico: “pessoas que acabamos trombando sempre, em todos os lugares onde vamos, pessoas que não querem te ver bem ou até querem te ver bem, mas nunca melhor que elas. Enfim, existe isso em todas as áreas, na música também. Preferi falar disso de forma mais ampla que não direcionasse a uma pessoa específica porque não é uma pessoa específica, sabe? É até mais assertivo fazer isso de forma ampla para pegar em todo mundo que tem que pegar”.
E parte dessas críticas se dirigem à competitividade entre artistas LGBTTQIA+. Para Murillo, essa competitividade é resultado de nossa pequena representatividade e espaço de modo que lutamos entre nós em busca de destaque.
“Infelizmente, estamos acostumado a ter um único espaço. É muito cultural do LGBTQ ter uma única pessoa representando todo mundo e cria-se essa competição. Devem pensar que ‘se colocarem o holofote em outra pessoa, vou perder o meu’, é o que eu imagino. Então acaba-se criando essa competição, essas coisas que no final só atrasam, só dificulta a ampliação de nosso espaço e chegar em mais lugares.
Quis falar sobre isso, falar que estou mais atento com essas coisas e que ganhei essa malícia de estar mais ligeiro com todas as pessoas e de perder essa ingenuidade, essa falta de conhecimento e de experiência artística que não tive nos primeiros trabalhos. Quis pontuar isso. Espero que isso sirva para outras pessoas, que elas entendam o que quis dizer e absorvam da melhor forma.
Não tem como uma pessoa só representar os LGBTQ, porque nossas vivências são muito amplas, nossas narrativas são muito amplas. Cada um de nós tem uma. A chavinha que tem que virar na cabeça de cada uma dessas pessoas é a de aceitar que não é em uma competição. Precisamos ter mais essa união.”
Outras críticas, descritas especialmente na faixa “Sanguessuga”, vem da experiência de Murillo perceber que algumas pessoas tentaram se aproveitar dele durante o hype da cypher Quebrada Queer e que, pouco tempo depois, sentiu essas pessoas desaparecendo. Para o MC, essa experiência reflete uma dificuldade de se compreender a estética da periferia para além de um único padrão.
“Senti isso em grande parte do público, da mídia principalmente. A cypher do Quebrada Queer tem uma glamourização: estamos com um figurino impecável, o que foi muito falado inclusive, e a qualidade do trampo foi muito elogiada. No nome nós trazemos “Quebrada Queer” e muitas pessoas questionaram se a gente era mesmo da quebrada. Acho isso péssimo, eles não conseguirem associar toda essa glamourização estética e qualidade com a quebrada. Senti isso no começo, que as pessoas não conseguiram fazer essa ligação.
Questionaram se a gente era realmente da quebrada e como a gente tinha acesso a esse tipo de coisas. No começo isso foi questionado, mas todo mundo decidiu estar perto e fazer parte desse momento. Com o tempo, viram que somos todos da periferia e percebi as pessoas abandonando, como não sendo algo mais tão interessante.
Em ‘Sanguessuga’, falo sobre isso, sobre esse mundo plástico, esse mundo artificial que muitas vezes é o mundo artístico. E quando fui colocado nesse mundo instantaneamente com o QQ e ocupei alguns desses espaços, vi o quanto a maioria deles é artificial. E, quando se fala de periferia, quando o artista é da periferia, quando as pessoas veem isso de fato, quando saem dessa glamourização artística e que o hype proporcionou, as pessoas perdem interesse. Acho isso horrível! Porque acaba contradizendo o que era falado antes. Sinto muito essa contradição das pessoas quererem abraçar a quebrada e, quando encontram a realidade de fato, elas meio que desistem, abortam a missão.”
INOVAÇÕES
Uma faixa curiosa no meio do álbum é o interlúdio “Cura”, que entra como um respiro entre as faixas mais agressivas do início e as faixas mais descontraídas do final. A track reflete sobre a música como fonte de esperança, sentido, força, enfrentamento da solidão e cura: “Às vezes encontro na música um modo de me expressar que de outra forma não consigo. Então nesse interlúdio quis que as pessoas entendessem que o principal de tudo da arte é que ela tem esse poder de cura, em todos esses momentos de tensão e raiva.
‘Sanguessuga’ [faixa anterior ao interlúdio] foi movida pela raiva mesmo. É um sentimento que a gente sente, é inevitável e, ainda assim, sincero. Mas me curei disso porque não é bom. O interlúdio serve para isso e tudo depois dele fica mais leve”.
Murillo também traz mais versos cantados nas faixas “Nem o Tempo Vai Passar”, “Prestes a Incendiar” e “De Praxe”, o que trouxe antigas memórias e novos desafios
“Tenho muitas referências de cantores não só dentro do rap, mas dentro do Hip Hop, R&B, música pop. Na minha adolescência gostava muito de cantar, achava que cantava (risos) e isso me dava uns gatilhos porque gostava muito da Jessie J, do Adam Lambert, por exemplo, e eles cantam de maneira surreal. Achava que para ser cantor precisava cantar igual eles, mas é algo impossível (risos). Em meu processo artístico fui descobrindo que existem muitas técnicas, muito aprendizado e que isso é algo muito amplo”.
Inclusive em “Prestes a Incendiar”, o MC traz a participação da cantora Urias, o que considerou como um grande momento de sua carreira. “Foi muito foda! Um momento da carreira que vou lembrar para sempre. Tenho vontade de trabalhar com ela desde a primeira vez que a ouvi cantando. Sempre fui fã. Foi, então, uma realização. Ela é muito talentosa, muito camaleoa, uma artista muito ampla, versátil. Quando escrevi ‘Prestes a Incendiar’, tive certeza que ela ia arrasar.
A ideia era ela dar uma outra identidade pro mesmo verso que eu cantasse. Imaginei que os versos teriam esse contraste e foi justamente o que aconteceu. Quando fomos gravar, ela já gostou de cara e na gravação fomos tendo mais ideias para melhorar a dinâmica da música e virou essa faixa surreal. É uma das faixas que já sai com a guia no celular ouvindo loucamente e até então estou ouvindo diariamente (risos). Eu mesmo sou fã da música porque a Urias está ali. Foi muito foda ter essa experiência com ela”.
DOIS ANOS DE “QUEBRADA QUEER” – A CYPHER
Enquanto à época do hype da cypher Murillo se sentia feliz, grato e surpreso, ao longo do tempo esse sentimento foi amadurecendo.
“Modéstia a parte, acredito que tenha se tornado um clássico. Acho essa música ainda tão presente na vida de tanta gente…Muita gente ainda me marca ouvindo essa música pela primeira vez, inclusive. Ela circula muito bem e alcança as pessoas. Acredito também que foi um divisor de águas para nós, para o rap. Acredito que contribuímos muito para o rap, inclusive. Muito mais do que o rap para a gente, talvez.
Sinto que o rap me agregava muito mais antes dessa cypher do que depois dela. Não sinto que tivemos um suporte do movimento hip hop. Nós fomos procurando oportunidades e elas aconteceram mais dentro do movimento LGBTQ. Não sinto que tivemos muitas oportunidades no rap depois disso.
Sinto que essa música foi um marco na vida de muita gente, na nossa também. Ela é atemporal. Até hoje quando canto, me arrepio, as pessoas se arrepiam, se emocionam com os versos. E é uma conquista muito foda, que marca um momento que para sempre será lembrado. Muita coisa aconteceu depois disso para nós, para a comunidade LGBTQ. Acaba virando um símbolo, o que é muito gratificante como pessoa e como artista. Nossa arte e nossa existência é sobre isso. Estar nesse lugar de representatividade é muito gratificante e tem muito resultado para nós LGBTQ. Basta ver o número de artistas LGBTQ que despontaram nesse momento. Já existiam muitos antes, mas só aumentou depois disso”
SPOILERS E MENSAGENS AOS FÃS
De acordo com o MC, “’Subconsciente’ é seu primeiro single dentro do álbum. Ele terá clipe, que está sendo desenvolvido, tudo estruturado dentro das precauções e cuidados por conta da pandemia. “Estamos buscando trazer esse clipe o mais breve possível. Quero trazer uma identidade visual diferente do que já abordei.
A dança será algo bastante presente nesse projeto. Pode ter certeza que é outro ponto que quero trazer, outra vertente minha que quero explorar. Então esperem que essa era terá muito disso.
E é isso! Consumam meu trampo, consumam os streamings desse artista independente (risos). É muito necessário! Ouçam meu álbum, que está disponível em todas as plataformas digitais. Ouçam meus trabalhos anteriores, os trampos do Quebrada Queer também. Temos muito a dizer nesses trampos todos. Todas essas narrativas presentes podem servir muito às pessoas ao seu redor, então é muito importante que seja compartilhado, dividido com elas.
Seguimos resistindo, seguimos criando, produzindo. Desejo que todos tenham saúde mental para sairmos desse momento da melhor forma. Se cuidem, lavem as mãos, usem máscara e é isso. Muito obrigado pela entrevista. Estou muito contente de poder estar falando sobre.”
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