DJ Raffa: ‘Eu sempre estive à frente do tempo’
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O pioneiro DJ Raffa, um dos maiores produtores da cena rap brasileira, completa 35 anos de carreira e prepara um show para celebrar o lançamento do disco “DJ Raffa 35 Anos – Vol. 1”. Filho do maestro Claudio Santoro (1919-1989), ícone da música erudita brasileira e conhecido mundialmente por suas obras e experimentações, Raffa conheceu o hip hop por meio da dança, mas bem antes dos anos 1980, a proximidade com o trabalho de seu pai em estúdios de gravação despertou o interesse pela música.
“Meu pai montou um estúdio de gravação profissional em casa e eu cresci ouvindo esses sons estranhos”, relembra o produtor. Raffa trocou uma ideia com o Bocada Forte. Entre outros assuntos, o DJ falou sobre o exílio de sua família na Alemanha, no período da ditadura militar, e comentou a viagem de volta ao Brasil que sua mãe, Gisele Santoro, fez só para que Raffa tivesse a nacionalidade brasileira.
Ouça o álbum DJ Raffa e Os Magrellos ‘A Ousadia do Rap de Brasília’
Bocada Forte: Na década de 80, numa reportagem da Rede Globo sobre seu pai, o maestro Claudio Santoro, você apareceu dançando o que chamavam na época de “Break”. A dança foi sua porta de entrada para o hip hop?
DJ Raffa: Sim. Fui b.boy de 1983 até 1986, mas era um dançarino de break frustrado (risos). Nunca fui muito bom nos power moves no chão. Sempre dancei melhor break em cima. Dançar break foi minha entrada no hip hop. Logo em seguida, me interessei pela arte do DJ e, por conseqüência, acabei virando produtor musical.
BF: No passado, você afirmou que seu pai fazia experimentações com a música eletroacústica, numa época em o termo música eletrônica não era popular no Brasil. O quanto o trabalho de Claudio Santoro influenciou as produções iniciais do DJ Raffa?
DJ Raffa: Em nosso exílio na Alemanha, nos anos 70, meu pai foi um dos pioneiros na música eletroacústica, fazendo experimentações e composições em sintetizadores modulares da época. Ele montou um estúdio de gravação profissional em casa e eu cresci ouvindo esses sons estranhos. Talvez por isso eu tenha me interessado na tecnologia da música e começado a fazer minhas primeiras composições depois.
Ouça a música “Frevo” de Claudio Santoro, tocada pelo pianista Luis Bacalov
BF: Qual o motivo do exílio na Alemanha?
DJ Raffa: A ditadura militar. Meu pai era do Partido Comunista e foi perseguido como todos os intelectuais das universidades. Depois que o apartamento foi invadido pelos militares e tudo que estava dentro levado por eles, quando soube que estavam atrás dele meu pai resolveu fugir.
Ele conseguiu o visto de saída porque por acaso. A pessoa que tomava conta disso [liberação dos vistos] tinha uma consideração enorme por ele… Porque meu pai já havia tentado outras vezes e haviam negado. Mas aí ele foi pra França e depois se candidatou a vaga de professor de regência e composição na Universidade de Manheim, na Alemanha Ocidental, na época.
Meu pai conseguiu a vaga. Aí depois minha mãe, minha irmã e meu irmão foram pra lá. Eu nasci depois, mas minha mãe voltou pro Brasil, no Rio de Janeiro, onde ficava sua família, apenas para eu nascer brasileiro. Ela voltou pra Alemanha após isso.
Apenas em 1978, no final do governo Geisel, com o início da abertura política, que meu pai voltou, a convite do Darci Ribeiro, para assumir novamente o Departamento de Música da UnB, que ele havia fundado, e para inaugurar o Teatro Nacional de Brasília, que hoje leva seu nome e, é claro, para fundar a Orquestra Sinfônica do Teatro. Por causa disso ele resolveu voltar. Em 2019 celebramos o centenário dele [Claudio Santoro].
BF: Você já fez algum trabalho com samples ou releituras da obra de Claudio Santoro?
DJ Raffa: Fiz um disco chamado “Santoro Popular”, que saiu em 2010 e está nas plataformas digitais. Mas foi um trabalho mais simples. Peguei umas músicas dele de arquivos pessoais, inclusive algumas de fitas cassete, e coloquei uns beats em cima. No momento, estou em produção de uma releitura dos prelúdios para piano dele [Claudio Santoro], em um formato new jazz misturado com bossa nova e hip hop. O trabalho é feito com samplers e músicos de verdade. O projeto é para o ano que vem.
BF: São 35 anos de carreira celebrados com um CD repleto de participações. Você pode dizer qual o marco zero desta cronologia? Onde, quando e com qual trabalho sua carreira no hip hop começou?
DJ Raffa: Ela começou com os Irmãos Brothers, grupo formado por DJs e locutores de rádio aqui de Brasília. Depois comecei a fazer música junto com o DJ Leandronik e, em seguida, fui procurado pelos Magrellos porque eu já tinha uma coleção de discos raros e eles queriam copiar para Fita Cassete pra ouvir.
Aí nasceu uma amizade. Frequentávamos diversos bailes nas periferias do DF. Dessa união nasceu o desejo de fazer nossos próprios sons. Mas profissionalmente, minha carreira começou com o lançamento do primeiro disco do grupo “DJ Raffa e os Magrellos a Ousadia do Rap de Brasília”, lançado no final de 1989, pela equipe Kaskatas de São Paulo.
Em 30 anos DJ Raffa produziu mais de 100 discos
BF: Você foi um dos produtores que, já na década de 1990, trouxe mais elementos para o rap, que iam além dos samples, algo mais que comum hoje em dia. Você acha que seu estilo foi um dos maiores motivos para ser contratado por selos independentes e trabalhar com artistas de diferentes partes do país?
DJ Raffa: Acho que eu sempre estive à frente do tempo. Também sempre fui um autodidata e ao mesmo tempo um estudioso. Depois que eu voltei do curso de engenharia de som, que eu fiz nos Estados Unidos, vim cheio de idéias e já sabia que o sample era o principal instrumento que eu precisaria ter para estar na linha de frente como produtor musical.
Também observava tudo que acontecia no exterior e analisava bem as produções de fora. Montar uma equipe de músicos para retocar alguns samples ou até mesmo reforçá-los foi inovador na época. Ninguém no Brasil fazia isso. E tudo sem computador. Mas eu tinha a vantagem do conhecimento técnico. Ou seja, eu conseguia mixar e misturar bem as frequências sonoras e filtrar quando incomodavam. Essa experiência era o que fazia a diferença quando eu juntava timbres acústicos com levadas orgânicas, misturadas com samples e batidas eletrônicas ou sampleadas.
BF: Você lembra quais foram os principais equipamentos que você utilizou nas produções do rap dos 90? Ainda possui algum? Ainda usa algum?
DJ Raffa: Ainda uso, de vez em quando, alguns módulos de teclados que eu tenho desde os anos 90, tais como o Roland XV 3080 e o meu Vintage Keys. Sou da época que se fazia música com equipamentos tipo samples, teclados e sequênciadores midi. Tudo sem computador. Meu sequênciador (o computador na época) era o Alesis MMT8. Já tive samplers da Roland como o DJ 70, S-330 e um S-760, e teclado um D-20, também da Roland. No caso das baterias eletrônicas tive: DDD5, da Korg. Electribe, também da Korg. Lidei com as “groove box” da Roland e da Alesis, que também reproduziam timbres acústicos.
Tem muita gente da nova geração fazendo excelentes trabalhos. Minha crítica é que muitos estão apenas pela moda, oportunismo ou exclusivamente pelo dinheiro e não pelo amor à cultura. Não que seja errado você ser bem remunerado por seu trabalho. Mas acredito que os verdadeiros irão ficar
BF: A música negra e o rap mudaram muito nestes 35 anos. Como você vê a atual cena? Há diversidade nas produções?
DJ Raffa: Há diversidade nas produções. Tem muita gente da nova geração fazendo excelentes trabalhos. Minha crítica é que muitos estão apenas pela moda, oportunismo ou exclusivamente pelo dinheiro e não pelo amor à cultura. Não que seja errado você ser bem remunerado por seu trabalho. Mas acredito que os verdadeiros irão ficar. E aqueles que estão no movimento apenas porque acham legal estar na moda vão seguir fazendo outra coisa em pouco tempo. Entrar no jogo é fácil. Permanecer nele… Aí é outra história. Não foi fácil para mim atravessar as barreiras das gerações e me manter firme e forte, na ativa e trabalhando muito.
Em 1991/1992, os Magrellos tiveram a música “Doidão” na trilha sonora da novela ‘Vamp’
O rap está sempre em constante evolução e mutação. Acho que tem espaço para todo tipo de rap. Não acredito que o rap brasileiro já esteja sendo pop de verdade
BF: Além da questão estética, os temas do rap também tiveram mudanças e estão mais próximos da música pop. Em sua trajetória, você já fez trabalhos alternativos, gangstas e pop. Acredita que não há barreiras para o rap?
DJ Raffa: Não há barreiras para qualquer estilo de música. Muito menos pelo rap, que considero a música mais criativa de todos os tempos. O rap está sempre em constante evolução e mutação. Acho que tem espaço para todo tipo de rap. Não acredito que o rap brasileiro já esteja sendo pop de verdade.
Se fosse isso, estaríamos vendo este estilo em palcos principais no Rock in Rio, em programas de TV famosos e temas de abertura de novelas, programações de rádios POP etc… Veja bem, alguns artistas estão nestes lugares que citei, mas é muito pouco se compararmos os outros seguimentos musicais como o sertanejo, por exemplo, que tem rádios próprias e leva multidões aos shows. As pessoas estão se iludindo com likes e visualizações no YouTube, que nem sempre são a realidade da coisa.
Temos um governo que não sabe separar a política da cultura e, com este argumento, generaliza tudo e acaba com o Ministério da Cultura. É simplesmente inacreditável o que estamos passando neste país
BF: Sua trajetória no hip hop começou no final do período da ditadura militar, com o governo João Figueiredo, passou pela redemocratização, manifestações pelas eleições diretas, a morte de Tancredo, os planos cruzados de Sarney, o impeachment de Collor, o governo Itamar, o plano real e os mandatos de FHC. Seus trabalhos também foram feitos nos períodos dos governos Lula, Dilma e Temer. Acha que atualmente, com o governo Bolsonaro, há um retrocesso nas questões cultural e educacional, que também são bandeiras levantadas pelo rap?
DJ Raffa: Com certeza! Falando de cultura, a situação que passamos no país atualmente é caótica. Temos um governo que não respeita a arte em todas as suas formas e manifestações. Que não respeita as culturas afro-brasileiras, não respeita os quilombolas, os ribeirinhos, as culturas indígenas e populares. Que não respeita a trajetória de artistas consagrados como Fernanda Montenegro, por exemplo. Não entende que artesanato, gastronomia, coletivos folclóricos e urbanos, tudo isso é cultura e são legítimas manifestações culturais do povo.
Temos um governo que não sabe separar a política da cultura e, com este argumento, generaliza tudo e acaba com o Ministério da Cultura. É simplesmente inacreditável o que estamos passando neste país. Só que cultura, esporte, ciência e educação são os pilares de uma sociedade e as principais ferramentas de propaganda positiva de um país. Com isso, o governo estimula bons negócios, boas relações e o turismo principalmente.
BF: Para comemorar seus 35 anos de hip hop, uma grande celebração está marcada para novembro. Fale um pouco sobre a preparação deste evento e quais suas expectativas?
DJ Raffa: Será no dia 1º de novembro, na Sala Funarte de Brasília, a partir das 19h. Estou em uma grande ansiedade com esse evento. Vai ser maravilhoso reunir grandes talentos do rap nacional em uma única noite e ainda produzido por mim. Estou muito feliz com esse momento na minha vida.
BF: Como foi a escolha dos artistas que participaram do seu disco? Ficou com a sensação de que faltou alguém?
DJ Raffa: Sempre falta alguém (risos). Na verdade venho trabalhando nessa coletânea há cinco anos. Mas por isso que eu coloquei volume 01, pois pretendo lançar no ano que vem o Volume 02. Tentei mesclar artistas novos com artistas já consagrados e aqueles que não podem ficar de fora, é claro, principalmente artistas que não havia produzido ainda.
BF: Como será o DJ Raffa em seus 40 anos de hip hop?
DJ Raffa: Espero que esteja a todo vapor e produzindo muito. Tenho vários projetos que já estão em fase de produção… E outros que eu quero ainda realizar. Minha ideia é deixar o máximo de trabalhos na rua como legado.
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